Uma
informação no letreiro inicial de Vidas
de Maria, de Renato Barbieri, não pode ser
ignorada ao final do filme. A produção
foi viabilizada, sabemos de cara, por um concurso da
Petrobras. Concurso de roteiro, no qual os selecionados,
após avaliação e decisão
de uma comissão de jurados ligados à atividade
cinematográfica, ganharam uma quantia em dinheiro,
não informada no letreiro. Isso significa que,
antes de Renato Barbieri ir para o set, teve o roteiro
premiado. Um pequeno grupo de pessoas de algum prestígio
na atividade legitimou o esqueleto cinematográfico
em forma de palavras. Cabe uma observação
antes de prosseguirmos: não há garantia
alguma de que, quando sai do papel, um roteiro resulte
em bom filme. Opções de enquadramento,
iluminação, tempo de plano e ritmo dos
segmentos, só possíveis de serem concretizadas
após a filmagem e a montagem, podem potencializar
o texto escrito, assim como implodirem seu potencial.
O mistério a envolver Vidas de Maria está
na penumbra sobre o roteiro. Como ele estava apresentado
para os jurados da Petrobras? Barbieri teria modificado
tudo para a filmagem ou cortou fora alguns segmentos
por não obter o dinheiro necessário? Essas
perguntas ecoam após a visão do filme
porque sua premissa ambiciosa, no sentido de extensão
temporal, não conta com material suficiente para
cumpri-la. E trata-se aqui de insuficiência quantitativa
e qualitativa, já que se alguns planos e cenas
são aceitos na montagem final, talvez seja porque
não houvesse repetições melhores
deles, levando o realizador a colocar no filme o material
disponível, à mão, o que deu para
conseguir, sem com isso atender à demanda do
projeto. Talvez o roteiro fosse uma promessa, acenasse
com possibilidades de virar um bom filme, mas sua prática
em imagens lhe deu uma rasteira. Ou quem sabe o roteiro
era mais ou menos isso mesmo, com pequenas diferenças,
e aí a escolha dos jurados foi infeliz.
Barbieri cobre vários anos da vida de sua protagonista,
Maria (Ingra Liberato), uma mulher de Brasília,
de origem humilde, abandonada pelo pai quando este vai
tentar a sorte na Amazônia. Ela é criada
por um motorista de grã-finos, bem quista por
uma madame-quase-madrasta, mal tratada pelo filho dela
e transformada em alpinista social, do tipo interesseira,
antes de reencontrar sua dignidade nos braços
de um negro baiano, de espírito bon vivant
e libertário, que tem o "black is beautiful"
pronto para ser emitido em sua postura afirmativas.
Vidas de Maria começa mostrando o episódico
percurso biográfico da personagem no momento
de seu casamento por comodismo. Retorna à infância,
avança pela adolescência, passa de novo
pelo casamento e segue adiante até o final. Como
o título no plural sugere, Maria, a mocinha que
ascende, vive ciclos distintos, primeiro como filha
de um operário empenhado em melhorar de vida,
depois como dondoquinha adotiva, e mais tarde como adepto
do trampolim de classes. A necessidade de percorrer
todas essas fases, de modo a se mostrar quem é
Maria em cada uma delas, leva o filme a correr para
passar à fase seguinte, sempre tratando esses
ciclos como resumos de capítulos.
Para minimamente situar cada segmento temporal a um
período histórico brasileiro, o filme
mostra em algumas seqüências imagens supostamente
ilustrativas do momento do país em questão,
seja a Copa de 1970, as manifestações
pelas Diretas Já ou a eleição de
Fernando Collor, ignorando, nessa linha do tempo coletiva,
tanto o golpe de 1964 como o AI-5 em 1968, mostrando
o caráter pouco rigoroso e sem critério
aparente da seleção dos momentos escolhidos.
Essa tentativa de colar o drama da personagem à
trajetória do país revela-se frouxa e
sem propósito, já que em nenhuma dessas
situações o processo coletivo determina
ou modela o processo individual de Maria. Os acontecimentos
da vida dela independem da década, e sua alienação
dessas questões não é tema ali
desenvolvido. Isso porque parece claro que, embora coloque
o "Brasil dos 60 em diante" na tela, Babieri interessa-se
apenas por Maria. E o que vemos, do caminhar dela na
vida, é primeiro uma ascensão (financeira,
social, cultural), depois uma perda dos valores nela
depositados pelo pai, mais tarde um retorno a esses
valores, agora em outra situação social.
Do pai pedreiro chegamos à filha arquiteta. Do
pai adotivo negro e motorista somos encaminhados ao
marido afro-descendente, bissexual e com postura de
jovem bem formado. Maria muda e melhora. Seria isso
um reflexo da visão do diretor sobre o país?
A evolução de Maria é a do Brasil?
Esse sentido de evolução individual é
tratado sem nenhum rigor plástico. O esforço
em empetecar a iluminação resulta em artificialismo
sem nenhum efeito estético a não ser o
de chamar atenção para a luz acentuada
e metida a chique. Uma seqüência ainda nos
primeiros minutos, com a protagonista caminhando por
um piso cheio de flores, parece até tentativa
de mimetizar Takeshi Kitano (em Dolls), sem,
no entanto, ter a pretensão fabular-poética
do diretor. Ou seja, mais um esforço para soar
sofisticado, quando, na tela, soa patético. Não
são poucas as frases e as situações
com alto poder de constrangimento, como, apenas a título
de exemplo, uma na qual o pai de Maria, na Praça
dos Três Poderes, em Brasília, parte para
a Amazônia, após o tricampeonato brasileiro
celebrado no local, e passa por uma bandinha, bandeirinha
brasileira em riste, enquanto ouvimos o hino da nação.
Interrogação. Também não
se vislumbra rigor nas escolhas de enquadramentos e
dos cortes. Há uma cena de velório no
começo, quando a câmera posiciona-se no
teto, em plongé, para filmar dois ambientes
de uma casa, sem necessidade do expediente, que ali
está apenas para produzir "efeito", para mostrar
como a direção muda os ângulos –
momento esse parecido, mas em outro contexto, com o
início de Amarelo Manga, de Claudio Assis.
O que vemos, portanto, é um filme que, em seu
desenho e prática, parece não ter propósitos.
Nem se sustenta dentro de um projeto de maior apelo
comercial, e tampouco contribui para um discussão
estética relevante. A discussão mais pertinente
por ele suscitada, na verdade, é sobre os critérios
dos jurados da Petrobras.
Cléber Eduardo
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