RAMBO – PROGRAMADO PARA MATAR
Ted Kotcheff, First Blood, EUA, 1982
 

Com ou sem armas: em memória de John J. Rambo

Surpresa maravilhosa essa de, ao rever um filme da infância, descobrir uma obra de vigor incalculável, para além da nostalgia e da fascinação pela aventura bem conduzida. Rambo – Programado para Matar é um dos melhores filmes sobre a guerra do Vietnã, além de um neo-western de revisão em que – como apontou Serge Daney na época do lançamento – o protagonista é o índio. John Rambo é o selvagem que fica na dele, mas com quem resolvem comprar briga. E com um detalhe: um casaco de exército que o torna tudo de que os americanos queriam distância naquele momento. Ele é a humilhação do perdedor, a cicatriz da derrota no front asiático. Na velha história do andarilho que – de passagem por uma cidade – se vê obrigado a reagir à hostilidade com que é recebido, ele está longe da posição de fronteira entre a lei e a selva. Ele não estabelece compromisso algum com a cidade, proposital ou acidentalmente. A cidade, a lei, a civilização, nada disso lhe diz mais respeito, tudo lhe foi tirado (a começar pelos amigos) durante ou depois da guerra. Quando Rambo retorna à cidade, é para destruí-la. "They drew first blood", é o que diz pelo walkie-talkie ao Coronel Trautman. "Eles", liderados pelo xerife interpretado por Brian Dennehy, atiraram primeiro. E quem são "eles"? Os Estados Unidos da América – é incrível pensar que a idéia do primeiro Rambo depois seria completamente invertida no segundo e terceiro filmes da série, quando John Rambo passa a representar a América, e não mais ser perseguido por seus representantes.

O xerife da cidade pequena, neste primeiro filme, interpela Rambo como se dirigindo a um vagabundo, uma ameaça. Mas na verdade tudo que ele faz é mexer com quem está quieto, atirar pedras a um poço de traumas de guerra. Rambo era apenas o passante, só queria achar um lugar para comer alguma coisa, seu habitat nem é na cidade – talvez na selva, talvez no Vietnã, talvez em lugar nenhum. "Não queremos pessoas como você por aqui", diz o xerife. Há algo mais nessa sentença do que a típica histeria provinciana contra os "estranhos": sem saber que fala com um soldado de elite, um boina-verde, o xerife faz o exorcismo inconsciente de uma potência militar transformada em pesadelo. O antigo sonho da máquina de guerra perfeita precisa ser posto de lado, ao menos enquanto a imagem de sua derrota para um povo magro e com pouca munição ainda for recente. Para reerguer o espírito bélico norte-americano, só voltando às origens, ou seja, ao combate interno, à guerra civil. A sucessão de investidas em terras estrangeiras, distantes, resultou na derrota para um inimigo que, de tão diferente, se mostrou invencível. E é justamente essa a prova que Rambo dará pela segunda vez: de que adianta um exército de destruição massiva, um arsenal com tecnologia de ponta, se o inimigo se embrenha por túneis cheios de ratos, às vezes se alimenta desses ratos, se move como um fantasma pela mata, realiza emboscadas?

O curto-circuito é primoroso: as montanhas no Noroeste dos Estados Unidos e o Vietnã podem ser a mesma coisa; o ex-combatente norte-americano discriminado e o vietcongue podem se defender da mesma forma. Já na primeira cena da delegacia, o tratamento que Rambo recebe rapidamente o faz lembrar das torturas sofridas em alguma masmorra vietnamita. Seu corpo se torna, a partir dali, "uma memória que reage". O visual que depois será desvirtuado na série para transformá-lo num herói de quadrinho, defensor da nação (Sébastien Bénédict faz uma ótima análise dessa transição em seu blog, intitulado "Ce qui nous regarde"), aparece aqui como uma afirmação radical da alteridade de Rambo em relação àquela comunidade que o caça: cabelo comprido, fita amarrada na cabeça, manta improvisada – o índio declara guerra. "Não existe civil confiável", Rambo confessa a Trautman – e, de fato, o garoto que ele poupa irá apontá-lo, logo depois, para um grupo de caçadores. Para essa guerra, no entanto, os policiais não estavam preparados: corpo-a-corpo, ataque sorrateiro na calada da noite, tática suicida.

