O tapete vermelho estendido
para Quinzinho entrar no cinema repleto de cartazes
de blockbusters, para ver finalmente um filme
do Jeca Tatu, era o tapete que Mazzaropi estendia para
si, numa mímese do glamour hollywoodiano. Grande homem
de cinema, suas comédias duras e realistas abriram uma
profícua fronte de filmes populares, que pretendiam
fazer existir uma indústria de cinema no Brasil, mas
acabaram meio esquecidos no tempo. Sobraram para nós
o comércio e a paródia: Tapete vermelho, ao retomar
o personagem do Jeca em uma “homenagem” a Mazzaropi,
afirma uma impossibilidade de travar um contato com
este outro (o homem não-urbano que pouco conhecemos,
o cinema nacional que pouco conhecemos) fora da incorporação
pela caricatura e pela tipificação (reconhecível, vendável).
A imagem romantizada do Jeca de Matheus Nachtergaele,
um homem que parou no tempo remoto de uma casinha isolada
no meio da natureza do interior paulista (ignorante
dos acontecimentos fora do seu quinhão de terra, inocente
no seu não-corrompimento pelo tempo) é a do personagem
folclórico com que nos relacionamos no âmbito da fantasia.
Retirado deste meio próprio (o cenário idílico e artificial
de sua rocinha idealizada) e jogado no mundo (as cidades
paulistas do cenário de 2005, o campo assolado por problemáticas
de terra e repleto de violência, a modernidade do consumo
e da tecnologia), ele se revela anacrônico, irreal,
um clown-quase-sátira de um personagem que existiu.
Porque se o Jeca de Mazzaropi era um arquétipo de um
tipo vivo (reinterpretação regionalista de Mazzaropi
de um personagem brasileiro criado por Monteiro Lobato
como representação do país), que, em sua comicidade
trazia à tona questões de condições humanas de vida,
o Jeca de Tapete vermelho é um personagem quixotesco
lançado num roadmovie que, em sua intenção de
homenagem, constrói um retrato rasteiro e um tanto irresponsável
do país.
O elogio do cinema como elemento mágico, associado ao
“mundo caipira” e aos “tempos antigos” de uma roça mergulhada
em rezas e crenças, choca-se com uma realidade desencantada,
corrompida pela modernidade (apenas como efeito cômico),
afogada numa cultura de televisão, religião menor (as
igrejas evangélicas) e relações comerciais (as lojas,
a preocupação incessante com o ganho e o rendimento).
O uso constante de grande angular em ligeiro contra-plongée,
combinado com cortes apressados de ação-reação, cria
uma ambientação de estranheza que joga tudo o que se
passa no âmbito do derrisório, da comédia sem conseqüências,
que se utiliza do que estiver à mão para fazer piada.
O percurso de intenções nobres dos personagens principais,
pautados por uma “inocência” fantasiosa, é o que vai
cooptar a empatia do público para a homenagem a que
o filme se pretende. Mas todo este processo parte de
um distanciamento mascarado do objeto a ser homenageado
(Mazzaropi) e de um aliviamento proposital do espaço-tempo
em que nós, público, estamos inseridos. Nos identificamos
com o Jeca e sua família e mergulhamos na aura mágica
que os envolve. Em contato com tudo aquilo que teoricamente
reconheceríamos como território familiar, experimentamos
um contraste indesejado, repelindo, portanto, a esfera
referente ao real.
Pois o Jeca não é mais real. E o que talvez seja o real
em seu lugar (os crentes que freqüentam as Igreja Evangélicas,
os integrantes do MST, o público do cinemão americano,
os comerciantes) não tem muita importância. O cinema
se retira da História – e também da História do Cinema,
pois reconfigura o significado e a aura de um personagem
de intensa vida para transformá-lo em simulacro levianamente
cômico. Ao espectador, restam camadas superpostas de
imagens que se refutam a pensar o seu lugar, a se pensar
como representação e matéria do mundo.
Tatiana Monassa
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