OS ARTISTAS DO TEATRO QUEIMADO
Rithy Panh, Les artistes du théâtre brûlé, Camboja/França, 2005

Doeun gosta de interpretar Cyrano de Bergerac. O herói de Edmond Rostand ama Roxane em segredo, mas, devido ao nariz que o envergonha, declara-se somente através do jovem e belo Christian. Da mesma forma que o poeta e soldado Cyrano, que utiliza a arte para se esconder da prima tão querida, os atores de Rithy Panh se encastelam no prédio destruído onde, enquanto remoem o passado de sofrimento, não possuem coragem para seguir em frente e reconstruir suas vidas. No limbo que o teatro queimado personifica – e que remete ao Camboja como um todo –, os personagens devem se libertar dos papéis nos quais se protegem a fim de encarar tanto a memória de horror deixada pelo Khmer Vermelho, quanto as mudanças inevitáveis trazidas pela economia global ao país miserável.

Os filmes de Rithy Panh são variações sobre um mesmo tema. Assim como Yasujiro Ozu, que se centrou nas transformações da família japonesa no pós-guerra a partir de Pai e Filha, Panh investiga o Camboja atual, que se encontra pressionado entre as lembranças do extermínio gerado pela coletivização forçada, que teimam em permanecer, e as perspectivas nada auspiciosas trazidas pelo mercado, que entra com toda força sem alterar a pobreza que assola a nação. A cada obra que se segue, o diretor cambojano lança novo olhar sobre os assuntos que o norteiam. Desse modo, se em S-21, A Máquina da Morte do Khmer Vermelho, há o ataque frontal à burocracia assassina do regime de Pol Pot que destruiu três milhões de vidas, em Bophana, Uma Tragédia Cambojana o massacre é visto através da história de amor entre dois dissidentes políticos; se em As Pessoas de Angkor se exibe a profanação das ruínas-símbolo do país pela indústria turística, em A Terra das Almas Errantes a instalação dos cabos de fibra ótica se choca diretamente com as minas terrestres para a legião de trabalhadores mutilados que sobreviveram à ditadura comunista. Em Os Artistas do Teatro Queimado, por sua vez, não está em jogo o trauma individual e coletivo resultado das brutalidades impostas pelo Khmer Vermelho, mas antes a impossibilidade que os personagens tiveram de agir contra seus carrascos, de ajudar aqueles que também precisavam de auxílio.

Peng Phan sintetiza, em seu discurso, a animalização perpetrada pelo Khmer Vermelho, quando não se comia por prazer, mas pela sobrevivência; quando se esperava com avidez a morte do companheiro a fim de lhe roubar a comida e as roupas; quando a única ação que resta é, trinta anos depois, rezar pelos prisioneiros eliminados, cujos nomes já foram esquecidos. Rithy Panh, todavia, descola a fala de Peng Phan – que, nos filmes anteriores, seria central na narrativa – para posição marginal, do mesmo modo que trata a construção do cassino, embora presente desde o começo por meio do som onipresente das obras (é preciso destacar o extraordinário plano-seqüência que apresenta o cassino pela primeira vez: após mostrá-lo, a câmera faz panorâmica de 180o para enquadrar o teatro aos pedaços), como simples acessório dramático, uma vez que o diretor nega a relação direta entre a incapacidade que os personagens demonstram de sair dos papéis que os aprisionam e a violência, tanto das feridas ainda abertas pelo genocídio de Pol Pot, quanto a hipocrisia financeira que pensa nos lucros que pode obter dos desvalidos que explora. Em Os Artistas do Teatro Queimado, as memórias do passado e as apreensões pelo futuro servem para criar o espaço onde o presente está morto, onde fantasmas vagam com medo de voltar à vida – como o próprio teatro, que, depois do incêndio de 1994 (bem distante, portanto, da ascensão e da queda comunista, com as quais mantém ligações subjetivas), jamais foi reformado e onde a vegetação cresce sem que ninguém faça nada a respeito.

Assim como Peng Phan não consegue se livrar das recordações que a fazem sofrer (nem mesmo com pílulas mirabolantes receitadas por médico que não a escuta), Sok Li também se lamenta por ter abandonado a esposa e os filhos para se refugiar no teatro destruído. Peng Phan, Sok Li e Doeun – que sobrevive atuando em melodramas vagabundos para vídeo (dirigidos, ironicamente, pelo próprio Rithy Panh) – são como os teatrinhos de sombra que vez por outra se encenam ao longo do filme: tal qual as aves fantoches que se justapõem aos sons reais de pássaros, eles, embora isolados pelas máscaras que os tornaram atores em tempo integral, guardam em si a potência para se reconectarem ao mundo de que se distanciaram. Para Rithy Panh, a resposta está no contato afetivo, na amizade – de Peng Phan com a jovem Bopha Chheng, a quem pode confessar as dores que sente na alma, e de Sok Li com Doeun, que ajuda o parceiro a se reconciliar com a esposa, na belíssima seqüência em que ambos dedicam a ela e aos filhos uma música no rádio. Apesar do cineasta conhecer os percalços do caminho que seus personagens devem trilhar, a moto, pelo menos, não anda mais em círculos, partindo estrada afora, rumo à vida.

Dessa feita, Rithy Panh não apenas mistura realidade e ficção, como também as funde de maneira a dialogar com Jean Renoir, visto que está presente em Os Artistas do Teatro Queimado a mesma conexão dinâmica entre teatro e vida, entre o ato de encenar e o ato de simplesmente existir. Panh inicia o filme com cena onde fica explícita a performance dos atores (afetados ao extremo). Ao longo da narrativa, porém, as fronteiras são abolidas, como na seqüência em que, depois de aparente briga entre os personagens, o diretor da companhia entra inesperadamente no quadro para corrigir as marcações, ou quando Sok Li diz com fluência frase em francês após treiná-la, momentos antes, com imensa dificuldade. Para o cineasta cambojano, trata-se de acabar com todos os papéis, sejam os interpretados dentro do filme, seja aquele (o ator de verdade, que existe para fora da projeção) que leva à interpretação dos demais, a fim de que os artistas retomem a inocência anterior ao cinema, recapturem a mágica que o ato de ligar a câmera tantas e tantas vezes corrompeu em definitivo. Libertar a sétima arte, enfim, do vício inescapável da representação.

Sok li capina a vegetação que tomou o teatro em ruínas e a queima. A fumaça sobe ao céu e lá se dissipa, com a cidade ao fundo: tempo de sair do casulo e de recomeçar, como as borboletas.

Paulo Ricardo de Almeida