Basta a seqüência de créditos
iniciais para uma primeira constatação a partir de O
Mundo: Jia Zhang-ke está buscando novas formas,
materiais, ambições – nova estatura. Acostumado a rodar
na clandestinidade, utilizando suportes baratos e leves
– a exemplo da mini-DV com que Yu Lik-wai (seu diretor
de fotografia e braço direito) produziu uma textura
única e fez dois grandes ensaios sobre o espaço da China
contemporânea em Prazeres Desconhecidos –, Jia
vem agora com um filme feito em digital de alta definição
e preenchendo a tela de lado a lado, num formato 1:2.35
suntuoso e exuberante – muitas vezes até opulente. Enquanto
os nomes que compõem a ficha técnica vão aparecendo
aos poucos, sempre ocupando o mínimo de espaço possível
na imagem, mas sempre participando da sua plástica,
o filme já propõe a flutuação delirante de uma imagem
para outra, o que em O Mundo pode significar
flutuar de um regime de imagem a outro. A dançarina
Zhao Tao percorre os bastidores perguntando se alguém
tem um band-aid, a câmera na mão a acompanhando de perto,
até que ela se senta e cola o adesivo no calcanhar.
Uma música surge do fundo e, antes que aquele plano
que tão-somente documentava a personagem pondo um curativo
no pé vire cena de ficção científica, ocorre o corte
para o palco com o espetáculo de dança já em andamento,
a música agora em alto volume. O que se segue é uma
breve cena musical, momento mágico em que o artista
expande sua mise en scène para um “palco” maior.
A ambição do novo filme de Jia vem acompanhada da boa
notícia: grande esteta que é, ele remete o princípio
de asfixia do plano de seus filmes anteriores a uma
vocação de movimento que se dá de forma ao mesmo tempo
estável, fluida e majestosa.
O que em Prazeres Desconhecidos se estruturava
como uma junção de planos-tableaux de duração
esgarçada, configurando um certo aprisionamento na imagem
que nem as constantes entradas e saídas de quadro conseguiam
atenuar, em O Mundo cede espaço a uma ampla movimentação
e a uma fina tapeçaria das imagens: o plano não se entrega
a repetições extenuantes, o universo não mais conspira
para uma duração petrificada. Pelo contrário: entre
a periferia industrial de Prazeres Desconhecidos
e a Pequim globalizada de O Mundo, houve
um arejamento do plano e uma fluidificação do material.
Agora o cotidiano é permeado por devaneios coloridos,
por linhas de escorrimento que povoam as laterais do
cinemascope, por viagens simuladas, por consumos distraídos.
Por baixo da gravidade de Júpiter de seu filme anterior,
Jia revela não apenas uma facilidade de deslocamento,
mas uma maneira poética de filmá-los. Cada simples trajetória
de automóvel tem aqui a beleza de transmitir um sentimento
específico daquele instante – talvez porque essa movimentação
sem pouso que não seja provisório (quartos de hotel,
por exemplo) é o que está na natureza vetorial dos personagens
de O Mundo: migrantes que saíram de sua cidade
natal e foram tentar a vida em Pequim. Eles participam
do que os chineses chamam de “geração flutuante”. Em
muitos momentos, o filme parece a poesia tranqüila dessa
geração à deriva. Mas há uma combustão interna dos planos,
o que a segunda metade do filme começa a revelar: um
rapaz que só toca o coração de sua namorada quando põe
fogo no próprio casaco, um plano-seqüência que vai do
vômito ao choro no banheiro de uma boate, um sofá que
queima por queimar no quintal que Tsaicheng avista da
janela.
