A família entra na loja: pai,
mãe e filhos pequenos são atendidos por vendedores simpáticos.
Nas prateleiras bem arrumadas, há sandálias, camisas
estampadas, skates e pranchas de surfe. Ao ser perguntado
sobre a encomenda, o proprietário vai à sala nos fundos,
e pergunta ao empregado que a produz quando a prancha
ficará pronta. Depois de responder, Skip, antigo dono
da Zypher, que ficava naquele mesmo lugar, ex-rei de
Dogtown, bebe uns tragos, aumenta o volume da música
e continua seu trabalho. Filmada em plano-seqüência,
através de travelling que atravessa de um ambiente
a outro, a cena revela o tom elegíaco e nostálgico que
a diretora Catherine Hardwicke e o roteirista Stacy
Peralta conferem a Os Reis de Dogtown, que mostra
a passagem da contracultura dos skatistas – que, nos
anos 70, se estabeleceu em Venice, Califórnia – para
a economia de mercado que acabou por devorá-la.
Stacy Peralta conhece bem o tema, já que foi um dos
z-boys originais, ou seja, um dos responsáveis
pela criação da cultura alternativa do skatistas, em
que jovens de classes sociais baixas, egressos de Venice,
resolveram se divertir andando de skates, uma vez que,
de um lado, a calmaria do mar no verão de 1975 os impossibilitava
de surfar (e existe mais concreto do que ondas no mundo),
e, de outro, a seca na Califórnia e o racionamento de
água liberava as piscinas dos ricos (cujas casas eram
invadidas pelos adolescentes) para serem usadas como
pistas. Assim, Peralta – diretor de Dogtown e Z-boys
e de Riding Giants, ambos documentários
que tratam de temas semelhantes – acompanha a trajetória
dele mesmo, de Tony Alva e de Jay-Bob, de início sob
a tutela de Skip e, depois da dissolução do grupo, cada
qual defendendo seus interesses financeiros no mercado
de alta competitividade. Exceção feita a Jay-Bob, único
que, embora também tenha abandonado Skip a fim de sustentar
a mãe, mantêm-se fiel aos ideais de liberdade e de hedonismo
que os demais esqueceram.
Os Reis de Dogtown começa titubeante, pela incapacidade
de Hardwicke em criar a ambientação necessária para
o desenrolar dos acontecimentos. A Califórnia da década
de 70 representada pela diretora está impregnada pela
visão conservadora da Hollywood do século XXI (a bem
da verdade, do cinema comercial como um todo, vide o
tratamento nada ousado que Sandra Werneck e Walter Carvalho
deram a Cazuza – O Tempo Não Pára). Em conseqüência,
torna-se difícil explicar o surgimento da contracultura
dos z-boys, já que Venice, na prática gueto sujo
e pobre de frente para a praia, é maquiado para se apresentar
limpo e bem-cuidado - assim como as drogas são tratadas
de forma meramente anedótica e os relacionamentos dentro
do grupo e na rede social imediata que o cerca transpiram
a civilidade e a inocência características de festas
infantis. Ao contrário de Larry Clark, especialista
em construir a realidade selvagem e crua em que os jovens
sem perspectivas da Califórnia de hoje subsistem, Catherine
Hardwicke não consegue interagir com o espaço que retrata,
filtrando o meio em ebulição pelo olhar de quem o submete
à procura pelo sucesso de bilheteria – incomodam, sobremaneira,
as imagens que apostam na beleza plástica do ambiente
(o pôr-do-sol chamativo na seqüência em que Jay-Bob
se desculpa com Skip, por exemplo) e na fetichização
dos objetos (skates e pranchas enquadrados, desde o
início, como produtos para consumo de massa).
No entanto, a partir do rompimento dos z-boys,
Os Reis de Dogtown assume de vez suas reais intenções,
pois mergulha no romantismo e na nostalgia de uma época
perdida, quando a contracultura, antes de ser engolida
pelo dinheiro, reinava absoluta. Apesar da falha em
caracterizar o ambiente, a cineasta não pode ser acusada
de desgostar de seus personagens: pelo contrário, ela
nutre imenso carinho por eles e pelo que fizeram, e
é sintomático que o filme se centre nos dois que sempre
estiveram mais à margem, Jay-Bob e Skip. Se Alva e Stacy
são corrompidos pelo marketing, para se tornarem garotos-propagandas
de diversas marcas, Jay-Bob continua à procura de pistas
e de manobras inovadoras, com os pés fincados no submundo
(brigas de bar, prisão por drogas), enquanto Skip, com
o fim do ideal de fabricar pranchas nas horas vagas
e de surfar tão súbito o mar ofereça a chance, aceita
a derrota – na bela seqüência em que tenta convencer
Stacy a ficar, mesmo sabendo da inutilidade do gesto
– e, embora humilhado pelo trabalho na loja família,
mantém-se firme e altivo, próximo ao que gosta. A elegia
está presente em cada plano que critica a transformação
da cultura do skate em entretenimento – o ridículo jingle
que o publicitário faz Jay-Bob cantar – ou na cena final
quando, reunidos pela última vez, os z-boys andam
juntos na piscina de Sid, amigo prestes a morrer de
câncer.
Atualmente, informa Os Reis de Dogtown, Stacy
Peralta é cineasta de sucesso, e Tony Alva, executivo
se sua própria empresa, enquanto Jay-Bob – reconhecido
como a fagulha que iniciou o movimento –, em condicional
por porte de drogas, está no Havaí pegando ondas e andando
de skate. Apesar dos tropeços dos z-boys (e do
filme que conta sua história), o sonho, de certo modo,
ainda permanece vivo naquele que inspirou toda uma geração.
Paulo Ricardo de Almeida
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