Com ou sem armas: em memória de John J. Rambo
Surpresa maravilhosa essa de, ao rever um filme
da infância, descobrir uma obra de vigor incalculável,
para além da nostalgia e da fascinação
pela aventura bem conduzida. Rambo Programado para
Matar é um dos melhores filmes sobre a guerra
do Vietnã, além de um neo-western de
revisão em que como apontou Serge Daney na
época do lançamento o protagonista é
o índio. John Rambo é o selvagem que fica
na dele, mas com quem resolvem comprar briga. E com
um detalhe: um casaco de exército que o torna
tudo de que os americanos queriam distância naquele
momento. Ele é a humilhação do
perdedor, a cicatriz da derrota no front asiático.
Na velha história do andarilho que de passagem
por uma cidade se vê obrigado a reagir à
hostilidade com que é recebido, ele está
longe da posição de fronteira entre a
lei e a selva. Ele não estabelece compromisso
algum com a cidade, proposital ou acidentalmente. A
cidade, a lei, a civilização, nada disso
lhe diz mais respeito, tudo lhe foi tirado (a começar
pelos amigos) durante ou depois da guerra. Quando Rambo
retorna à cidade, é para destruí-la.
"They drew first blood", é o que diz
pelo walkie-talkie ao Coronel Trautman. "Eles",
liderados pelo xerife interpretado por Brian Dennehy,
atiraram primeiro. E quem são "eles"?
Os Estados Unidos da América é incrível
pensar que a idéia do primeiro Rambo depois
seria completamente invertida no segundo e terceiro
filmes da série, quando John Rambo passa a representar
a América, e não mais ser perseguido
por seus representantes.
O xerife da cidade pequena, neste primeiro filme, interpela
Rambo como se dirigindo a um vagabundo, uma ameaça.
Mas na verdade tudo que ele faz é mexer com quem
está quieto, atirar pedras a um poço de
traumas de guerra. Rambo era apenas o passante, só
queria achar um lugar para comer alguma coisa, seu habitat
nem é na cidade talvez na selva, talvez no
Vietnã, talvez em lugar nenhum. "Não
queremos pessoas como você por aqui", diz
o xerife. Há algo mais nessa sentença
do que a típica histeria provinciana contra os
"estranhos": sem saber que fala com um soldado
de elite, um boina-verde, o xerife faz o exorcismo inconsciente
de uma potência militar transformada em pesadelo.
O antigo sonho da máquina de guerra perfeita
precisa ser posto de lado, ao menos enquanto a imagem
de sua derrota para um povo magro e com pouca munição
ainda for recente. Para reerguer o espírito bélico
norte-americano, só voltando às origens,
ou seja, ao combate interno, à guerra civil.
A sucessão de investidas em terras estrangeiras,
distantes, resultou na derrota para um inimigo que,
de tão diferente, se mostrou invencível.
E é justamente essa a prova que Rambo dará
pela segunda vez: de que adianta um exército
de destruição massiva, um arsenal com
tecnologia de ponta, se o inimigo se embrenha por túneis
cheios de ratos, às vezes se alimenta desses
ratos, se move como um fantasma pela mata, realiza emboscadas?
O curto-circuito é primoroso: as montanhas no
Noroeste dos Estados Unidos e o Vietnã podem
ser a mesma coisa; o ex-combatente norte-americano discriminado
e o vietcongue podem se defender da mesma forma. Já
na primeira cena da delegacia, o tratamento que Rambo
recebe rapidamente o faz lembrar das torturas sofridas
em alguma masmorra vietnamita. Seu corpo se torna, a
partir dali, "uma memória que reage".
O visual que depois será desvirtuado na série
para transformá-lo num herói de quadrinho,
defensor da nação (Sébastien Bénédict
faz uma ótima análise dessa transição
em seu blog, intitulado "Ce qui nous regarde"),
aparece aqui como uma afirmação radical
da alteridade de Rambo em relação àquela
comunidade que o caça: cabelo comprido, fita
amarrada na cabeça, manta improvisada o índio
declara guerra. "Não existe civil confiável",
Rambo confessa a Trautman e, de fato, o garoto que
ele poupa irá apontá-lo, logo depois,
para um grupo de caçadores. Para essa guerra,
no entanto, os policiais não estavam preparados:
corpo-a-corpo, ataque sorrateiro na calada da noite,
tática suicida.
