A passagem de Desplechin pelo
Festival do Rio em 2004 havia sido bem discreta. Nem
decepcionante nem surpreendente, apenas morna: Léo,
en jouant “Dans la compagnie des hommes” não desperta
grandes reações, no máximo um interesse volta e meia
bloqueado pela tendência do filme a abafar os personagens
no seu dispositivo. Mas o filme que ele realizou logo
depois, faz um caminho diferente. Reis e Rainha
é composto de planos ventilados pelo mundo: filme aberto
e generoso, hospitaleiro, sempre pronto a incluir personagens
e situações.
Dar vida aos personagens, fazê-los existir. Em Esther
Kahn, após a vida (fora do palco) atravessar a carne
da protagonista, nascia uma atriz. Reis e Rainha
usa o mesmo processo, mas no sentido inverso: um filme
cujo grande objetivo é devolver os personagens à vida.
Por aí vai seu diferencial em relação à grande maioria
dos filmes que passaram no festival, que – bem ou mal
sucedidos – se estruturam na primazia do conceito e
do estilo. A mise en scéne de Desplechin, contrariamente,
é para o ator; o princípio organizador do plano é o
personagem – seu humor, seu corpo, seu drama. O objeto
privilegiado é a imagem do ator, e o filme jamais teria
êxito algum caso não contasse com a performance genial
de Mathieu Amalric, um dos maiores atores franceses
de hoje. O filme acompanha a respiração do personagem
de Amalric, Ismaël, um clown suicida, tragicomédia
ambulante, menos rei do que bobo da corte. O trabalho
dele nos chega por uma simpatia natural e fulgurante,
um sentimento de cumplicidade diferente da identificação
solicitada pelo herói do cinema clássico – não é questão
de se identificar, mas simplesmente de ser cúmplice
de alguém.
Ou de adotá-lo: Reis e Rainha possui histórias
de famílias recompostas a partir da adoção, do acolhimento
do outro. Assim como Huckabees – A Vida é uma Comédia
(David O. Russell), o filme purga a era do psiquismo
e da auto-ajuda. Ismaël é o desejo de não ser grande,
de continuar pequeno face ao mundo. Retrato fiel de
um dos comportamentos mais comuns desta década: o pavor
da idade adulta. Tudo menos ter 40 anos nos anos 2000.
A meta é clara: fazer um filme que ultrapasse os personagens
e, principalmente, que ultrapasse o seu realizador.
Mas à fabulação de um outro mundo, miniaturização
às avessas que tanto apraz às crianças adultas – algumas
adoráveis – do cinema contemporâneo (Tim Burton, Wes
Anderson, Michel Gondry), ele prefere o passeio por
esse mundo em escala natural aqui mesmo. Desplechin
não utiliza o cinema para encontrar um mundo adequado
a nossos desejos (e, portanto, passível de possessão).
É antes o próprio indesejado que precisa ser admitido
e apreciado.
O filme começa com “Moonriver” tocada no violão, voz
off de Nora (Emmanuelle Devos), fotografia inebriante
(de Eric Gautier): mas a câmera inquieta, os cortes
inesperados e a frontalidade que o filme de cara assume
dão um ar de que é preciso ir direto ao assunto, sem
cerimônia e sem rodeios – as maluquices de Ismaël também
entram no despojamento do registro. Bibelô coisa nenhuma:
o filme é doce na própria secura. O que encanta no filme
é que essa doçura está no olhar, não se apaga.
Desplechin fez Reis e Rainha a partir de uma
impossibilidade: a impossibilidade de uma apreensão
coerente da vida (“je ne sais pas”, “não sei” é a última
frase de Ismaël no filme), a impossibilidade de um cinema
de gênero para quem cresceu assistindo ao cinema de
gênero (restam talvez a música e a penumbra que transformam
um homem de chapéu em personagem noir), a impossibilidade
de um enredo. Reis e Rainha é um filme solto,
fragmentário, remendo de episódios tirados de outros
filmes possíveis (porque este aqui é impossível). O
assalto à loja do pai de Ismaël, por exemplo, é a magnífica
cena de um outro filme que não sabemos exatamente onde
está – apesar da sensação de que o conhecemos muito
bem. A duração do filme se admite excedida pela duração
de um “fora”: a separação em duas partes e mais um epílogo
é só para não dar o braço a torcer, pois Desplechin
nutre o filme da sua incapacidade de administrar o tempo
das coisas. O jump-cut é a única montagem possível
dentro de uma ficção cuja duração é determinada por
elementos excêntricos a ela mesma. Tudo que resta a
Reis e Rainha é o presente do plano. Ao atribuir
a Nora uma definição da mulher, em oposição à natureza
retilínea do homem, Ismaël fala também da estrutura
de Reis e Rainha: um filme masculino – que avança
em linha reta, “vive para morrer” – invadido pela inconstância
feminina – a mulher vive em “pequenas bolhas de tempo”;
quando uma estoura, basta ir para outra.
Para Desplechin, por conseguinte, basta transitar de
um momento a outro. Ismaël internado no hospital psiquiátrico,
se consultando com a renomada psicanalista negra que
termina as consultas bruscamente, roubando remédios
ao lado da jovem que se autodenomina “A Chinesa”, dançando
break durante uma terapia de grupo, conversando
com o advogado tão tresloucado quanto ele. Nora habitando
bolhas de tempo distintas, entre flash-backs
e presente, marido e ex-amantes, pai moribundo e filho
sem pai. Entre ela e Ismaël, sobreviveu um amor fraternal,
descarnado (“o irmão que nunca tive”, ela diz). Ele
a princípio não se sente em condições de voltar a se
envolver seriamente com as mulheres, por isso demora
até procurar “A Chinesa” depois que sai do hospital.
Tudo leva tempo nesse universo infantil-adulto. O fechamento
perfeito está no belo epílogo, encontro do adulto Ismaël
e da criança Elias, no museu histórico. Quase pai e
filho. Com Nora, no passado, quase uma família. “Não
posso adotar você, e não podemos ser amigos também,
você é criança e eu sou adulto, não é a mesma coisa...”,
diz Ismaël enquanto Elias brinca ao redor, faz caretas
entre uma expressão compenetrada e outra. Paternidade,
amizade, desligamento: o que tiver de acontecer, só
o tempo (para além do filme) dirá. Como pano de fundo
da conversa se encontram hieróglifos, totens, pinturas
rupestres, Vênus inomináveis: o universo continua muito
maior que nós, enfim.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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