Os personagens mais difíceis de se inserir na
narrativa da História são os da classe
média. Classe ampla e poliforme, corpo significativo
da massa populacional, esse conjunto de pessoas que
promove silenciosamente progressos inteiros na História
social, é tido quase como uma camada amortecedora
dos vetores dos grandes movimentos registrados nos livros.
Mas, curiosamente, é a classe média que
faz reverberar continuamente ideários que se
incrustam quase inocentemente na base de um comportamento
político-histórico que se alastra no tempo.
Nesse sentido, Soldado de Deus descreve uma atitude
não muito corrente: investigar o "acontecimento"
chamado Ação Integralista Brasileira sem
perspectivá-lo além do ponto de vista
verbalizado por cada um dos entrevistados, indivíduos
que viveram aquilo de perto. A aproximação
direta do portador do discurso (conservador), mediada
por uma distância histórica, traz reflexões
interessantes acerca dos discursos sem nome que circulam
na sociedade hoje e que configuram correntes de pensamentos
conservadores implantados como "senso comum"
e irradiados basicamente a partir da classe média.
Quando configurado como objeto histórico e analisado
como tal, este discurso usualmente dissolvido ganha
uma visibilidade diferente e a possibilidade de ser
criticado e posto em perspectiva.
O elogio da ordem, da organização, da
disciplina, da família como centro da vida pessoal
e a crença na transcendência como sinal
de certa "dignidade" são dados difundidos
– de forma que integram fortemente um sentido de civilidade
cristã, promovida pela fala de pais e professores
e ecoada nas conversas mais descontraídas entre
amigos até hoje. Perceber estes valores como
integrantes de um discurso político fascistóide
é vislumbrar a que ponto nossa sociedade foi
(e é) conservadora. Esta breve "arqueologia"
do impulso conservador da classe média brasileira
lança, portanto, não apenas luzes sobre
um passado recente e pouco explorado em suas implicações
ideológicas e filosóficas, como sobre
um presente que elege um presidente de esquerda e o
celebra como uma grande aposta de mudança, mas
em nada modifica seu próprio comportamento social.
Esta relação com o real, entabulada de
forma enviesada pela escolha e tratamento de um "objeto
de pesquisa" histórico, não chega,
no entanto, a ganhar maior impacto, pois como cinema,
Soldado de Deus não ultrapassa sua formatação
de documentário majoritariamente informativo.
A imagem, embora sempre bem composta, está a
serviço da informação que veicula,
com o auxilio do som sincronizado, e esta informação
não é vasta em curtos-circuitos (com o
tempo que vivemos, com a criação de sentido
possível pelo arranjamento de imagens e sons
pela montagem, etc.). O filme integra, pois, um vasto
conjunto de obras contemporâneas cujo movimento
há de ser observado: o documentário investigativo
feito no Brasil em vídeo digital. Incentivados
pelo baixo custo e facilidades técnicas do processo,
eles se espraiam em todas as direções.
De fato, é possível fazer "documentários"
sobre qualquer assunto que se queira pesquisar. "Filme"
torna-se então sinônimo de organização
de informações – informações
que majoritariamente não dizem respeito à
materialidade que compõe sua forma.
Exibidos hoje basicamente em projeção
digital, estes documentários, ao mesmo tempo
em que confundem as fronteiras entre cinema, televisão
e vídeo, colocando a questão da produção
de imagens toda num mesmo patamar (pensar uma construção
audiovisual), nos fazem refletir sobre a nossa produção
cinematográfica – especialmente os conceitos
de cinema que ela alimenta – e a relação
entre formas institucionalizadas de veiculação
e os produtos em si. Os meios de comunicação
se diversificaram e se interpenetraram, tecnológica
e formalmente, de tal maneira, que não é
mais possível associar uma "forma genérica"
a um meio. Cinema passa a ser, portanto, tudo
aquilo que for veiculado numa sala de cinema, para um
conjunto de espectadores sentados à frente de
uma tela em meio ao breu.
Tatiana Monassa
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