SOLDADO DE DEUS
Sérgio Sanz, Brasil, 2004

Os personagens mais difíceis de se inserir na narrativa da História são os da classe média. Classe ampla e poliforme, corpo significativo da massa populacional, esse conjunto de pessoas que promove silenciosamente progressos inteiros na História social, é tido quase como uma camada amortecedora dos vetores dos grandes movimentos registrados nos livros. Mas, curiosamente, é a classe média que faz reverberar continuamente ideários que se incrustam quase inocentemente na base de um comportamento político-histórico que se alastra no tempo. Nesse sentido, Soldado de Deus descreve uma atitude não muito corrente: investigar o "acontecimento" chamado Ação Integralista Brasileira sem perspectivá-lo além do ponto de vista verbalizado por cada um dos entrevistados, indivíduos que viveram aquilo de perto. A aproximação direta do portador do discurso (conservador), mediada por uma distância histórica, traz reflexões interessantes acerca dos discursos sem nome que circulam na sociedade hoje e que configuram correntes de pensamentos conservadores implantados como "senso comum" e irradiados basicamente a partir da classe média. Quando configurado como objeto histórico e analisado como tal, este discurso usualmente dissolvido ganha uma visibilidade diferente e a possibilidade de ser criticado e posto em perspectiva.

O elogio da ordem, da organização, da disciplina, da família como centro da vida pessoal e a crença na transcendência como sinal de certa "dignidade" são dados difundidos – de forma que integram fortemente um sentido de civilidade cristã, promovida pela fala de pais e professores e ecoada nas conversas mais descontraídas entre amigos até hoje. Perceber estes valores como integrantes de um discurso político fascistóide é vislumbrar a que ponto nossa sociedade foi (e é) conservadora. Esta breve "arqueologia" do impulso conservador da classe média brasileira lança, portanto, não apenas luzes sobre um passado recente e pouco explorado em suas implicações ideológicas e filosóficas, como sobre um presente que elege um presidente de esquerda e o celebra como uma grande aposta de mudança, mas em nada modifica seu próprio comportamento social.

Esta relação com o real, entabulada de forma enviesada pela escolha e tratamento de um "objeto de pesquisa" histórico, não chega, no entanto, a ganhar maior impacto, pois como cinema, Soldado de Deus não ultrapassa sua formatação de documentário majoritariamente informativo. A imagem, embora sempre bem composta, está a serviço da informação que veicula, com o auxilio do som sincronizado, e esta informação não é vasta em curtos-circuitos (com o tempo que vivemos, com a criação de sentido possível pelo arranjamento de imagens e sons pela montagem, etc.). O filme integra, pois, um vasto conjunto de obras contemporâneas cujo movimento há de ser observado: o documentário investigativo feito no Brasil em vídeo digital. Incentivados pelo baixo custo e facilidades técnicas do processo, eles se espraiam em todas as direções. De fato, é possível fazer "documentários" sobre qualquer assunto que se queira pesquisar. "Filme" torna-se então sinônimo de organização de informações – informações que majoritariamente não dizem respeito à materialidade que compõe sua forma.

Exibidos hoje basicamente em projeção digital, estes documentários, ao mesmo tempo em que confundem as fronteiras entre cinema, televisão e vídeo, colocando a questão da produção de imagens toda num mesmo patamar (pensar uma construção audiovisual), nos fazem refletir sobre a nossa produção cinematográfica – especialmente os conceitos de cinema que ela alimenta – e a relação entre formas institucionalizadas de veiculação e os produtos em si. Os meios de comunicação se diversificaram e se interpenetraram, tecnológica e formalmente, de tal maneira, que não é mais possível associar uma "forma genérica" a um meio. Cinema passa a ser, portanto, tudo aquilo que for veiculado numa sala de cinema, para um conjunto de espectadores sentados à frente de uma tela em meio ao breu.


Tatiana Monassa