A MORTE DO SENHOR LAZARESCO
Cristi Puiu, Moartea domnului Lazarescu, Romênia, 2005

Numa noite qualquer, o senhor Dante Lazaresco se sente mal. Morador de um país do Terceiro Mundo (no caso, a Romênia), o senhor Lazaresco, já idoso e apreciador de um eventual gole de bebida, viverá uma noite de infernal périplo por hospitais, onde será seguidamente empurrado adiante.

Seja pelo nome pouco sutilmente simbólico do personagem (e temos ainda uma Eva, um Virgílio...), seja pela simples descrição do enredo, o fato é que A Morte do Senhor Lazaresco, a princípio, oferece poucos atrativos. Afirmamos isso menos pela dureza do tema, e mais porque imaginamos que já sabemos tudo sobre um tal filme antes mesmo de vê-lo: denúncia-verdade de um sistema corrompido e insuficiente, encenação perpassada de humor negro anti-burocrático e miserabilista, denúncia institucional e, quiçá no pior sentido, libelo “humanista”. Pois o fato é que, sem deixar de ser exatamente nada disso, o filme de Cristi Puiu, jovem realizador que faz aqui seu segundo longa, é uma surpresa completa e arrebatadora. Cabe tentar entender o porquê.

Para começar a procurar as pistas, cabe notar que a denúncia aqui, se há, nunca é tola e inocente. Ou seja: nem o senhor Lazaresco é nenhum santo, nem as pessoas que os atendem nos hospitais são demônios. Se incompreensão e desumanização há no processo, o filme de Puiu nos mostra o tempo inteiro que eles são mais intrínsecos de um sistema do que frutos de seres humanos categorizados. É fato que há médicos mais ou menos preocupados, mas nenhum deles é, simplesmente, um canalha. Vemos profissionais cansados, vemos condições de trabalho desumanas, vemos principalmente um sistema cheio de furos e programado para ser desumanizante. Entendemos que a máquina é mais forte que suas partes – e nisso o filme não está distante de um documentário de Frederick Wiseman, por exemplo.

Se este é o parti pris do filme, mais importante para seu sucesso é como ele o encena: a câmera viva de Puiu (que, mesmo quando parada, nunca está num tripé), a exploração atenta e detalhista do tempo em cada situação exposta, e o trabalho com os atores, de um cuidado extremo. A combinação metódica deste três elementos fazem com que cada cena do filme, já a partir do prólogo no apartamento do senhor Lazaresco, nos impregnem de uma tal presença humana que é impossível não ter a adesão completa do espectador a cada estágio da jornada que nos é proposta. Puiu mistura a coragem de levar cada situação ao seu limite com uma completa falta de exibicionismo, e o resultado que obtém é desconcertante. A Morte do Senhor Lazaresco é filme que se sente no estômago, como poucos.

Mas, que não se enganem: é filme muito engraçado também. Engraçado como cada tragédia está sempre prestes a se tornar, e Puiu não deixa de enxergar isso. Só que sua graça, para nosso alívio, nunca se dá às custas dos personagens, e sim junto com eles. Se o absurdo e o ridículo são parte intrínseca do universo mostrado, pouca necessidade há de se pesar a mão na tentativa de expô-los ainda mais. Assim, Puiu deixa que a sua comicidade nasça do tempo, nasça da repetição, sem que seja necessário montar uma lógica de “esquetes” dentro da estrutura do filme. E é desta comicidade, possivelmente, que deriva grande parte do impacto do trabalho: se forçasse a barra num dramalhão culpabilizante e miserabilista, Puiu não conseguiria a real adesão de quem assiste. Ao conseguir identificar os diferentes pólos em jogo, dá espaço para que venha à tona a tragédia, em sua dimensão total.

Porque, claro, não nos enganemos: é de tragédia que se trata aqui. A inevitabilidade desta, aliás, já está brilhantemente assumida no título do filme, cuja inexorabilidade começa a pesar fortemente lá pela metade da duração. Mas, de fato, esta informação não é a que mais importa, porque aqui o final é menos importante que o processo. Afinal, a “morte” de que trata o título não é um momento, e sim um caminho. Caminho onde um indivíduo vai se tornando, lenta e inconfundivelmente, um amontoado de carne indefinida. É este processo que esquadrinha com detalhismo, de fato, o filme de Puiu. E, neste sentido, o trabalho com o corpo do ator principal (Ion Fiscuteanu) é de fato impressionante (a cena da sua raspada de cabeça é algo a não sair da cabeça e do estômago por um bom tempo).

A morte do senhor Lazaresco é também a vida do senhor Lazaresco, porque o que é viver senão um longo trajeto até a morte? Metáfora possível da passagem de todos nós por este mundo, o filme é esfuziante, ambíguo e duro. A Morte do Senhor Lazaresco é, enfim (e esta sua grande surpresa), cheio de vida. Nem por isso mais fácil de absorver, mas certamente por isso quilômetros acima de qualquer expectativa que podíamos ter de uma outra abordagem banal de um tema tão complexo.

Eduardo Valente