O SIGNO DO CAOS
Rogério Sganzerla, Brasil, 2003

"Vai e volta, vai e volta" ou
Um filme talhado pra cadeira elétrica


(texto escrito e publicado no Festival do Rio de 2003)

para Jairo Ferreira

para Rogério Sganzerla
para Julio Bressane
para Mair Tavares
para Bruno Andrade
Sofia, Remier, Karen, Snir, Gisella
e para quem mais quiser

a) O Signo do Caos compõe com Tudo É Brasil um estranho dístico de devoção e repulsão ao país. Enquanto o primeiro era um canto de assimilação e encanto tomando por base os olhos de um estrangeiro que fazia cinema, o segundo é um melancólico, raivoso e desencantado grito de asco venenoso, um testemunho – em primeira pessoa, dir-se-ia – da estagnação do processo cultural brasileiro e de todos nesse processo envolvidos. Ao passo que Tudo É Brasil nos evolui a situação de um personagem com seu ambiente, narra um triste mas saboroso percurso de descoberta, O Signo do Caos emperra qualquer evolução, joga seus planos e persongens – todos principais, ou todos secundários – em labirintos de linha reta, onde eles se sabem perdidos mas não têm nem a esperança de correr para algum lugar e serem achados.

b) Um antifilme, mas antes de tudo um filme terrorista: nos joga na tela dramaturgicamente, com crueldade clinica e fervor frenético todo o clima de modorra que ambienta a relação entre a arte e o estado brasileiro. Uma estagnação burocrática: raras vezes um filme (ou obra de arte em geral) levou tão longe a repetição com fins destrutivos – da relação de fetiche com a tela – e auto-destrutivos. Fúria do olho do redemoinho: tudo é jogado com força centrípeta para um buraco negro de não-sentido. Tanto a rigidez sistemática de "Comédia", de Beckett, onde o relato come o próprio rabo e transforma-se lentamente em cacofonia e redundância, quanto o sentimento pirandelliano da falta de direcionamento dos personagens. "N personagens à procura de ficção – ou à deriva dela, já que fomos roubados", um possível subtítulo a O Signo do Caos.

c) Fellini disse, no documentário que antecedeu a exibição do filme de Sganzerla, que o único critério que conta para tudo e para todas as manifestações artísticas é a vitalidade. Sejamos claros e sucintos, porque talvez o leitor ainda não tenha percebido: O Signo do Caos é vital, transpira sangue e suor e imprime seus fluidos na película. Perto dele algumas frutas assumem outras colorações – ou a mesma coloração com outro significado –, os minerais voam mais longe, os rebeldes empalidecem.

d) O filme mais extremista, jusqu'auboutiste do cinema (brasileiro) desde A Idade da Terra, assinado Glauber Rocha, esse mesmo uma espécie de tributo não reconhecido a Sganzerla/Bressane.

e) Banal dizer que o filme é o enésimo filme de Sganzerla sobre Orson Welles. Nenhum filme de Sganzerla é sobre Welles. Todos são a partir dele – a contar do primeiro, O Bandido da Luz Vermelha, de todas as obras de seu autor a película com a qual O Signo do Caos mais parece. Semelhança estranha e nada fácil de explicar, desculpem. Confessamos nossa insuficiência.

f) Ainda assim Welles está lá, nos planos plagiados de Cidadão Kane – plongé repetitivo do vilão do DIP (Otávio Terceiro, fenomenal) jogando as folhas ao alto e vendo-as cair; na incrível montagem da parte em preto-e-branco, que voa como Mr. Arkadin; mas acima de tudo na presença do personagem onipotente que presume deter a verdade e se acha no direito de imprimir sua lei custe o que custar: Charles Foster Kane, Hank Quinlan, Arkadin, Bannister. Dissociados do mundo do qual são todavia donos, eles encontram na personagem de Otávio Terceiro um legítimo sucessor. Ciente de que exerce seu poder sem um saber correspondente para fazê-lo, ele só consegue emitir as mesmas frases – como o já onipotente e wellesiano personagem de Jô Soares em A Mulher de Todos.

g) Não esqueçamos jamais: O Signo do Caos tem tantas frases memoráveis quanto O Bandido da Luz Vermelha. A que mais fica é a do próprio Welles: "É preciso tirar o cinema do quarto de brinquedos".

h) Estrutura da trama do filme: Na primeira parte os capangas do DIP acham o baú com os negativos de It's All True; inconformados com a selvageria e com a quebra de protocolo do "gênio" que dirigiu o filme, decidem vetá-lo ad aeternum. Um deles, entretanto, vê nos rushes do filme a expressão mais pura da arte cinematográfica (ou da arte tout court) e tenta convencer seu chefe de que o filme merece ser visto, infrutiferamente (a parte é passada toda em preto-e-branco). Há um pequeno primeiro interlúdio filmado com pouca definição e cores saturadas: Camila Pitanga por trás de uma bandeira do Brasil: deitada em berço esplêndido, ela posa, bebe, conversa com um homem e brinca com uma bolinha transparente (voltaremos a isso). Depois, um segundo interlúdio em que uma menina corre por uma roça. Única seqüência "bonita" do filme, em off uma menina e sua mãe discutem sobre cor, preto-e-branco no cinema e sobre a cabeça confusa dos artistas. Até 1940, o mundo era em preto-e-branco. Por fim, uma segunda parte em que os personagens celebram numa festinha regada a destruição das latas do filme de Welles. Num deque, uma certa dama (de Xangai? uma odalisca?) espera o defensor do filme de Welles de braços abertos, para depois culpá-lo por ter perdido todo o dinheiro (sempre o dinheiro).

