O traço do desenho prima pela
simplificação do mundo. Os contornos definidos daquilo
que no real se constitui como corpo (e cujo volume o
distingue do que não é ele) delineiam pessoas e coisas,
expressões e ações. A história em quadrinhos, na sua
composição mais clássica, tenta trazer ao desenho, ao
transformá-lo num meio narrativo, o tempo e o movimento.
Sua simplicidade de traços e cores ajudou-a a afeiçoar-se
à fantasia e toda sorte de “realidade paralela”. Mas
ela também se diversificou: a chamada “graphic novel”
não apenas trouxe um reconhecimento mais literário à
produção quadrinística, como ampliou seus parâmetros
ilustrativos. As narrativas em imagens ganharam outras
possibilidades artísticas e representativas, aproximando-se
por um lado da literatura e, por outro, da pintura,
ao mesmo tempo em que se afastavam da simplicidade do
desenho, ganhando espessura nos jogos de luz e sombra
que permeiam o mundo em três dimensões. E, nesta interseção,
sua relação com o real também foi alargada.
Frank Miller, ao realizar sua graphic novel Sin
City, parece levar tais características a um paroxismo.
Sua suprarrealidade decalcada de um imaginário do cinema
noir americano e do submundo novaiorquino, esculpida
em pretos e brancos absolutos e colorida de uma violência
sem limites, nos informa de possibilidades gráficas
de representação de ritmo e de movimento e de recorrências
de representação, tanto em relação a imaginários quanto
a referências ao real. Basin City é um mundo sem lei,
habitado por toda sorte de criminosos, por homens durões
e valentes, torturados em seu interior e portadores
de um código moral nada “correto” (embora o melhor possível
frente às condições adversas em que vivem) e por mulheres-fetiche
que fazem o que podem para sobreviver. Neste país de
lobos, qualquer parceria é um ganho incomensurável e
qualquer traço de boas intenções é a redenção. Entregues
à própria sorte, os homens dão livre vazão a seus desejos
e poucos conseguem permanecer íntegros.
Personagens tipificados, eles pouco têm de individualidade.
Suas atitudes e seus amores são repetições atávicas
de um universo-amálgama que os ultrapassa como criação
singular. Miller trabalha com os traços delineadores
de um grande imaginário que ele se propõe a retomar
e ampliar. Não o interessam pessoas com dramas tangíveis
expostas a situações extremas, nem mesmo uma realidade
cuja lógica sugerisse paralelos com processos experimentados
na realidade concreta que habitamos. A simplificação
de sua representação está a serviço de um grafismo do
extremo e de um nuançar em luz e sombras dos exageros
dos estereótipos. Sua pesquisa “cultural”, amparada
por uma experimentação plástica, encontra sua solidez
ao reintegrar um caldo cultural e tornar-se ela mesma
um reduto cult e fonte de inspiração.
Miller refutou, portanto, durante muito tempo as ofertas
que lhe chegavam de uma adaptação cinematográfica. Cedeu,
porém, aos apelos de Robert Rodriguez, que, armado com
uma experimentação tecnológica a partir dos meios mais
avançados disponíveis para a criação cinematográfica,
mostrou-lhe ser possível transladar o universo
daqueles quadrinhos para imagem em movimento, sem alterar
o “espírito” do original. Surpreendente em seu trabalho
pictórico de contrastes exacerbados e luzes duras e
marcadas, no qual os pixels mais se assemelham a pinceladas
que tentam trazer para a bidimensionalidade as três
dimensões do real, Sin City filme cria uma atmosfera
artificialesca bem nos moldes dos quadrinhos de Miller.
A ação se segue vertiginosamente, ações e acontecimentos
chamam o movimento, os personagens expõem seus dramas
em monólogos ou em frases curtas de efeito. Tudo o que
era marcante na graphic novel está ali transposto
sem ser repensado.
O que encanta os puristas e os admiradores da arte da
adaptação por um lado, por outro desvaloriza o feito
cinematográfico de Rodriguez. Pois o cinema é um outro
meio, ainda que um tanto maleável. Um meio debitário
de uma vasta história e com termos de representação
que ultrapassam a questão imagética (como, aliás, as
próprias HQs). O que no trabalho original de Miller
constituía uma reconfiguração de dados cinematográficos,
para integrar a criação de um universo próprio, por
assim dizer, no caminho inverso para o filme perde sua
significação e cai num emaranhado de imagens que sustentam
pouco mais do que sua própria plasticidade. A estética
de luz e sombra do nanquim sobre o papel está ali traduzida
perfeitamente num uso impressionante do registro em
digital de alta resolução aliado ao CGI. No entanto,
o cinema, que já conhece o universo noir embalado
por uma narração em off do protagonista masculino
amargurado e politicamente incorreto e repleto de femmes
fatales, assim como a violência extremada de um
submundo que foge de qualquer tipo de lei, recebe a
narrativa de Sin City de forma fria e seca, meio
sem vida. A ele não foi solicitado um entrecruzamento
com o meio dos quadrinhos para além da imagem, como,
por exemplo, um achatamento de referências cinematográficas
com que o filme inevitavelmente dialoga.
O imaginário da cidade sem lei, que a Christopher Nolan
rende em Batman Begins comentários acerca do
real, baseados na sociologização e psicologização da
violência e do medo, apresenta-se em Sin City
como um todo praticamente auto-sustentável, no qual
nem a violência gráfica gratuita e absurda nem os estereótipos
mergulhados numa idéia de “pecado generalizado” são
pensados em termos de representação em relação ao meio
que os veicula. O trabalhar de imagens de Rodriguez
não entra no campo representativo e narrativo, talvez
por conta mesmo de seu profundo desejo de fidelidade
a toda a criação de Miller, cuja co-direção do filme
assegurou a perfeita re-criação de sua obra.
Aparentado a um autêntico capricho de fã, Sin City
não apresenta, pois, nada muito além de um farto deleite
técnico-visual.
Tatiana Monassa
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