A VIRGEM DESNUDADA POR SEUS CELIBATÁRIOS
Hong Sang-Soo, Oh! Soo-Jung, Coréia do Sul, 2000

Quantas vezes um filme dá a sensação de uma perfeita naturalidade, não só nas intepretações (o que é corriqueiro), mas na extrema e ao mesmo tempo simples continuidade de suas ações? Quantas vezes temos a impressão que o desenrolar da história não diz respeito a um roteiro minuciosamente orquestrado, mas simplesmente ao desenrolar da própria vida, funcionando não por uma lógica, mas pela mera mão dos encontros casuais do destino? Não muitas. E, entretanto, essa é a forte sensação que surge quando se vê um filme de Hong Sang-Soo, e A Virgem Desnudada por seus Celibatários especialmente. E, ao mesmo tempo, paradoxo dos paradoxos, tudo parece calculado em seus mínimos detalhes Naturalmente, pela lógica da repetição dos passos de dois relacionamentos que se espelham e se imitam o tempo inteiro, mas no fundo é mais que isso. É um verdadeiro adestramento do acaso, uma estratégia de utilizar as situações mais corriqueiras como forma de evocar o simples escorrer do tempo e dos eventos para no final encaixá-las num relato que não tem nada de casual.

A Soo-Jung do título original, por quem todos os homens fazem "oh!", é a protagonista do filme, e o fio que unifica as duas histórias. Em torno dos vinte anos, Soo-Jung (interpretada por Lee eu-jun, que suicidou-se no começo de 2005, contando apenas 25 anos)
trabalha numa produtora, com um diretor bem mais velho, Young-Soo, que dá em cima dela o tempo todo. Ainda no começo do filme, ela conhece um rapaz (que permanece sem nome), amigo do diretor. Dias depois, ela encontra um par de luvas num banco de praça, e momentos depois os dois se encontram, e as luvas são dele. Eles, com Young-Soo, vão num restaurante e bebem. Na saída, os dois jovens pegam um táxi e se beijam. Começa então um ritual de tentativa de desvirginamento da moça, sem muito sucesso. Algum tempo depois (dias, um mês? o filme não deixa claro), aparece um outro amigo de Young-Soo, Jae-hoon, e os mesmos rituais: restaurante, táxi, beijo, cama. Tudo parece seguir na mesma progressão do primeiro relacionamento, mas aqui os papéis se invertem. Com o primeiro rapaz, ele está apaixonado. Com Jae-hoon, ela está apaixonada. A Virgem Desnudada por seus Celibatários evolui através dessas pequenas brincadeiras entre as muitas repetições e as mínimas diferenças, estabelecendo um dispositivo que a princípio parece derivar de uma lógica do ou/ou (Smoking/No Smoking, de Alain Resnais, A Árvore, O Prefeito e a Mediateca de Eric Rohmer), mas que tem muito mais em comum com a obra de um músico como Steve Reich, operando num princípio de repetição das mesmas células de composição, com a lenta e gradativa incorporação de elementos novos, que no contexto passam a fazer toda a diferença.

Hong Sang-Soo se aproveita desse tipo de construção para fazer nascer um sentimento de humor muito particular, até então inaudito no cinema. Ao contrário dos filmes de enredo dramático que inserem piadas ao longo de seu relato (Woody Allen, principalmente), em A Virgem Desnudada por seus Celibatários temos a impressão de o riso não surge em horas específicas, mas pode aparecer a qualquer momento, dependendo do grau de adesão e de saturação de coincidências da parte de cada espectador (nesse sentido, é um riso que parece mais com a lógica de exaustão e exagero de situações dos esquetes do Monty Python Flying Circus, mas em outras bases). É um humor que funciona não por momentos localizados, mas está disseminado ao longo da narrativa. Um humor que pode aparecer num comentário ("Meus seios não são o suficiente?", pergunta Soo-Jung quando o primeiro namorado tenta ir mais à frente em sua conquista), na simetria entre a primeira parte da história e a segunda (Young-Soo sendo humilhado e depois apanhando do dono da produtora), ou da dissimetria (Cheju Island, uma espécie de paraíso dos amantes, aparecendo tardiamente no começo da primeira história e logo no começo da primeira) entre elas. Todas essas escolhas fazem nascer um comediógrafo muito particular, um que o cinema não vê há muito tempo. Algo entre a fina observação dos comportamentos dos personagens (característica dos grandes entolmologistas do cinema, Chabrol, Imamura...), uma grande arte da escrita dos diálogos (mais próxima de Eustache do que de Billy Wilder) e uma grande sabedoria em tirar expressões e gestos dos atores (próxima de Rohmer ou e Buñuel). A cena em que Jae-hoon vai para o acento de Soo-Jung no restaurante (ilustração 1) é um grande exemplo desses três usos. A cena bem poderia ser filmada num tom de drama naturalista, mas o movimento dos olhos de Soo-Jung, o jeito ligeiramente envergonhado como cada um fala que deseja ir para a cama e o preciso uso das frases trazem uma ironia que espantosamente nos aproxima dos personagens mas nos faz rir da situação algo desajeitada em que eles se encontram (não rimos exatamente dos personagens).

Se A Virgem Desnudada... parece com um outro filme já feito na história do cinema, é A Mamãe e a Puta, de Jean Eustache. O mesmo preto e branco, o mesmo relato em crônica da vida sentimental/sexual de três personagens, e uma semelhante exploração do imaginário masculino em torno de um objeto feminino de desejo. Mas as semelhanças param por aí, porque Hong Sang-Soo sabe traçar seu caminho próprio nesse terreno, fazendo o universo do filme circular não em torno do personagem masculino, mas do feminino. Ou, mais diferente ainda, procedendo a uma mesma forma de caracterização de homens e mulher, ao passo que o filme de Eustache colocava a personagem de Françoise Lebrun como uma espécie de buraco negro em que se perdem todas as tentativas de compreensão por Jean-Pierre Léaud. Aqui, embora Soo-Jung se apresente um tanto como buraco negro para alguns personagens (ao menos os dois que não conseguem dela o que querem), ela não aparece assim para nós, já que não há uma identificação exata do espectador com um personagem em particular, mas apenas com o processo da história. O que deriva daí é uma sensação de cinema em terceira pessoa, com narrador distanciado da história, que nunca pareceu tão apropriada para tratar de um tipo específico de relato de vida cotidiana com ênfase na vida sexual dos personagens. Se uma das linhas mestras que fazem o cinema ganhar novos usos é a exploração do íntimo através do "plano-conceito sentimental" (Gus Van Sant, Vincent Gallo, o Abbas Kiarostami de Dez, Shara), esse cinema encontrou seu cronista. E A Virgem Desnudada por seus Celibatários é o filme em que se consegue ver isso com mais acuidade.

Ruy Gardnier

 

 








Etapas do defloramento de Soo-Jung