i) Um filme animal: um papagaio é o Tirésias e o côro da trama, o personagem mais lúcido é uma ave empalhada (a única ciente de sua condição). Mas talvez os personagens sejam mais animalescos.

j) Cena mais bela do filme: Camila Pitanga batendo bola com o esférico e transparente amuleto que está na mão de Charles Kane quando, morrendo, ele pronuncia a famosa palavra "Rosebud". Vale a carreira inteira de alguns cineastas...

l) "A imagem do caos é o próprio caos." O filme não é questão de explorar esse caos, mas de se deixar tomar por ele. Acentrado, selvagem e imprevisível como uma partícula, o filme antecipa planos, repete-os à exaustão (o capanga que só faz rir...), mas acima de tudo realiza a estratégia de compartimentar cada personagem e situação num quadro claustrofóbico e medonho. Mas nós é que nos sentimos como Janet Leigh em A Marca da Maldade, rodeados por celerados agentes do DIP (ou do DOPS, ou para qualquer efeito os gerentes de marketing tornados meta-secretários de cultura) querendo nos submeter à autoridade deles.

m) Ainda o Brasil como gigante adormecido, representado pela figura de tropical amazona que é Camila Pitanga. À exuberância das riquezas naturais da moça corresponde um autismo do relato, uma incapacidade de ficção e a impossibilidade de projetar sua beleza para além de sua própria seqüência. "Os brasileiros nunca deveriam ter nascido" (cito de memória, como tudo aqui), mas, pior, tudo bem, porque "já estão condenados a partir do momento em que nascem". Resiste a impressão de que Sganzerla já poderia ter superado a questão nacional em favor do nocional (Miramar de Bressane), mas em todo caso O Signo do Caos justifica e retrabalha a contento essa preocupação.

n) Se as células rítmicas do samba eram a chave de decifração para o maravilhamento de Welles com o país em Tudo É Brasil, aqui a "Aquarela do Brasil" de Ary Barroso, nosso hino informal (e por isso talvez nosso verdadeiro hino), é aqui assoviada com tons de escárnio. Um pandeiro é tocado, mas tratado tão mal quanto as latas dos filmes que carregam os negativos do filme de It's All True.

o) Difícil pensar em filmes tão opostos quanto Filme de Amor de Julio Bressane e O Signo do Caos. Opostos em como trabalham a relação com o mundo (entrega em Bressane, revolta em Sganzerla), em como participam de momentos existenciais e de reconhecimento da obra diferentes e como esses percursos se inscrevem na obra. Podemos dizer com alguma certeza que não era o filme que quase todos esperavam de um Sganzerla veterano. O Signo do Caos tem a virulência, a agressividade de um estreante, e a experiência de talho de um veterano.

p) Também, pelo estado degenerador em que se encontra a doença que acomete o realizador, o filme não venha em momento certo para um clima de pre-disposição em fazer de Sganzerla um coitado que merece nossa atenção. Mas ele, como artista ao menos, não precisa disso. É ainda e sempre um enragé, e está disposto a cuspir em nossa piedade. Justificadamente. Deixemos a caridade e a benevolência a quem de direito. A Sganzerla só a justiça já basta.

q) Um aspecto que talvez seja pouco observado é a condição das mulheres como musas. E, como inspiradoras da arte, elas estão em segundo plano no filme: linda, Djin Sganzerla aparece na tela muitas vezes mas é sempre ignorada pelos colegas que partilham com ela o mesmo plano. Resta posar para o espectador, porque dentro do filme ela não conseguirá cativar ninguém.

r) Montage mon beau souci. Novamente um filme que se resolve na montagem (Sganzerla ainda quer continuar mexendo no filme, aliás), a operação de juntar os planos como sendo a real definidora de sentido. Ritmo, respiração, continuidade e descontinuidade planejada, elogio nostálgico da dublagem (quase sempre fora de sincronia, como os italianos ou nossos melhores filmes nacionais). Um filme que se faz mais nas entrelinhas do que nas linhas.

s) Guará Rodrigues, Helena Ignez. Impossível deixar de mencioná-los.

t) Mais do que Ary Barroso, o filme tem o tom da outra única música do filme, a peça de disco inteiro The Black Saint And The Siner Lady de Charles Mingus. Dissonante, enérgica, metais chutando por todos os cantos, amor e voracidade reunidos em uma coisa só.

u) Porque não é só porque O Signo do Caos é um filme colérico que não haja adesão posível (um substrato visível de mundo a ser explorado, e um conseqüente amor por essa hipótese). Por isso, inclusive, o filme vai mais longe do que certos apocalípticos similares recentes. O mundo está destruído, o inimigo é forte e muito bem determinável, mas a arte ainda está por fazer. Mesmo como possibilidade, ela ainda persiste.

v) "The only American novelist living today who may conceivably be possessed by Genius" (Norman Mailer sobre William Burroughs). O único cineasta brasileiro vivo possuído pelo gênio, poderíamos dizer acerca de Sganzerla. Mr. Sganzerlá.

x) Um filme que tenta purgar em si todo um país, toda uma experiência de vida, toda uma infame e longeva relação entre poder e arte. O custo é caro, a retribuição improvável: será um filme maldito para sempre.

z) Um filme suicida para suicidas. Ame-o ou deixe-o em paz.


Ruy Gardnier