Doeun gosta de interpretar Cyrano
de Bergerac. O herói de Edmond Rostand ama Roxane em
segredo, mas, devido ao nariz que o envergonha, declara-se
somente através do jovem e belo Christian. Da mesma
forma que o poeta e soldado Cyrano, que utiliza a arte
para se esconder da prima tão querida, os atores de
Rithy Panh se encastelam no prédio destruído onde, enquanto
remoem o passado de sofrimento, não possuem coragem
para seguir em frente e reconstruir suas vidas. No limbo
que o teatro queimado personifica – e que remete ao
Camboja como um todo –, os personagens devem se libertar
dos papéis nos quais se protegem a fim de encarar tanto
a memória de horror deixada pelo Khmer Vermelho, quanto
as mudanças inevitáveis trazidas pela economia global
ao país miserável.
Os filmes de Rithy Panh são variações sobre um mesmo
tema. Assim como Yasujiro Ozu, que se centrou nas transformações
da família japonesa no pós-guerra a partir de Pai
e Filha, Panh investiga o Camboja atual, que se
encontra pressionado entre as lembranças do extermínio
gerado pela coletivização forçada, que teimam em permanecer,
e as perspectivas nada auspiciosas trazidas pelo mercado,
que entra com toda força sem alterar a pobreza que assola
a nação. A cada obra que se segue, o diretor cambojano
lança novo olhar sobre os assuntos que o norteiam. Desse
modo, se em S-21, A Máquina da Morte do Khmer Vermelho,
há o ataque frontal à burocracia assassina do regime
de Pol Pot que destruiu três milhões de vidas, em Bophana,
Uma Tragédia Cambojana o massacre é visto através
da história de amor entre dois dissidentes políticos;
se em As Pessoas de Angkor se exibe a profanação
das ruínas-símbolo do país pela indústria turística,
em A Terra das Almas Errantes a instalação dos
cabos de fibra ótica se choca diretamente com as minas
terrestres para a legião de trabalhadores mutilados
que sobreviveram à ditadura comunista. Em Os Artistas
do Teatro Queimado, por sua vez, não está em jogo
o trauma individual e coletivo resultado das brutalidades
impostas pelo Khmer Vermelho, mas antes a impossibilidade
que os personagens tiveram de agir contra seus carrascos,
de ajudar aqueles que também precisavam de auxílio.
Peng Phan sintetiza, em seu discurso, a animalização
perpetrada pelo Khmer Vermelho, quando não se comia
por prazer, mas pela sobrevivência; quando se esperava
com avidez a morte do companheiro a fim de lhe roubar
a comida e as roupas; quando a única ação que resta
é, trinta anos depois, rezar pelos prisioneiros eliminados,
cujos nomes já foram esquecidos. Rithy Panh, todavia,
descola a fala de Peng Phan – que, nos filmes anteriores,
seria central na narrativa – para posição marginal,
do mesmo modo que trata a construção do cassino, embora
presente desde o começo por meio do som onipresente
das obras (é preciso destacar o extraordinário plano-seqüência
que apresenta o cassino pela primeira vez: após mostrá-lo,
a câmera faz panorâmica de 180o para enquadrar
o teatro aos pedaços), como simples acessório dramático,
uma vez que o diretor nega a relação direta entre a
incapacidade que os personagens demonstram de sair dos
papéis que os aprisionam e a violência, tanto das feridas
ainda abertas pelo genocídio de Pol Pot, quanto a hipocrisia
financeira que pensa nos lucros que pode obter dos desvalidos
que explora. Em Os Artistas do Teatro Queimado,
as memórias do passado e as apreensões pelo futuro servem
para criar o espaço onde o presente está morto, onde
fantasmas vagam com medo de voltar à vida – como o próprio
teatro, que, depois do incêndio de 1994 (bem distante,
portanto, da ascensão e da queda comunista, com as quais
mantém ligações subjetivas), jamais foi reformado e
onde a vegetação cresce sem que ninguém faça nada a
respeito.
Assim como Peng Phan não consegue se livrar das recordações
que a fazem sofrer (nem mesmo com pílulas mirabolantes
receitadas por médico que não a escuta), Sok Li também
se lamenta por ter abandonado a esposa e os filhos para
se refugiar no teatro destruído. Peng Phan, Sok Li e
Doeun – que sobrevive atuando em melodramas vagabundos
para vídeo (dirigidos, ironicamente, pelo próprio Rithy
Panh) – são como os teatrinhos de sombra que vez por
outra se encenam ao longo do filme: tal qual as aves
fantoches que se justapõem aos sons reais de pássaros,
eles, embora isolados pelas máscaras que os tornaram
atores em tempo integral, guardam em si a potência para
se reconectarem ao mundo de que se distanciaram. Para
Rithy Panh, a resposta está no contato afetivo, na amizade
– de Peng Phan com a jovem Bopha Chheng, a quem pode
confessar as dores que sente na alma, e de Sok Li com
Doeun, que ajuda o parceiro a se reconciliar com a esposa,
na belíssima seqüência em que ambos dedicam a ela e
aos filhos uma música no rádio. Apesar do cineasta conhecer
os percalços do caminho que seus personagens devem trilhar,
a moto, pelo menos, não anda mais em círculos, partindo
estrada afora, rumo à vida.
Dessa feita, Rithy Panh não apenas mistura realidade
e ficção, como também as funde de maneira a dialogar
com Jean Renoir, visto que está presente em Os Artistas
do Teatro Queimado a mesma conexão dinâmica entre
teatro e vida, entre o ato de encenar e o ato de simplesmente
existir. Panh inicia o filme com cena onde fica explícita
a performance dos atores (afetados ao extremo). Ao longo
da narrativa, porém, as fronteiras são abolidas, como
na seqüência em que, depois de aparente briga entre
os personagens, o diretor da companhia entra inesperadamente
no quadro para corrigir as marcações, ou quando Sok
Li diz com fluência frase em francês após treiná-la,
momentos antes, com imensa dificuldade. Para o cineasta
cambojano, trata-se de acabar com todos os papéis, sejam
os interpretados dentro do filme, seja aquele (o ator
de verdade, que existe para fora da projeção) que leva
à interpretação dos demais, a fim de que os artistas
retomem a inocência anterior ao cinema, recapturem a
mágica que o ato de ligar a câmera tantas e tantas vezes
corrompeu em definitivo. Libertar a sétima arte, enfim,
do vício inescapável da representação.
Sok li capina a vegetação que tomou o teatro em ruínas
e a queima. A fumaça sobe ao céu e lá se dissipa, com
a cidade ao fundo: tempo de sair do casulo e de recomeçar,
como as borboletas.
Paulo Ricardo de Almeida
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