Poderíamos
chamar O Senhor da Guerra de documentário?
Dificilmente, mesmo que Nanook, um clássico
dessa seara de filmes, tenha uma relação
tão semelhante com a realidade. Mas o que interessa
aqui é o fato de que as principais virtudes desse
filme de Andrew Niccol são aquelas que se espera
de um bom documentário informativo/jornalístico:
apresentação e exaustão de um tema
complexo e pouco considerado, veemência e relevância
em torno de um tema social da maior importância
(e ainda mais num momento oportuno de discussão
na sociedade brasileira), mostrar as contradições
inerentes na relação entre o business
dos países e a defesa que fazem da paz e da democracia,
etc. Um problema se coloca – e de certa forma se coloca
da mesma forma que nas discussões sobre a validade
do cinema de Michael Moore –: para quê, então,
fazer um filme de ficção? A resposta,
nos dois casos, tenta se justificar (tanto a ficção
quanto no caso desse filme ou a linguagem televisiva-pegadinha-trash
do cinema de Moore) pela maior receptividade e aceitação
de público. Mais um motivo de aproximar isso
tudo da questão do documentário, porque
é acima de tudo uma tentativa de vínculo
social que se tenta estabelecer entre produtores conscientizados
e público interessado.
Afora isso, não há muito mais coisas que
o filme revela. Podemos louvar O Senhor da Guerra
por construir seu personagem entre Estados Unidos e
Ucrânia (é aí que reencontramos
a Little Odessa, gueto ucraniano em Nova York que havíamos
conhecido com o incrivelmente superior Fuga para
Odessa de James Gray), entre os valores de "livre
empreendimento" do capitalismo americano e o desmonte
do armamento pesado ucraniano a partir da dissolução
da União Soviética. Podemos gostar da
maneira que o filme mostra como os grandes megaempresários
circulam de maneira muito harmônica entre as figuras
do glamour (Ava Fontaine, também saída
de Little Odessa e transformada em megamodelo, vira
a esposa do protagonista Yuri Orlov) e os chefes de
estado, sejam eles ditadores sanguinários da
África, sejam os soturnos engravatados do oficialato
americano. Podemos, finalmente, apreciar a forma como
o filme relaciona as maiores potências mundiais
ao tráfico ilegal de armas, e como ao final mostra
que a atividade ilegal é não só
tolerada pelos governos, mas incentivada porque também
lateralmente os ajuda, tanto política quanto
economicamente.
No entanto, podemos gostar de tudo isso, e ainda assim
O Senhor da Guerra só se sustenta nesses
termos. Toda a preocupação de mise-en-scène
que um filme como Gattaca, seu primeiro longa,
mostrava reduz-se aqui a efeitos não muito distantes
do cinema mais pirotécnico e infantil de um Michael
Bay ou de um Peter Jackson. Contemplemos a "sacada
genial": na seqüência de abertura, filmar
do ponto de vista de um projétil o caminho que
vai desde sua feitura na fábrica até a
colocação numa embalagem, passando por
aviões, chegando ao tambor da arma propriamente
dita e indo terminar na testa de um adolescente negro
com cara de vítima. Genial ou grotesco? Até
onde podemos ir com nossas boas intenções?
Devemos vender uma idéia como se vende um produto,
sensibilizando apenas pelo sensacionalismo, como se
algo como a razão não fosse interessante
o suficiente? São perguntas que tocam profundamente
a construção de imagens hoje, dos filmes
à publicidade (e é particularmente chocante
ver a estupidez das publicidades pró-Sim e pró-Não
na campanha para o referendo do desarmamento) e que
Andrew Niccol não consegue equacionar minimamente
com o seu filme. Se dirigir filmes como Gattaca
e S1m0ne, além de roteirizar e produzir
O Show de Truman colocavam Niccol como uma figura
verdadeiramente interessada na contemporaneidade, a
partir de O Senhor das Armas mais parece que
temos diante de nós um novo Stanley Kramer, ou
um novo Oliver Stone: um diretor que parasita um tema
importante para compensar a insuficiência estilística.
Ruy Gardnier
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