O MUNDO
Jia Zhang-ke, The World, China/Japão/França, 2004

Basta a seqüência de créditos iniciais para uma primeira constatação a partir de O Mundo: Jia Zhang-ke está buscando novas formas, materiais, ambições – nova estatura. Acostumado a rodar na clandestinidade, utilizando suportes baratos e leves – a exemplo da mini-DV com que Yu Lik-wai (seu diretor de fotografia e braço direito) produziu uma textura única e fez dois grandes ensaios sobre o espaço da China contemporânea em Prazeres Desconhecidos –, Jia vem agora com um filme feito em digital de alta definição e preenchendo a tela de lado a lado, num formato 1:2.35 suntuoso e exuberante – muitas vezes até opulente. Enquanto os nomes que compõem a ficha técnica vão aparecendo aos poucos, sempre ocupando o mínimo de espaço possível na imagem, mas sempre participando da sua plástica, o filme já propõe a flutuação delirante de uma imagem para outra, o que em O Mundo pode significar flutuar de um regime de imagem a outro. A dançarina Zhao Tao percorre os bastidores perguntando se alguém tem um band-aid, a câmera na mão a acompanhando de perto, até que ela se senta e cola o adesivo no calcanhar. Uma música surge do fundo e, antes que aquele plano que tão-somente documentava a personagem pondo um curativo no pé vire cena de ficção científica, ocorre o corte para o palco com o espetáculo de dança já em andamento, a música agora em alto volume. O que se segue é uma breve cena musical, momento mágico em que o artista expande sua mise en scène para um “palco” maior. A ambição do novo filme de Jia vem acompanhada da boa notícia: grande esteta que é, ele remete o princípio de asfixia do plano de seus filmes anteriores a uma vocação de movimento que se dá de forma ao mesmo tempo estável, fluida e majestosa.

O que em Prazeres Desconhecidos se estruturava como uma junção de planos-tableaux de duração esgarçada, configurando um certo aprisionamento na imagem que nem as constantes entradas e saídas de quadro conseguiam atenuar, em O Mundo cede espaço a uma ampla movimentação e a uma fina tapeçaria das imagens: o plano não se entrega a repetições extenuantes, o universo não mais conspira para uma duração petrificada. Pelo contrário: entre a periferia industrial de Prazeres Desconhecidos e a Pequim globalizada de O Mundo, houve um arejamento do plano e uma fluidificação do material. Agora o cotidiano é permeado por devaneios coloridos, por linhas de escorrimento que povoam as laterais do cinemascope, por viagens simuladas, por consumos distraídos. Por baixo da gravidade de Júpiter de seu filme anterior, Jia revela não apenas uma facilidade de deslocamento, mas uma maneira poética de filmá-los. Cada simples trajetória de automóvel tem aqui a beleza de transmitir um sentimento específico daquele instante – talvez porque essa movimentação sem pouso que não seja provisório (quartos de hotel, por exemplo) é o que está na natureza vetorial dos personagens de O Mundo: migrantes que saíram de sua cidade natal e foram tentar a vida em Pequim. Eles participam do que os chineses chamam de “geração flutuante”. Em muitos momentos, o filme parece a poesia tranqüila dessa geração à deriva. Mas há uma combustão interna dos planos, o que a segunda metade do filme começa a revelar: um rapaz que só toca o coração de sua namorada quando põe fogo no próprio casaco, um plano-seqüência que vai do vômito ao choro no banheiro de uma boate, um sofá que queima por queimar no quintal que Tsaicheng avista da janela.     