Fora do parque temático em que se encontram reproduzidos
os mais famosos monumentos da humanidade, praticamente
só existem espaços de trânsito ou então vestígios e
ruínas (como aquele terraço repleto de vigas) de um
real que, paradoxalmente, ainda está sendo construído
– um mundo envelhecido em seu tempo futuro. Mas uma
visita ao parque equivale a “conhecer o mundo sem sair
de Pequim”, como diz Tao à sua amiga russa que depois
vai embora. Ali não se diz que o século XIX é melhor
que o XIV ou que o classicismo greco-romano paira acima
de todos as eras posteriores: a História assume uma
estatura arbitrária. Antigüidade, Idade Média, modernidade,
futuro: tudo no mesmo espaço, ou na próxima estação
do monorail, mas com escalas que variam sob critérios
talvez de potencial turístico (a Torre Eiffel está reproduzida
em escala 1:3, enquanto toda a ilha de Manhattan cabe
em não mais que uns 100 metros quadrados). Em Um
Filme Falado, Manoel de Oliveira oferece a História
como uma experiência espacial e presente, uma visita
às paisagens históricas, que contêm nelas mesmas a espessura
do tempo. Não é definitivamente o caso de Alexandr Sokurov,
que apesar de também espacializar o tempo, faz de Arca
Russa uma espécie de regressão intra-uterina ao
museu da humanidade. E O Mundo?
No filme de Jia Zhang-ke, o espaço não consegue mais
dar a leitura de um tempo (presente, passado, pouco
importa). Ele filma as atrações do parque como gags:
os turistas tirando fotos em que fingem tentar desentortar
a réplica da Torre de Pisa, as torres gêmeas do World
Trade Center que ali ainda existem firmes e fortes,
a primeira aparição das pirâmides do Egito por um reenquadramento
em plano geral, a moça que atravessa a ponte de Londres
a cavalo como se fosse uma princesa da mitologia celta.
Monumental e nanico ao mesmo tempo, o parque é quase
uma anedota sobre o mundo globalizado. Se primeiro o
homem sentiu necessidade de deixar sua marca no mundo
(contornos das suas mãos na parede de uma caverna, colocação
das formas humanas no centro de origem das representações
visuais), agora ele devolve ao mundo a própria imagem
deste. Jia retira ao cinema seu triunfo inaugural, ou
seja, a possessão imediata de um real que havia sido
repatriado pelo olhar impassível da câmera: ao criar
uma ambiência digital em que a narrativa “navega” de
um personagem a outro, de um tipo de imagem a outro,
ele deixa o cinema totalmente em aberto, sem saber se
sua matéria é o mundo ou seu simulacro. A montagem adiciona
imagens, situações, personagens, construções, num ritmo
que sugere a continuidade daquele movimento somatório
ad nauseaum. Mas não existe gratuidade nessa
sucessão: tudo obedece a uma arquitetura precisa, desde
o agenciamento perfeito que Jia exerce sobre o fora-de-quadro
e sobre a estrutura interna dos planos até a amarração
da narrativa como um todo.
A intimidade é um momento difícil na vida dos personagens
de O Mundo – e como Hong Sang-soo e Claire Denis,
Jia Zhang-ke sabe arrancar do cinema momentos privilegiados
de um encontro íntimo entre a câmera e dois corpos.
As relações afetivas são mediadas pela tecnologia, por
mensagens de celular que inspiram seqüências de animação
que são como pontuações sensíveis do corpo narrativo
– o que desde os anos 80 Wim Wenders vem tentando mostrar,
quase sempre de forma constrangedora, Jia consegue através
de intertítulos de cinema mudo, só que agora em animação,
fundidos no visor “líquido” de telefones celulares.
O mesmo aparelho que permite a troca de mensagens amorosas,
contudo, permitirá que Tao descubra o caso secreto de
Tsaicheng. Jia faz então uma reinscrição literal da
asfixia de seu cinema, com o casal morrendo trancado
no micro-apartamento em que o gás fica vazando. O plano
final é de uma contundência inacreditável: a grua desce
das chaminés de uma fábrica e termina nos corpos de
Tao e Tsaicheng, lado a lado no chão coberto de neve:
a nova China sendo construída a todo vapor, e aquele
casal que no começo falava do futuro fica ali silenciado
pelo auto-envenenamento. Antes, porém, o filme havia
mostrado uma das suas cenas mais bonitas: Tao, vestida
de noiva, conversa com a amiga enquanto um travelling
para frente se aproxima delas. Quando falam da demora
do inverno, o jorro de um mega-chafariz surpreende o
fundo da imagem, e Tao caminha naquela direção até se
perder na fusão com o plano seguinte, a música já começando
a tocar. Após a fusão, estamos no palco com Tao e outras
dançarinas – e neva. O mundo acaba aqui. Ou começa na
beleza daquela coreografia.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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