APRENDER,
RETER
Sabemos que Maio de 68 confirmou Jean-Luc Godard dentro
de uma desconfiança que ele tinha: que a sala
de cinema era, em todos os sentidos da palavra, um
local ruim, ao mesmo tempo imoral e inadequado.
Lugar de histeria fácil, do imundo flerte do
olho, do voyeurismo e da mágica. O lugar no qual,
para retomar uma metáfora que teve seu momento
de glória, vínhamos "deitar e rolar",
encher a vista e, deste feito, se cegar, ver muito e
mal.
A grande desconfiança trazida por Maio de 68
sobre a "sociedade do espetáculo",
uma sociedade que secreta mais imagens e sons do que
se pode ver e digerir (a imagem desfila, foge, escapa),
atingiu a geração na qual ela havia mais
investido, aquela dos autodidatas cinéfilos,
para quem a sala de cinema tinha ao mesmo tempo sido
um lugar de escola e de família, a geração
da Nouvelle Vague, formada nas cinematecas. A partir
de 68, Godard vai retirar sua aposta e percorrer o caminho
no sentido inverso: do cinema à escola, depois
da escola à família. Regressão?
E por que não dizer "regressismo"?
Em 1968, para a franja mais radical a mais esquerdista
dos cineastas, uma coisa é clara: é
preciso aprender a sair da sala de cinema (da cinefilia,
do obscurantismo) ou ao menos ligá-la a alguma
outra coisa. E para aprender, é preciso ir à
escola. Não tanto à "escola da vida",
quanto ao cinema como escola. É desta forma que
Godard e Gorin transformaram o cubo cenográfico
em sala de aula, o diálogo do filme em recitação,
a voz em off em curso magistral, a filmagem em
trabalhos dirigidos, o assunto do filme em intitulados
de UV (o "revisionismo", a "ideologia")
e o cineasta em professor escolar, em repetidor ou vigilante.
A escola torna-se, logo, o bom local, aquele que afasta
do cinema e que aproxima do "real" (um real
a ser transformado, bem-entendido). É deste local
que nos vieram os filmes do Grupo Dziga Vertov (e já
A Chinesa). Em Tout va bien, Numéro
Deux e Ici et ailleurs, é o apartamento
familiar que substituiu a sala de aula (e a televisão
que tomou o lugar do cinema), mas o essencial permanece:
pessoas que fazem suas lições.
Não se deve buscar em outro lugar a precipitação
extraordinária de amor e de ódio, de raiva
e de gemidos irritados que a partir deste momento o
"cinema" de Godard, tornado nos primeiros
tempos uma pedagogia maoísta um tanto rugosa,
desencadeou. Um Godard "recuperado pelo sistema"
teríamos perdoado bastante (quantos não
se indignam ainda hoje com a idéia de que Godard
não lhes dará um novo Pierrot le fou?).
A um Godard totalmente marginalizado, undergroundizante,
e feliz de sê-lo, teríamos rendido uma
homenagem discreta. Mas com um Godard que continua a
trabalhar, a cursar, a fazer a lição e
a transmiti-la, mesmo que diante de uma sala vazia,
o que fazer? Há na pedagogia godardiana alguma
coisa que o cinema sobretudo o cinema não
tolera: que falemos em alto e bom tom.
Pedagogia godardiana. A escola, dizíamos, é
o bom local (aquele onde fazemos progressos e de onde
necessariamente saímos) por oposição
ao cinema (local ruim ao qual regressamos e de onde
não saímos). Vejamos de mais perto e desenvolvamos
a metáfora.
1. A escola é, por excelência, o lugar
no qual é possível, permitido, até
mesmo recomendado, confundir as palavras e as coisas
e não querer saber nada sobre o que as liga,
de postergar o momento no veremos de mais perto (quem
é que responde pelo que nos é ensinado).
Lugar que chama o nominalismo, o dogmatismo.
Ora, havia uma condição sinequanon
à pedagogia godardiana: nunca pôr em questão
o discurso do outro, seja qual for ele. Pegar esse discurso,
bestamente, ao pé da letra. Abraçá-lo,
também, por completo. Só ter a ver, ele,
Godard, com o já-dito-por-outros, com
o já-dito-já-erigido em enunciados (indiferentemente:
citações, slogans e cartazes, piadas e
histórias, lições, manchetes de
jornais, etc.) Enunciados-objetos, pequenos monumentos,
palavras tomadas como se fossem coisas: a pegar (aprender)
ou largar.
O já-dito-por-outros coloca-nos diante
do fato consumado; ele deve existir, consistir. Por
sua existência, ele torna ilusório toda
o procedimento que resultaria em restabelecer atrás,
na frente, em volta dele, um domínio da enunciação.