Fora do parque temático em que se encontram reproduzidos os mais famosos monumentos da humanidade, praticamente só existem espaços de trânsito ou então vestígios e ruínas (como aquele terraço repleto de vigas) de um real que, paradoxalmente, ainda está sendo construído – um mundo envelhecido em seu tempo futuro. Mas uma visita ao parque equivale a “conhecer o mundo sem sair de Pequim”, como diz Tao à sua amiga russa que depois vai embora. Ali não se diz que o século XIX é melhor que o XIV ou que o classicismo greco-romano paira acima de todos as eras posteriores: a História assume uma estatura arbitrária. Antigüidade, Idade Média, modernidade, futuro: tudo no mesmo espaço, ou na próxima estação do monorail, mas com escalas que variam sob critérios talvez de potencial turístico (a Torre Eiffel está reproduzida em escala 1:3, enquanto toda a ilha de Manhattan cabe em não mais que uns 100 metros quadrados). Em Um Filme Falado, Manoel de Oliveira oferece a História como uma experiência espacial e presente, uma visita às paisagens históricas, que contêm nelas mesmas a espessura do tempo. Não é definitivamente o caso de Alexandr Sokurov, que apesar de também espacializar o tempo, faz de Arca Russa uma espécie de regressão intra-uterina ao museu da humanidade. E O Mundo?

No filme de Jia Zhang-ke, o espaço não consegue mais dar a leitura de um tempo (presente, passado, pouco importa). Ele filma as atrações do parque como gags: os turistas tirando fotos em que fingem tentar desentortar a réplica da Torre de Pisa, as torres gêmeas do World Trade Center que ali ainda existem firmes e fortes, a primeira aparição das pirâmides do Egito por um reenquadramento em plano geral, a moça que atravessa a ponte de Londres a cavalo como se fosse uma princesa da mitologia celta. Monumental e nanico ao mesmo tempo, o parque é quase uma anedota sobre o mundo globalizado. Se primeiro o homem sentiu necessidade de deixar sua marca no mundo (contornos das suas mãos na parede de uma caverna, colocação das formas humanas no centro de origem das representações visuais), agora ele devolve ao mundo a própria imagem deste. Jia retira ao cinema seu triunfo inaugural, ou seja, a possessão imediata de um real que havia sido repatriado pelo olhar impassível da câmera: ao criar uma ambiência digital em que a narrativa “navega” de um personagem a outro, de um tipo de imagem a outro, ele deixa o cinema totalmente em aberto, sem saber se sua matéria é o mundo ou seu simulacro. A montagem adiciona imagens, situações, personagens, construções, num ritmo que sugere a continuidade daquele movimento somatório ad nauseaum. Mas não existe gratuidade nessa sucessão: tudo obedece a uma arquitetura precisa, desde o agenciamento perfeito que Jia exerce sobre o fora-de-quadro e sobre a estrutura interna dos planos até a amarração da narrativa como um todo.

A intimidade é um momento difícil na vida dos personagens de O Mundo – e como Hong Sang-soo e Claire Denis, Jia Zhang-ke sabe arrancar do cinema momentos privilegiados de um encontro íntimo entre a câmera e dois corpos. As relações afetivas são mediadas pela tecnologia, por mensagens de celular que inspiram seqüências de animação que são como pontuações sensíveis do corpo narrativo – o que desde os anos 80 Wim Wenders vem tentando mostrar, quase sempre de forma constrangedora, Jia consegue através de intertítulos de cinema mudo, só que agora em animação, fundidos no visor “líquido” de telefones celulares. O mesmo aparelho que permite a troca de mensagens amorosas, contudo, permitirá que Tao descubra o caso secreto de Tsaicheng. Jia faz então uma reinscrição literal da asfixia de seu cinema, com o casal morrendo trancado no micro-apartamento em que o gás fica vazando. O plano final é de uma contundência inacreditável: a grua desce das chaminés de uma fábrica e termina nos corpos de Tao e Tsaicheng, lado a lado no chão coberto de neve: a nova China sendo construída a todo vapor, e aquele casal que no começo falava do futuro fica ali silenciado pelo auto-envenenamento. Antes, porém, o filme havia mostrado uma das suas cenas mais bonitas: Tao, vestida de noiva, conversa com a amiga enquanto um travelling para frente se aproxima delas. Quando falam da demora do inverno, o jorro de um mega-chafariz surpreende o fundo da imagem, e Tao caminha naquela direção até se perder na fusão com o plano seguinte, a música já começando a tocar. Após a fusão, estamos no palco com Tao e outras dançarinas – e neva. O mundo acaba aqui. Ou começa na beleza daquela coreografia.

Luiz Carlos Oliveira Jr.