1. Na produção de Tudo Vai Bem,
entra em cena o bendito financiamento da Gaumont: o
Grupo Dziga Vertov finalmente faria um filme que seria
distribuído e visto pelo público. Fazer
politicamente os filmes políticos, diziam Godard
e Gorin. Necessidades táticas de difusão,
portanto: "Como fazer para atingir o máximo
de gente possível?". É a essa pergunta
que Tudo Vai Bem tenta responder de início.
Para fazer um filme, contrata-se uma vedete (Jane Fonda),
arruma-se para ela um par romântico (Yves Montand),
cria-se uma história de amor entre os dois etc
(a primeira seqüência do filme explica tudo
passo a passo). A linha de montagem dos filmes do Grupo
Dziga Vertov era uma questão de ordem; relação
de produção, sempre. A mise en scène
é uma prática política que deve
gerar um dispêndio de energia, um rendimento (não
financeiro, desta vez), um trabalho. Se a primazia é
da produção, o filme em si é uma
inversão que nos leva do produto acabado ao processo
produtivo – e então nada mais justo do que mostrar,
já de início, o talão de cheques
se evaporando à medida que se preenche cada folha
com um valor diferente, sempre justificado no canhoto
como um gasto essencial para a feitura do filme. A translúcida
afirmação de Serge Daney soa quase como
uma explicação de Tudo Vai Bem:
todo filme é antes de qualquer outra coisa um
documentário sobre seu modo de produção.
O próprio pensamento, em Tudo Vai Bem
(e também em Sons Britânicos), se
torna um produto em processo de manufatura –
o espectador não é mais aquele que consome
um extrato do real e se dá por satisfeito com
a duplicação mecânica do mundo,
mas sim alguém que precisa "jogar"
com o filme. A assertiva brechtiana é bem conhecida
hoje: arrancar o espectador de sua posição
passiva – a passividade não era entendida como
um dado natural da espectatorialidade, mas como uma
produção histórica do sistema de
representação da sociedade de classe.
A forma "épica" é a crítica
da forma "dramática", e lutar contra
esta última se faz uma meta decisiva do cinema
político tal como entendido pelo Grupo Dziga
Vertov. Em Tudo Vai Bem Godard e Gorin pedem
nada mais que uma "epistemofilia" de nossa
parte, um desejo insaciável de ouvir mais, receber
mais, processar mais. O espectador deve se deslocar
para uma posição crítica... Mas
isso é terreno já fartamente estudado.
Passemos ao Número Dois.
2. A imagem é uma superfície, e
a narrativa é uma passagem de superfícies,
um trem que passo ao lado de um muro (como ocorre no
final de Tudo Vai Bem). Imagens e sons brutos:
significantes simplistas, primários, rudes, verdadeiramente
grosseiros na sua platitude. Nada mais se passa na profundidade
da ficção, na desarticulação
inteligente do espaço teatral operada pela decupagem
clássica. É antes um cenário em
bloco o que interessa a Godard e Gorin; um espaço
não decupado, não religado senão
por contigüidade arquitetônica, passagem
concreta de um compartimento a outro, radicalização
materialista do espaço cênico. A câmera
fará então um simples sobrevôo por
este prédio fictício: uma dinamização
das aparências. Para tanto, um gênio acorre
a favor deles: o mega-cenário de dois andares
construído por Jerry Lewis em O Terror das
Mulheres serve de inspiração para
a representação em estúdio da fábrica
em que, gesto de sublevação em voga no
pós-68, os trabalhadores mantêm o patrão
refém dentro de seu escritório. O filme
se põe, então, a passear por um cenário
que só pode ser filmado por um lado – Tudo
Vai Bem perde o contracampo. Ou melhor, o contracampo
é tudo que lhe interessa, é a parte em
que se encontram os técnicos, os equipamentos
e os recursos todos que produzem o filme. Melhor ainda:
o cenário filmado é o contracampo do que,
como já foi dito em 1, constitui o filme em última
análise. Campo: Yves Montand é um cineasta
e Jane Fonda é uma repórter de rádio,
e ela quer fazer uma reportagem na fábrica. O
casal acaba também refém (luta de classe
é luta de classe) e deixa aflorar a crise – clichê
de casal burguês, sim. A imagem economiza no gesto,
faz apenas o suficiente para que o espectador coloque
nela sua etiqueta – como preços em produtos de
supermercado –: a grande questão teórica
do filme diz respeito menos ao motor das imagens do
que ao seu fora-de-quadro (universo que contém
a caixa de ferramentas, ou seja, as referências
e coordenadas capazes de organizar essas imagens). Recuando
estrategicamente, seria o espaço-fora que remete
ao próprio social, ao próprio lugar do
espectador (que é quem decide o que fazer com
as imagens). Tudo Vai Bem não pertence
à ordem da linguagem, mas sim do receptáculo
de formas. Logo: "Juste une image" – a imagem
de cinema não é mais o reflexo inocente
de um mundo intrinsecamente ambíguo, mas sim
um produto discursivo, uma manifestação
humana sujeita a todo tipo de falha e/ou falsidade.
Para um cinema feito em plena era da multiplicação
de significados que começam a transbordar para
um terreno virtual, cabe a decisão corajosa de
rapidamente se assumir como mero atualizador de enunciados.
Um cinema do curto-circuito, cinema da duração
não porque fetichiza o escoamento do plano-seqüência,
mas porque encontra o tempo necessário, a duração
suficiente seja lá qual for o rendimento buscado
através das imagens (a publicidade não
assombra esse cinema, apenas o estimula a ir mais longe).
Contracampo: "Para falar dos outros, é preciso
ter a modéstia e a honestidade de falar de si
mesmo. A novidade é não falar de si mesmo
em si, mas de falar de suas próprias condições
sociais de existência e das idéias que
daí resultam" (Jean-Luc Godard).
3. O som parasita a imagem – e por tabela seqüestra
o fluxo cognitivo do espectador. A pista de som traga
as imagens do filme. Técnica de ventriloqüismo:
modular as imagens através do som, transformá-las
em referentes de um discurso que lhes é exterior,
simular seus movimentos labiais e fazer valer um conjunto
de vozes que debatem o conteúdo visual do filme,
discutem, concordam ou discordam. O som é chapado
no primeiro plano, mas a superfície sonora e
a superfície icônica se descolam uma da
outra, vão para caminhos independentes (se de
vez em quando coincidem, normal: a redundância
é também um recurso sonoro válido).
Nos filmes do Grupo Dziga Vertov, o som dá a
volta por cima da imagem – revanche do som frente ao
imperialismo da imagem, à primazia do visual
na nossa cultura. Tudo Vai Bem vira uma máquina
de dispersão que dispara lições
rápidas e teorias "instantâneas",
uma agressiva verborragia contra a pseudo-neutralidade
da imagem. A confluência está na cena do
supermercado, que consiste num único e memorável
plano-seqüência. Jane Fonda passeia pelo
supermercado, indo de um lado a outro acompanhada por
uma câmera em travelling lateral, enquanto
vemos ao fundo os manifestantes saquearem as prateleiras.
Na melhor parte do plano, Anne Wiazemsky protesta contra
um "intelectual de esquerda" que vende seus
livros empilhados como se fossem legumes. O uso da profundidade
de campo é notável: o jogo de superfícies
fica ainda mais complexo. Aquele plano é a tentativa
de pôr o mundo inteiro em um travelling
(como em Weekend). Tentativa infinitamente bela
em seu fracasso inevitável.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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