Godard nunca coloca aos enunciados que ele acolhe a
questão de sua origem, de sua condição
de possibilidade, do lugar de onde eles tiram sua legitimidade,
do desejo que eles traem e recuperam ao mesmo tempo.
Seu procedimento é o mais anti-arqueológico
possível. Consiste em tomar nota do que é
dito (e quanto ao qual nada podemos) e a procurar logo
o outro enunciado, o outro som, a outra imagem
que poderia vir contrabalançar este enunciado,
este som, esta imagem. "Godard" seria apenas
o lugar vazio, a tela preta na qual imagens, sons, viriam
coexistir, se neutralizar, se reconhecer, se designar,
em suma: lutar. Mais do que "quem tem razão?
quem está errado?", a verdadeira questão
é: "O que poderíamos opor a isso?".
O advogado do diabo.
Daí o mal-estar, a "confusão"
freqüentemente criticadas em Godard. Ao que o outro
diz (asserta, proclama, preconiza), ele responde sempre
com o que um outro outro diz (asserta, proclama,
preconiza). Há sempre uma grande incógnita
nesta pedagogia, é que a natureza da relação
que desenvolve com seus "bons" discursos (aqueles
que ele defende) é indecisível.
Em Ici et ailleurs, por exemplo, "filme"
sobre imagens trazidas da Jordânia (1970-1975),
fica claro que a interrogação do filme
sobre ele mesmo (esta espécie de disjunção
que ele opera de todos os lados: entre aqui e acolá,
as imagens e os sons, 1970 e 1975) só é
possível e inteligível porque num primeiro
momento o sintagma "revolução palestina"
funciona já como um axioma, como alguma coisa
que vai de si (do já-dito-por-outros, pelo Fath
no acontecimento), e em relação ao qual
Godard não tem nem que se definir pessoalmente
(dizer "eu", mas dizer também "eu
estou com eles"), nem marcar no filme sua posição
(socializar, tornar convincente, desejável, sua
tomada de posição, sua escolha inicial:
pelos palestinos, contra Israel). Sempre a lógica
da escola.
2. A escola é por excelência o lugar no
qual o professor não tem que dizer de onde vem
seu saber nem suas certezas. A escola não é
o lugar no qual o aluno poderia reinscrever, utilizar,
pôr à prova o saber que lhe foi inculcado.
Aquém do saber do professor, além do saber
do aluno: um branco. O branco de um no mans land,
de uma questão da qual Godard nada quer saber,
a da apropriação do saber. Apenas interessa
a ele a (re)transmissão.
Em toda a pedagogia, no entanto, há valores,
conteúdos positivos a serem passados. A pedagogia
godardiana não é exceção
à regra. Nenhum filme do pós-68 deixa
de se situar (e de se proteger) no que poderíamos
chamar sem nuance pejorativa de um discurso de
manobra. Recapitulemos: a política marxista-leninista
(as posições chinesas) em Pravda
e Vent dest, a lição de Althusser
como um engano em Luttes en Italie, a lição
de Brecht sobre o "papel dos intelectuais na revolução"
em Tout va bien e, mais recentemente, restos
do discurso feminista (Germaine Greer) em Numéro
Deux. O discurso de manobra não é
um discurso ao poder, mas um discurso que tem
poder: violento, assertivo, já constituído,
provocante. O discurso de manobra muda, se podemos dizer,
de mãos, mas ele fala sempre do alto e culpabiliza
facilmente (vergonhas sucessivas: ser cinéfilo,
ser revisionista, ser distante das massas, ser um macho
chauvinista).
Mas destes discursos nos quais ele nos solicita acreditar
(e nos submetermos), Godard não é mais
o condutor menos ainda a origem mas algo como o
repetidor. Coloca-se então uma estrutura
de três termos, um pequeno teatro a três,
no qual ao professor (que no final das contas é
apenas um repetidor) e ao aluno (que só repete)
se soma a instância que diz que deve-se repetir,
a instância do discurso de manobra, ao qual professor
e aluno são submetidos, ainda que de forma desigual,
e que os humilha.
A tela torna-se então o local desta humilhação
e o filme sua mise-en-scène. Duas questões
são, entretanto, definitivamente escamoteadas
por este dispositivo: a da produção
deste discurso de manobra (em termos maoístas:
a questão "de onde vêm as idéias
justas?") e a da sua apropriação
(em termos maoístas: a questão da "diferença
entre as idéias verdadeiras e as idéias
justas?"). A escola não é, certamente,
o lugar destas perguntas. O repetidor encarna uma figura
ao mesmo tempo modesta e tirânica: ele recita
uma lição da qual ele não quer
saber e que ele mesmo tem que suportar.
