UM FILME COMO OS OUTROS
Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin, Un Film comme les autres, 1968, França

A maior ironia presente no título Um Filme como os Outros está no fato dele ser verdadeiro: a despeito da aparência que, á primeira vista, em nada remete à estrutura clássica-narrativa e industrial, trata-se realmente de um filme como os outros, visto que também se baseia no binômio composto por ação e personagem. No entanto, Jean-Luc Godard e Jean-Pierre Gorin expandem e transformam os conceitos cristalizados e homogeneizados por Hollywood sobre ambos os elementos: antes do herói solitário, a coletividade; ao invés da reação individual do protagonista contra as imposições sociais que o ameaçam (sobretudo quanto à liberdade e ao direito de propriedade), a prática revolucionária do grupo que, em meio à ebulição trazida pelo maio de 68, pretende estabelecer novo relacionamento entre capital e trabalho, através da aliança dos operários com os estudantes.

Ação e personagem são os fundamentos do cinema clássico-narrativo. As decisões e as atitudes do herói não apenas dizem quem ele é, como também determinam os rumos que a história do filme deve seguir, de forma que a montagem e o ritmo (em suma, o movimento) se encontram subordinados à dialética entre causa e conseqüência, entre as dificuldades que o ambiente coloca no caminho do protagonista e as reações que ele empreende para vencê-las, sendo a síntese a adequação mútua dos interesses e das necessidades do espaço exterior com os desejos e anseios da subjetividade que o enfrenta. Embora, a princípio, não possam ser identificados com a estratégia vitoriosa do cinema de gênero hollywoodiano, os planos dos estudantes e trabalhadores conversando sobre revolução em meio à relva, que se intercalam com imagens de arquivo das mais diversas manifestações políticas, conferem a Um Filme como os Outros movimento semelhante ao da música minimalista, cuja variação contínua faz com que o ouvinte, paradoxalmente, perceba-a sempre no mesmo lugar. Como os "outros", o filme do Grupo Dziga Vertov cria movimento com a montagem, através do corte entre as diferentes posições de câmera que mostram os personagens em meio à natureza, por intermédio do contraste entre a calmaria da discussão a cores e a violência das imagens de arquivo em preto e branco – contudo, a repetição de planos bastante parecidos entre si, apesar d junca serem realmente iguais, grã, pela ubiqüidade que eles engendram, a sensação de estatismo ao espectador. Godard, de fato, chegou a brincar com a suposta monotonia da obra, ao sugerir que a ordem de exibição dos rolos fosse escolhida no cara e coroa.

Um Filme como os Outros, segundo Jean-Pierre Gorin, retrabalha Um Dia no Campo, na medida em que, em ambos, está em jogo a relação que se estabelece entre personagens e meio ambiente: tanto para o Grupo Dziga Vertov, quanto para Jean Renoir, a aparente placidez e tranqüilidade do espaço somente mascaram a rede de tensões e a violência que o constroem. Verifica-se, igualmente, a influência de A Pirâmide Humana, pois a dupla de cineastas traz o debate político para o centro da narrativa, a fim d torna-lo parte integrante do cotidiano dos personagens, do mesmo modo que Jean Rouch – antecipando também a Eric Rohmer – utiliza, como matéria-prima, as conversas do dia-a-dia, os bate-papos banais, informais e despojados com que a juventude reflete sobre sua própria condição burguesa, suas apreensões e expectativas. Assim, em Um Filme como os Outros, o movimento consiste em transformar o próprio discurso em ação, a mera retórica em prática revolucionária, contrapondo às palavras de ordem e à ideologia de mercado expressas pela sociedade capitalista a proposta alternativa que nasce da cooperação e do entendimento dos intelectuais universitários com a mão-de-obra fabril.

Para que aconteça a passagem da retórica para a ação revolucionária, os cineastas atacam o individualismo pressuposto na figura do herói, do protagonista, a fim de dar vazão ao grupo, ao coletivo. Na longa conversa junto à relva, o Grupo Dziga Vertov (os diretores não assinam Um Filme como os Outros) omite o rosto de cada um dos interlocutores, dando espaço somente às suas vozes, aos discursos que eles enunciam. São falas várias, múltiplas, babel de opiniões que preservam o sentido da individualidade, pois a "massa" não representa corpo compacto e único, mas antes é multifacetada, composta por atores políticos com interesses distintos. Os universitários e os trabalhadores que formam o grupo heterogêneo de Um Filme como os Outros debatem e, na maior parte, discordam entre si, na busca pela confluência de idéias e de práticas que lhe permita combater o monólogo totalizante – e individualista, já que não tolera a discussão – imposto pelo capital, necessariamente de cima para baixo. De heróis passivos que reagem com violência às situações inesperadas que entram em conflito com seus próprios desejos egoístas, para agentes transformadores que, conscientes da luta de classes, adiantam-se ao destino e se erguem a favor do socialismo. Godard e Gorin, por conseguinte, ampliam a noção de personagem cara ao cinema narrativo made in USA: mesmo as imagens de arquivo são indeterminadas, ou seja, não apontam apara greves, piquetes ou manifestações específicas, de sorte que foram escolhidas pelo comprimento de película, em metros, que possuíam.

Um Filme como os Outros se situa entre os mais bem acabados produtos do Grupo Dziga Vertov. Ao contrário de Carta para Jane, em que a prática revolucionária se dilui na retórica dos autores, que expõem em voice over a desconstrução da fotografia de Jane Fonda – pois vale mais a emissão do que o meio ou a mensagem –, Um Filme como os Outros, Lutas na Itália e Vento do Leste questionam a cada instante os mecanismos cinematográficos que auxiliam no fomento e na divulgação dos discursos enunciados. São obras que usam a teoria de que tratam a fim de se auto-realizarem: quando Godard e Gorin, por exemplo, ampliando e subvertendo os conceitos de ação, personagem e movimento, fazem um filme igual, e ao mesmo tempo completamente diferente, de todos os demais.


Paulo Ricardo de Almeida