Rambo é ao mesmo tempo o "nativo" que improvisa meios e se defende como pode e o filho abandonado pela mãe pátria. Resta um pai adotivo, Coronel Trautman, o criador desse "Frankenstein" em versão militar. Quando tiram a camisa de Rambo na delegacia e as cicatrizes chamam a atenção de Mitch (David Caruso em um de seus primeiros papéis no cinema), o policial de mais bom senso, que pergunta onde ele terá adquirido aquelas marcas de violência, o outro policial responde com a voz ruminando ódio entre os dentes: "Who gives a shit?". Quem se importa com o soldado treinado para ganhar a guerra, para construir uma nação vitoriosa? Quem ainda se lembra dele? Querem mais é apagá-lo, por isso se mostra imprescindível a cena com o exército de amadores que vai a seu encalço na gruta em que ele se esconde. Um dono de farmácia que nas horas vagas pratica ações militares – como se o recrutamento fosse sempre uma questão de urgência, isto é, houvesse sempre uma guerra em curso, necessitando de civis para engrossar o front – se borra de medo de chegar perto da gruta. Todos sentem medo, todos são vulneráveis – ou representam uma covardia pós-Vietnã, uma América que teme o homem-a-homem, mas que não hesita em atirar de bazuca contra um único corpo encurralado. Rambo – Programado para Matar prefigura as novas políticas de guerra norte-americanas, como a lógica de apagamento do outro à distância, implementada na Guerra do Golfo: o jogo agora consiste em impedir que o inimigo ganhe rosto, matá-lo de uma posição em que não é possível enxergá-lo – o que equivale a evitar que ele vire imagem.

Rambo – Programado para Matar serviu tanto de relato crítico do seu tempo quanto de terapia de choque. O último plano mostra Rambo saindo de dentro da delegacia (epicentro do filme, onde toda ação começa e acaba) totalmente destruída por ele e se entregando às autoridades, caminhando tristemente ao lado de Trautman. O decorrer da série mostraria que ali começava a reconstrução de um exército, o que tornava necessário liquidar os resquícios da última batalha. Ou melhor: tratar essa batalha como o erro fundamental ao aprendizado do novo programa militar. A indústria hollywoodiana soube muito bem o que fazer para transformar um anti-herói em herói, um filme de ruptura (Rambo – Programado para Matar) em filme conservador (Rambo II – A Missão). Boa parte de sua eficácia sai desse mecanismo – perverso, sem dúvida, mas fascinante justamente nas suas frestas e fissuras (onde Kotcheff se embrenhou a exemplo de tantos outros) –: fazer também dos rituais de transição uma ferramenta de permanência. Egresso da TV, para onde voltaria nos anos 90, Ted Kotcheff realizou o que possivelmente foi o primeiro grande filme a trabalhar a má consciência oriunda da Guerra do Vietnã (considerando que Apocalypse Now só é grande na duração). Seu filme é muito mais que um belo exemplar de um cinema de ação que não mais se faz – agora que o bom artesanato é desvalorizado em função de uma suposta profundidade da filiação ao tema (os votos de fidelidade a Tolkien de Peter Jackson, o enredo iniciático do Batman de Christopher Nolan), e mega-projetos de gênero são colocados nas mãos de diretores que não têm o mínimo talento para dirigir uma cena de ação (e se o cinema de aventura hoje sai do artesão e vai para o nerd, é em parte porque a formação estética de seu público já se dá menos na sala de cinema do que nos quadrinhos, no RPG e em algumas séries televisivas). Mas o primeiro Rambo continua lá: mais forte na sua observação sobre o modo como o veterano de guerra é tratado nos EUA do que Nascido em 4 de Julho; mais acurado na avaliação de que o conflito no Vietnã era apenas um desdobramento da violência fratricida inaugural (em se tratando dos Estados Unidos) do que Platoon. Um filme com a melancolia de um personagem que se sente sozinho no mundo, exilado no próprio país, filme chuvoso, que envia um choro longínquo, mas ainda presente, como demonstrado por Willian Friedkin em Caçado (2003), uma excelente retomada do seu enredo. Quem atacou primeiro? Essa é a pergunta que mais do que nunca os norte-americanos se fazem.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD Universal)

 

 





As cicatrizes de Rambo: "Por onde ele terα andado?"

"Who gives a shit?"

Rambo foge por um tϊnel estreito: de volta ao campo de batalha