Este discurso-professor é, desde 1968, mais ou
menos de forma sistemática, conduzido por uma
voz de mulher. É que a pedagogia godardiana implica
numa repartição entre os sexos dos papéis
e dos discursos. Palavra de homem, discurso de mulher.
A voz que repreende, retoma, aconselha, ensina, explica,
teoriza e mesmo terroriza é sempre uma voz de
mulher. E se essa voz começa a falar justamente
da questão da mulher, é ainda sob um tom
assertivo, ligeiramente declamatório: o contrário
do vivido e do queixoso naturalistas. Godard não
filma revoltas das quais não se poderia falar,
que não tivesse encontrado sua língua,
seu estilo, sua teoria. Em Tout va bien, vemos
o personagem interpretado por Jane Fonda passar muito
rápido da saturação a uma espécie
de teoria desta saturação (que Montand,
por fim, não entende). Nada de aquém do
discurso, do já-dito-por-outros.
3. Para o professor, para os alunos, cada ano traz consigo
(a "volta às aulas") a mímica,
o simulacro da primeira vez, de retorno ao zero. Zero
do não-saber, zero do quadro-negro. É
no que a escola, lugar de tabula rasa de do quadro rapidamente
apagado, lugar lúgubre da espera e do suspense,
do transitório da vida, é um lugar obsessivo,
não-linear, fechado.
Desde seus primeiros filmes, Godard experimenta uma
grande repulsão a "contar uma história",
a dizer "no início havia / no fim há".
Sair da sala de cinema, era também sair desta
obrigação, bem formulada pelo velho Fritz
Lang em O Desprezo: "deve-se sempre terminar
o que se começou". Diferença fundamental
entre a escola e o cinema: não temos necessidade
de agradar, de afagar os alunos, porque a escola é
obrigatória. É o Estado que quer que todas
as crianças sejam escolarizadas. Enquanto que
no cinema, para reter seu público, é
preciso lhe dar o que ver, o que desfrutar, contar-lhe
histórias (mentiras): de onde vem a acumulação
de imagens, histeria, dosagem dos efeitos, retenção,
descarga, happy end: catarse. Privilégio
da escola: retemos os alunos para que eles retenham
lições, o professor retém seu saber
(ele não diz tudo) e pune os maus alunos por
horas de retenção.
GUARDAR, ENTREGAR
A escola como bom local só era, portanto, o bom
local porque era possível de reter o máximo
de coisas e de pessoas o maior tempo possível,
o lugar até da reprise. Porque "reter"
quer dizer duas coisas: "guardar", mas também
"retardar", "adiar". Guardar um
público de alunos para retardar o momento no
qual eles correriam o risco de passar muito rápido
de uma imagem a outra, de um som a outro, de ver muito
rápido e de se pronunciar prematuramente, de
pensar terem acabado com as imagens e os sons, quando
eles nem desconfiam a qual ponto a ordenação
destas imagens e destes sons é uma coisa complexa,
grave, não-inocente. A escola permite de voltar
a cinefilia contra ela mesma, de fazê-la mudar
completamente de opinião e de fazer esta volta
com calma. Logo, a pedagogia godardiana consiste em
não parar de voltar às imagens e aos sons,
de designá-los, duplicá-los, comentá-los,
abismá-los, criticá-los como a tantos
enigmas insondáveis: não perdê-los
de vista, vigiá-los, guardá-los.
Pedagogia masturbatória? Sem dúvida. Ela
tem como horizonte, como limite, o enigma dos enigmas,
a esfinge da foto fixa: aquilo que desafia a inteligência
e nunca a esgota, aquilo que retém o olhar e
o sentido, aquilo que fixa a pulsão escópica:
a retenção em ação.
Porque o local de onde Godard nos fala, de onde ele
nos interpela, certamente não é o lugar
assegurado de uma profissão, ou mesmo de um projeto
pessoal, é um entre-dois, e até um entre-três,
um local impraticável que abraça tanto
a fotografia (século XIX), quanto o cinema (século
XX), quanto a televisão (século XXI).
A fotografia; aquela que retém de uma vez por
todas (o cadáver trabalhando). O cinema: aquele
que retém apenas um momento (a morte ao trabalho).
A televisão: aquela que não retém
nada (a sucessão mortal, a hemorragia das imagens).
O avanço de Godard sobre os outros manipuladores
de imagens e de sons, assim sendo, tem a ver com seu
total desprezo por todo discurso sobre a "especificidade"
do cinema. Deve-se ver como ele aloja, como ele encaixa
tranqüilamente na tela de cinema tanto a fotografia
fixa quanto a imagem televisiva (o cinema não
tendo mais nenhuma especificidade do que aquela de acolher,
provisoriamente (?), imagens que não são
feitas para ele, de se deixar cercar por elas: Numéro
Deux) para entender que Godard excede qualquer discurso
sobre a especificidade do cinema, quer seja o discurso
espontâneo do espectador (o cinema, para mim,
é isso), do interessado, das pessoas do
meio (deve-se fazer filmes assim), ou aquele da crítica
universitária esclarecida (é assim
que funciona o cinema).
