OS REIS DE DOGTOWN
Catherine Hardwicke, Lords of Dogtown, EUA, 2005

A família entra na loja: pai, mãe e filhos pequenos são atendidos por vendedores simpáticos. Nas prateleiras bem arrumadas, há sandálias, camisas estampadas, skates e pranchas de surfe. Ao ser perguntado sobre a encomenda, o proprietário vai à sala nos fundos, e pergunta ao empregado que a produz quando a prancha ficará pronta. Depois de responder, Skip, antigo dono da Zypher, que ficava naquele mesmo lugar, ex-rei de Dogtown, bebe uns tragos, aumenta o volume da música e continua seu trabalho. Filmada em plano-seqüência, através de travelling que atravessa de um ambiente a outro, a cena revela o tom elegíaco e nostálgico que a diretora Catherine Hardwicke e o roteirista Stacy Peralta conferem a Os Reis de Dogtown, que mostra a passagem da contracultura dos skatistas – que, nos anos 70, se estabeleceu em Venice, Califórnia – para a economia de mercado que acabou por devorá-la.

Stacy Peralta conhece bem o tema, já que foi um dos z-boys originais, ou seja, um dos responsáveis pela criação da cultura alternativa do skatistas, em que jovens de classes sociais baixas, egressos de Venice, resolveram se divertir andando de skates, uma vez que, de um lado, a calmaria do mar no verão de 1975 os impossibilitava de surfar (e existe mais concreto do que ondas no mundo), e, de outro, a seca na Califórnia e o racionamento de água liberava as piscinas dos ricos (cujas casas eram invadidas pelos adolescentes) para serem usadas como pistas. Assim, Peralta – diretor de Dogtown e Z-boys e de Riding Giants, ambos documentários que tratam de temas semelhantes – acompanha a trajetória dele mesmo, de Tony Alva e de Jay-Bob, de início sob a tutela de Skip e, depois da dissolução do grupo, cada qual defendendo seus interesses financeiros no mercado de alta competitividade. Exceção feita a Jay-Bob, único que, embora também tenha abandonado Skip a fim de sustentar a mãe, mantêm-se fiel aos ideais de liberdade e de hedonismo que os demais esqueceram.

Os Reis de Dogtown começa titubeante, pela incapacidade de Hardwicke em criar a ambientação necessária para o desenrolar dos acontecimentos. A Califórnia da década de 70 representada pela diretora está impregnada pela visão conservadora da Hollywood do século XXI (a bem da verdade, do cinema comercial como um todo, vide o tratamento nada ousado que Sandra Werneck e Walter Carvalho deram a Cazuza – O Tempo Não Pára). Em conseqüência, torna-se difícil explicar o surgimento da contracultura dos z-boys, já que Venice, na prática gueto sujo e pobre de frente para a praia, é maquiado para se apresentar limpo e bem-cuidado - assim como as drogas são tratadas de forma meramente anedótica e os relacionamentos dentro do grupo e na rede social imediata que o cerca transpiram a civilidade e a inocência características de festas infantis. Ao contrário de Larry Clark, especialista em construir a realidade selvagem e crua em que os jovens sem perspectivas da Califórnia de hoje subsistem, Catherine Hardwicke não consegue interagir com o espaço que retrata, filtrando o meio em ebulição pelo olhar de quem o submete à procura pelo sucesso de bilheteria – incomodam, sobremaneira, as imagens que apostam na beleza plástica do ambiente (o pôr-do-sol chamativo na seqüência em que Jay-Bob se desculpa com Skip, por exemplo) e na fetichização dos objetos (skates e pranchas enquadrados, desde o início, como produtos para consumo de massa).

No entanto, a partir do rompimento dos z-boys, Os Reis de Dogtown assume de vez suas reais intenções, pois mergulha no romantismo e na nostalgia de uma época perdida, quando a contracultura, antes de ser engolida pelo dinheiro, reinava absoluta. Apesar da falha em caracterizar o ambiente, a cineasta não pode ser acusada de desgostar de seus personagens: pelo contrário, ela nutre imenso carinho por eles e pelo que fizeram, e é sintomático que o filme se centre nos dois que sempre estiveram mais à margem, Jay-Bob e Skip. Se Alva e Stacy são corrompidos pelo marketing, para se tornarem garotos-propagandas de diversas marcas, Jay-Bob continua à procura de pistas e de manobras inovadoras, com os pés fincados no submundo (brigas de bar, prisão por drogas), enquanto Skip, com o fim do ideal de fabricar pranchas nas horas vagas e de surfar tão súbito o mar ofereça a chance, aceita a derrota – na bela seqüência em que tenta convencer Stacy a ficar, mesmo sabendo da inutilidade do gesto – e, embora humilhado pelo trabalho na loja família, mantém-se firme e altivo, próximo ao que gosta. A elegia está presente em cada plano que critica a transformação da cultura do skate em entretenimento – o ridículo jingle que o publicitário faz Jay-Bob cantar – ou na cena final quando, reunidos pela última vez, os z-boys andam juntos na piscina de Sid, amigo prestes a morrer de câncer.

Atualmente, informa Os Reis de Dogtown, Stacy Peralta é cineasta de sucesso, e Tony Alva, executivo se sua própria empresa, enquanto Jay-Bob – reconhecido como a fagulha que iniciou o movimento –, em condicional por porte de drogas, está no Havaí pegando ondas e andando de skate. Apesar dos tropeços dos z-boys (e do filme que conta sua história), o sonho, de certo modo, ainda permanece vivo naquele que inspirou toda uma geração.

Paulo Ricardo de Almeida