Numa noite qualquer, o senhor
Dante Lazaresco se sente mal. Morador de um país do
Terceiro Mundo (no caso, a Romênia), o senhor Lazaresco,
já idoso e apreciador de um eventual gole de bebida,
viverá uma noite de infernal périplo por hospitais,
onde será seguidamente empurrado adiante.
Seja pelo nome pouco sutilmente simbólico do personagem
(e temos ainda uma Eva, um Virgílio...), seja pela simples
descrição do enredo, o fato é que A Morte do Senhor
Lazaresco, a princípio, oferece poucos atrativos.
Afirmamos isso menos pela dureza do tema, e mais porque
imaginamos que já sabemos tudo sobre um tal filme antes
mesmo de vê-lo: denúncia-verdade de um sistema corrompido
e insuficiente, encenação perpassada de humor negro
anti-burocrático e miserabilista, denúncia institucional
e, quiçá no pior sentido, libelo “humanista”. Pois o
fato é que, sem deixar de ser exatamente nada disso,
o filme de Cristi Puiu, jovem realizador que faz aqui
seu segundo longa, é uma surpresa completa e arrebatadora.
Cabe tentar entender o porquê.
Para começar a procurar as pistas, cabe notar que a
denúncia aqui, se há, nunca é tola e inocente. Ou seja:
nem o senhor Lazaresco é nenhum santo, nem as pessoas
que os atendem nos hospitais são demônios. Se incompreensão
e desumanização há no processo, o filme de Puiu nos
mostra o tempo inteiro que eles são mais intrínsecos
de um sistema do que frutos de seres humanos categorizados.
É fato que há médicos mais ou menos preocupados, mas
nenhum deles é, simplesmente, um canalha. Vemos profissionais
cansados, vemos condições de trabalho desumanas, vemos
principalmente um sistema cheio de furos e programado
para ser desumanizante. Entendemos que a máquina é mais
forte que suas partes – e nisso o filme não está distante
de um documentário de Frederick Wiseman, por exemplo.
Se este é o parti pris do filme, mais importante
para seu sucesso é como ele o encena: a câmera viva
de Puiu (que, mesmo quando parada, nunca está num tripé),
a exploração atenta e detalhista do tempo em cada situação
exposta, e o trabalho com os atores, de um cuidado extremo.
A combinação metódica deste três elementos fazem com
que cada cena do filme, já a partir do prólogo no apartamento
do senhor Lazaresco, nos impregnem de uma tal presença
humana que é impossível não ter a adesão completa do
espectador a cada estágio da jornada que nos é proposta.
Puiu mistura a coragem de levar cada situação ao seu
limite com uma completa falta de exibicionismo, e o
resultado que obtém é desconcertante. A Morte do
Senhor Lazaresco é filme que se sente no estômago,
como poucos.
Mas, que não se enganem: é filme muito engraçado também.
Engraçado como cada tragédia está sempre prestes a se
tornar, e Puiu não deixa de enxergar isso. Só que sua
graça, para nosso alívio, nunca se dá às custas dos
personagens, e sim junto com eles. Se o absurdo e o
ridículo são parte intrínseca do universo mostrado,
pouca necessidade há de se pesar a mão na tentativa
de expô-los ainda mais. Assim, Puiu deixa que a sua
comicidade nasça do tempo, nasça da repetição, sem que
seja necessário montar uma lógica de “esquetes” dentro
da estrutura do filme. E é desta comicidade, possivelmente,
que deriva grande parte do impacto do trabalho: se forçasse
a barra num dramalhão culpabilizante e miserabilista,
Puiu não conseguiria a real adesão de quem assiste.
Ao conseguir identificar os diferentes pólos em jogo,
dá espaço para que venha à tona a tragédia, em sua dimensão
total.
Porque, claro, não nos enganemos: é de tragédia que
se trata aqui. A inevitabilidade desta, aliás, já está
brilhantemente assumida no título do filme, cuja inexorabilidade
começa a pesar fortemente lá pela metade da duração.
Mas, de fato, esta informação não é a que mais importa,
porque aqui o final é menos importante que o processo.
Afinal, a “morte” de que trata o título não é um momento,
e sim um caminho. Caminho onde um indivíduo vai se tornando,
lenta e inconfundivelmente, um amontoado de carne indefinida.
É este processo que esquadrinha com detalhismo, de fato,
o filme de Puiu. E, neste sentido, o trabalho com o
corpo do ator principal (Ion Fiscuteanu) é de fato impressionante
(a cena da sua raspada de cabeça é algo a não sair da
cabeça e do estômago por um bom tempo).
A morte do senhor Lazaresco é também a vida do senhor
Lazaresco, porque o que é viver senão um longo trajeto
até a morte? Metáfora possível da passagem de todos
nós por este mundo, o filme é esfuziante, ambíguo e
duro. A Morte do Senhor Lazaresco é, enfim (e
esta sua grande surpresa), cheio de vida. Nem por isso
mais fácil de absorver, mas certamente por isso quilômetros
acima de qualquer expectativa que podíamos ter de uma
outra abordagem banal de um tema tão complexo.
Eduardo Valente
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