O cinema, dizíamos no início deste artigo,
local ruim, local de um crime e de uma magia. O crime:
que imagens e sons sejam coletados (arrancados,
roubados, extorquidos, tomados) dos seres vivos. A magia:
que eles sejam exibidos em outra cena (a sala de cinema)
para causar o prazer de quem os vê. Beneficiário
da transferência: o cineasta. A verdadeira pornografia
está aí, nesta mudança de cena;
ela é, propriamente, ob-cena.
Diremos: trata-se de uma problemática moral,
baziniana e ainda por cima, este tipo de dívida
simbólica não se reembolsa. Certamente.
Mas acontece que o itinerário de Godard está
sob o signo de uma questão muito concreta, muito
histórica, de uma questão em crise: aquela
da natureza daquilo que poderíamos chamar de
"contrato fílmico" (filmador/filmado).
Esta questão parecia se colocar apenas para o
cinema militante ou etnográfico ("Nós
e os outros"), Godard nos diz que é ao ato
mesmo de filmar que ela diz respeito. Ele está
exagerando? Seria leviandade acreditar que esta questão
é daquelas que se resolve com boa vontade e votos
piedosos (para a boa causa aquela da obra-prima artística
ou da boa-ação militante). Ele se colocará,
ela não pode deixar de se colocar cada vez mais
à medida que o contrato tradicional filmador/filmado/espectador,
o contrato estabelecido pela indústria cinematográfica
(Hollywood), se desfiará e que o cinema como
"arte-de-massa-familiar-popular e homogeneizante"
entrará em crise. Desta crise, Godard já
nos fala, porque é esta crise que o constituiu
como cineasta. Mas já é a questão
do cinema pornô (Exibição)
ou do cinema militante (Um simples exemplo).
Questão de futuro.
Para Godard, reter imagens e público, fixá-los
de algum jeito (como fazemos cruelmente com as borboletas)
é uma atividade desesperadora e, ela mesma, sem
esperança. Sua pedagogia apenas o fez ganhar
tempo. À obscenidade de aparecer como autor (e
beneficiário da mais-valia fílmica), ele
preferiu aquela na qual ele deveria encenar o ato mesmo
da retenção.
A impossibilidade de passar um contrato fílmico
de uma nova sorte o conduziu, portanto, a guardar (reter)
imagens e sons sem encontrar a quem entregá-los,
restituí-los. O cinema de Godard é uma
dolorosa meditação sobre o tema da restituição,
ou melhor, da reparação. Reparar
é entregar as imagens e os sons àqueles
dos quais elas foram extraídas. É também
engajá-los (engajamento realmente político)
a produzir suas imagens e seus sons próprios.
E tanto melhor se esta produção obrigar
o cineasta a começar a mudar sua forma de trabalhar!
Há um filme no qual esta restituição-reparação
acontece, ao menos idealmente, é Ici et ailleurs.
Essas imagens de palestinos e palestinas que Godard
e Gorin, convidados pela OLP, trazem do Oriente Médio,
essas imagens que Godard guarda em seu poder por cinco
anos, a quem entregá-las?
Ao grande público ávido de sensação
(Godard + Palestina = furo de reportagem)? Ao público
politizado, ávido de ter sua doxa confirmada
(Godard + Palestina = boa causa + arte)? À OLP,
que convidou, permitiu de filmar e confiou (Godard +
Palestina = arma de propaganda)? Também não.
Então?
Um dia, entre 1970 e 1975, Godard se dá conta
que a banda sonora não está completamente
traduzida, que o que é dito, nos planos em que
figuram os fedayin, não foi traduzido do árabe.
E que no fundo todo mundo não ficaria desconfortável
(aceitando que uma voz em off encobre estas vozes).
Ora, nos diz Godard, estes fedayin cujas falas permaneceram
sem efeito são mortos em espera, mortos-vivos.
Eles ou outros fedayin como eles foram mortos em
1970, foram assassinados pelas tropas de Hussein.
Fazer o filme ("deve-se sempre terminar o que se
começou") é, então, da forma
mais simples, traduzir a banda sonora, obter a compreensão
do que é dito, melhor: do que escutamos. O que
é retido é então liberado, o que
é guardado é então restituído,
mas é tarde demais. Entregamos as imagens e os
sons, como entregamos as homenagens àqueles a
quem pertencem: aos mortos.
Serge Daney
(publicado originalmente em Cahiers du Cinéma
262-263, janeiro de 1976. Tradução de
Tatiana Monassa)
|