VIDAS DE MARIA
Renato Barbieri, Brasil, 2005

Uma informação no letreiro inicial de Vidas de Maria, de Renato Barbieri, não pode ser ignorada ao final do filme. A produção foi viabilizada, sabemos de cara, por um concurso da Petrobras. Concurso de roteiro, no qual os selecionados, após avaliação e decisão de uma comissão de jurados ligados à atividade cinematográfica, ganharam uma quantia em dinheiro, não informada no letreiro. Isso significa que, antes de Renato Barbieri ir para o set, teve o roteiro premiado. Um pequeno grupo de pessoas de algum prestígio na atividade legitimou o esqueleto cinematográfico em forma de palavras. Cabe uma observação antes de prosseguirmos: não há garantia alguma de que, quando sai do papel, um roteiro resulte em bom filme. Opções de enquadramento, iluminação, tempo de plano e ritmo dos segmentos, só possíveis de serem concretizadas após a filmagem e a montagem, podem potencializar o texto escrito, assim como implodirem seu potencial. O mistério a envolver Vidas de Maria está na penumbra sobre o roteiro. Como ele estava apresentado para os jurados da Petrobras? Barbieri teria modificado tudo para a filmagem ou cortou fora alguns segmentos por não obter o dinheiro necessário? Essas perguntas ecoam após a visão do filme porque sua premissa ambiciosa, no sentido de extensão temporal, não conta com material suficiente para cumpri-la. E trata-se aqui de insuficiência quantitativa e qualitativa, já que se alguns planos e cenas são aceitos na montagem final, talvez seja porque não houvesse repetições melhores deles, levando o realizador a colocar no filme o material disponível, à mão, o que deu para conseguir, sem com isso atender à demanda do projeto. Talvez o roteiro fosse uma promessa, acenasse com possibilidades de virar um bom filme, mas sua prática em imagens lhe deu uma rasteira. Ou quem sabe o roteiro era mais ou menos isso mesmo, com pequenas diferenças, e aí a escolha dos jurados foi infeliz.

Barbieri cobre vários anos da vida de sua protagonista, Maria (Ingra Liberato), uma mulher de Brasília, de origem humilde, abandonada pelo pai quando este vai tentar a sorte na Amazônia. Ela é criada por um motorista de grã-finos, bem quista por uma madame-quase-madrasta, mal tratada pelo filho dela e transformada em alpinista social, do tipo interesseira, antes de reencontrar sua dignidade nos braços de um negro baiano, de espírito bon vivant e libertário, que tem o "black is beautiful" pronto para ser emitido em sua postura afirmativas. Vidas de Maria começa mostrando o episódico percurso biográfico da personagem no momento de seu casamento por comodismo. Retorna à infância, avança pela adolescência, passa de novo pelo casamento e segue adiante até o final. Como o título no plural sugere, Maria, a mocinha que ascende, vive ciclos distintos, primeiro como filha de um operário empenhado em melhorar de vida, depois como dondoquinha adotiva, e mais tarde como adepto do trampolim de classes. A necessidade de percorrer todas essas fases, de modo a se mostrar quem é Maria em cada uma delas, leva o filme a correr para passar à fase seguinte, sempre tratando esses ciclos como resumos de capítulos.

Para minimamente situar cada segmento temporal a um período histórico brasileiro, o filme mostra em algumas seqüências imagens supostamente ilustrativas do momento do país em questão, seja a Copa de 1970, as manifestações pelas Diretas Já ou a eleição de Fernando Collor, ignorando, nessa linha do tempo coletiva, tanto o golpe de 1964 como o AI-5 em 1968, mostrando o caráter pouco rigoroso e sem critério aparente da seleção dos momentos escolhidos. Essa tentativa de colar o drama da personagem à trajetória do país revela-se frouxa e sem propósito, já que em nenhuma dessas situações o processo coletivo determina ou modela o processo individual de Maria. Os acontecimentos da vida dela independem da década, e sua alienação dessas questões não é tema ali desenvolvido. Isso porque parece claro que, embora coloque o "Brasil dos 60 em diante" na tela, Babieri interessa-se apenas por Maria. E o que vemos, do caminhar dela na vida, é primeiro uma ascensão (financeira, social, cultural), depois uma perda dos valores nela depositados pelo pai, mais tarde um retorno a esses valores, agora em outra situação social. Do pai pedreiro chegamos à filha arquiteta. Do pai adotivo negro e motorista somos encaminhados ao marido afro-descendente, bissexual e com postura de jovem bem formado. Maria muda e melhora. Seria isso um reflexo da visão do diretor sobre o país? A evolução de Maria é a do Brasil?

Esse sentido de evolução individual é tratado sem nenhum rigor plástico. O esforço em empetecar a iluminação resulta em artificialismo sem nenhum efeito estético a não ser o de chamar atenção para a luz acentuada e metida a chique. Uma seqüência ainda nos primeiros minutos, com a protagonista caminhando por um piso cheio de flores, parece até tentativa de mimetizar Takeshi Kitano (em Dolls), sem, no entanto, ter a pretensão fabular-poética do diretor. Ou seja, mais um esforço para soar sofisticado, quando, na tela, soa patético. Não são poucas as frases e as situações com alto poder de constrangimento, como, apenas a título de exemplo, uma na qual o pai de Maria, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, parte para a Amazônia, após o tricampeonato brasileiro celebrado no local, e passa por uma bandinha, bandeirinha brasileira em riste, enquanto ouvimos o hino da nação. Interrogação. Também não se vislumbra rigor nas escolhas de enquadramentos e dos cortes. Há uma cena de velório no começo, quando a câmera posiciona-se no teto, em plongé, para filmar dois ambientes de uma casa, sem necessidade do expediente, que ali está apenas para produzir "efeito", para mostrar como a direção muda os ângulos – momento esse parecido, mas em outro contexto, com o início de Amarelo Manga, de Claudio Assis. O que vemos, portanto, é um filme que, em seu desenho e prática, parece não ter propósitos. Nem se sustenta dentro de um projeto de maior apelo comercial, e tampouco contribui para um discussão estética relevante. A discussão mais pertinente por ele suscitada, na verdade, é sobre os critérios dos jurados da Petrobras.


Cléber Eduardo