Rambo é ao mesmo tempo o "nativo" que
improvisa meios e se defende como pode e o filho abandonado
pela mãe pátria. Resta um pai adotivo,
Coronel Trautman, o criador desse "Frankenstein"
em versão militar. Quando tiram a camisa de Rambo
na delegacia e as cicatrizes chamam a atenção
de Mitch (David Caruso em um de seus primeiros papéis
no cinema), o policial de mais bom senso, que pergunta
onde ele terá adquirido aquelas marcas de violência,
o outro policial responde com a voz ruminando ódio
entre os dentes: "Who gives a shit?". Quem
se importa com o soldado treinado para ganhar a guerra,
para construir uma nação vitoriosa? Quem
ainda se lembra dele? Querem mais é apagá-lo,
por isso se mostra imprescindível a cena com
o exército de amadores que vai a seu encalço
na gruta em que ele se esconde. Um dono de farmácia
que nas horas vagas pratica ações militares
como se o recrutamento fosse sempre uma questão
de urgência, isto é, houvesse sempre uma
guerra em curso, necessitando de civis para engrossar
o front se borra de medo de chegar perto da gruta.
Todos sentem medo, todos são vulneráveis
ou representam uma covardia pós-Vietnã,
uma América que teme o homem-a-homem, mas que
não hesita em atirar de bazuca contra um único
corpo encurralado. Rambo Programado para Matar
prefigura as novas políticas de guerra norte-americanas,
como a lógica de apagamento do outro à
distância, implementada na Guerra do Golfo: o
jogo agora consiste em impedir que o inimigo ganhe rosto,
matá-lo de uma posição em que não
é possível enxergá-lo o que equivale
a evitar que ele vire imagem.
Rambo Programado para Matar serviu tanto de
relato crítico do seu tempo quanto de terapia
de choque. O último plano mostra Rambo saindo
de dentro da delegacia (epicentro do filme, onde toda
ação começa e acaba) totalmente
destruída por ele e se entregando às autoridades,
caminhando tristemente ao lado de Trautman. O decorrer
da série mostraria que ali começava a
reconstrução de um exército, o
que tornava necessário liquidar os resquícios
da última batalha. Ou melhor: tratar essa batalha
como o erro fundamental ao aprendizado do novo programa
militar. A indústria hollywoodiana soube
muito bem o que fazer para transformar um anti-herói
em herói, um filme de ruptura (Rambo Programado
para Matar) em filme conservador (Rambo II
A Missão). Boa parte de sua eficácia
sai desse mecanismo perverso, sem dúvida, mas
fascinante justamente nas suas frestas e fissuras (onde
Kotcheff se embrenhou a exemplo de tantos outros) :
fazer também dos rituais de transição
uma ferramenta de permanência. Egresso da TV,
para onde voltaria nos anos 90, Ted Kotcheff realizou
o que possivelmente foi o primeiro grande filme a trabalhar
a má consciência oriunda da Guerra do Vietnã
(considerando que Apocalypse Now só é
grande na duração). Seu filme é
muito mais que um belo exemplar de um cinema de ação
que não mais se faz agora que o bom artesanato
é desvalorizado em função de uma
suposta profundidade da filiação ao tema
(os votos de fidelidade a Tolkien de Peter Jackson,
o enredo iniciático do Batman de Christopher
Nolan), e mega-projetos de gênero são colocados
nas mãos de diretores que não têm
o mínimo talento para dirigir uma cena de ação
(e se o cinema de aventura hoje sai do artesão
e vai para o nerd, é em parte porque a formação
estética de seu público já se dá
menos na sala de cinema do que nos quadrinhos, no RPG
e em algumas séries televisivas). Mas o primeiro
Rambo continua lá: mais forte na sua observação
sobre o modo como o veterano de guerra é tratado
nos EUA do que Nascido em 4 de Julho; mais acurado
na avaliação de que o conflito no Vietnã
era apenas um desdobramento da violência fratricida
inaugural (em se tratando dos Estados Unidos) do que
Platoon. Um filme com a melancolia de um personagem
que se sente sozinho no mundo, exilado no próprio
país, filme chuvoso, que envia um choro longínquo,
mas ainda presente, como demonstrado por Willian Friedkin
em Caçado (2003), uma excelente retomada
do seu enredo. Quem atacou primeiro? Essa é a
pergunta que mais do que nunca os norte-americanos se
fazem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Universal)
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