Quantas
vezes um filme dá a sensação de
uma perfeita naturalidade, não só nas
intepretações (o que é corriqueiro),
mas na extrema e ao mesmo tempo simples continuidade
de suas ações? Quantas vezes temos a impressão
que o desenrolar da história não diz respeito
a um roteiro minuciosamente orquestrado, mas simplesmente
ao desenrolar da própria vida, funcionando não
por uma lógica, mas pela mera mão dos
encontros casuais do destino? Não muitas. E,
entretanto, essa é a forte sensação
que surge quando se vê um filme de Hong Sang-Soo,
e A Virgem Desnudada por seus Celibatários
especialmente. E, ao mesmo tempo, paradoxo dos paradoxos,
tudo parece calculado em seus mínimos detalhes
Naturalmente, pela lógica da repetição
dos passos de dois relacionamentos que se espelham e
se imitam o tempo inteiro, mas no fundo é mais
que isso. É um verdadeiro adestramento do acaso,
uma estratégia de utilizar as situações
mais corriqueiras como forma de evocar o simples escorrer
do tempo e dos eventos para no final encaixá-las
num relato que não tem nada de casual.
A Soo-Jung do título original, por quem todos
os homens fazem "oh!", é a protagonista
do filme, e o fio que unifica as duas histórias.
Em torno dos vinte anos, Soo-Jung (interpretada por
Lee eu-jun, que suicidou-se no começo de 2005,
contando apenas 25 anos) trabalha numa produtora,
com um diretor bem mais velho, Young-Soo, que dá
em cima dela o tempo todo. Ainda no começo do
filme, ela conhece um rapaz (que permanece sem nome),
amigo do diretor. Dias depois, ela encontra um par de
luvas num banco de praça, e momentos depois os
dois se encontram, e as luvas são dele. Eles,
com Young-Soo, vão num restaurante e bebem. Na
saída, os dois jovens pegam um táxi e
se beijam. Começa então um ritual de tentativa
de desvirginamento da moça, sem muito sucesso.
Algum tempo depois (dias, um mês? o filme não
deixa claro), aparece um outro amigo de Young-Soo, Jae-hoon,
e os mesmos rituais: restaurante, táxi, beijo,
cama. Tudo parece seguir na mesma progressão
do primeiro relacionamento, mas aqui os papéis
se invertem. Com o primeiro rapaz, ele está apaixonado.
Com Jae-hoon, ela está apaixonada. A Virgem
Desnudada por seus Celibatários evolui através
dessas pequenas brincadeiras entre as muitas repetições
e as mínimas diferenças, estabelecendo
um dispositivo que a princípio parece derivar
de uma lógica do ou/ou (Smoking/No Smoking,
de Alain Resnais, A Árvore, O Prefeito e a
Mediateca de Eric Rohmer), mas que tem muito mais
em comum com a obra de um músico como Steve Reich,
operando num princípio de repetição
das mesmas células de composição,
com a lenta e gradativa incorporação de
elementos novos, que no contexto passam a fazer toda
a diferença.
Hong Sang-Soo se aproveita desse tipo de construção
para fazer nascer um sentimento de humor muito particular,
até então inaudito no cinema. Ao contrário
dos filmes de enredo dramático que inserem piadas
ao longo de seu relato (Woody Allen, principalmente),
em A Virgem Desnudada por seus Celibatários
temos a impressão de o riso não surge
em horas específicas, mas pode aparecer a qualquer
momento, dependendo do grau de adesão e de saturação
de coincidências da parte de cada espectador (nesse
sentido, é um riso que parece mais com a lógica
de exaustão e exagero de situações
dos esquetes do Monty Python Flying Circus, mas em outras
bases). É um humor que funciona não por
momentos localizados, mas está disseminado ao
longo da narrativa. Um humor que pode aparecer num comentário
("Meus seios não são o suficiente?",
pergunta Soo-Jung quando o primeiro namorado tenta ir
mais à frente em sua conquista), na simetria
entre a primeira parte da história e a segunda
(Young-Soo sendo humilhado e depois apanhando do dono
da produtora), ou da dissimetria (Cheju Island, uma
espécie de paraíso dos amantes, aparecendo
tardiamente no começo da primeira história
e logo no começo da primeira) entre elas. Todas
essas escolhas fazem nascer um comediógrafo muito
particular, um que o cinema não vê há
muito tempo. Algo entre a fina observação
dos comportamentos dos personagens (característica
dos grandes entolmologistas do cinema, Chabrol, Imamura...),
uma grande arte da escrita dos diálogos (mais
próxima de Eustache do que de Billy Wilder) e
uma grande sabedoria em tirar expressões e gestos
dos atores (próxima de Rohmer ou e Buñuel).
A cena em que Jae-hoon vai para o acento de Soo-Jung
no restaurante (ilustração 1) é
um grande exemplo desses três usos. A cena bem
poderia ser filmada num tom de drama naturalista, mas
o movimento dos olhos de Soo-Jung, o jeito ligeiramente
envergonhado como cada um fala que deseja ir para a
cama e o preciso uso das frases trazem uma ironia que
espantosamente nos aproxima dos personagens mas nos
faz rir da situação algo desajeitada em
que eles se encontram (não rimos exatamente dos
personagens).
Se A Virgem Desnudada... parece com um outro
filme já feito na história do cinema,
é A Mamãe e a Puta, de Jean Eustache.
O mesmo preto e branco, o mesmo relato em crônica
da vida sentimental/sexual de três personagens,
e uma semelhante exploração do imaginário
masculino em torno de um objeto feminino de desejo.
Mas as semelhanças param por aí, porque
Hong Sang-Soo sabe traçar seu caminho próprio
nesse terreno, fazendo o universo do filme circular
não em torno do personagem masculino, mas do
feminino. Ou, mais diferente ainda, procedendo a uma
mesma forma de caracterização de homens
e mulher, ao passo que o filme de Eustache colocava
a personagem de Françoise Lebrun como uma espécie
de buraco negro em que se perdem todas as tentativas
de compreensão por Jean-Pierre Léaud.
Aqui, embora Soo-Jung se apresente um tanto como buraco
negro para alguns personagens (ao menos os dois que
não conseguem dela o que querem), ela não
aparece assim para nós, já que
não há uma identificação
exata do espectador com um personagem em particular,
mas apenas com o processo da história. O que
deriva daí é uma sensação
de cinema em terceira pessoa, com narrador distanciado
da história, que nunca pareceu tão apropriada
para tratar de um tipo específico de relato de
vida cotidiana com ênfase na vida sexual dos personagens.
Se uma das linhas mestras que fazem o cinema ganhar
novos usos é a exploração do íntimo
através do "plano-conceito sentimental"
(Gus Van Sant, Vincent Gallo, o Abbas
Kiarostami de Dez, Shara), esse cinema
encontrou seu cronista. E A Virgem Desnudada por
seus Celibatários é o filme em que
se consegue ver isso com mais acuidade.
Ruy Gardnier
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