Quatro Irmãos vem marcar,
para o diretor John Singleton, um reencontro com o universo
de seu filme de estréia, Boyz’n the Hood, ainda
hoje seu trabalho mais célebre. Se não há como negar
o vigor do filme de 1991, não deve ser também esquecido
que ele vinha banhado em um certo sociologismo simplista,
com uma visão bastante idealizada das relações sociais
e raciais, certamente fruto da visão de um diretor-roteirista
mal saído da adolescência – Singleton tinha 22 anos
quando da sua realização. Em seu trabalho mais recente,
Singleton vem desenhar toda uma maior complexidade nas
relações entre seus personagens, aqui caracterizadas
por laços mais intensos que os existentes entre “irmãos”
de cor e que a violência institucionalizada seria determinada
por teias mais sinuosas que as do mero preconceito.
Curioso destacar que essa retomada temática venha através
de um projeto não autoral do diretor, que trabalha com
um roteiro assinado por David Eliot e Paul Lovett, por
sua vez inspirado em Os Filhos de Katie Elder,
um faroeste que Henry Hathaway dirigiu em 1965. Singleton
consegue, no entanto, inserir de forma coerente uma
visão francamente pessoal a um material alheio, se posicionando
dentro de uma proposta bem mais ampla que a de um “cinema
negro” ou “filmes de gueto”. O que se vê na tela em
Quatro Irmãos deixa claro que a passagem por
uma linhagem de filmes mais “comerciais” – como Shaft
(2000) e + Velozes + Furiosos (2003) – fez
muito bem a Singleton, contribuindo para uma evolução
visível em seu domínio do artesanato cinematográfico.
Além do já comentado e natural amadurecimento de sua
visão de mundo, ele está filmando bem melhor, e impondo
à montagem um ritmo certeiro e objetivo.
Essa maturidade do cineasta vem sem que ele abandone,
contudo, as qualidades que já vinha apresentando desde
seu início de carreira. No caso, a representação de
um ambiente e a caracterização das relações entre personagens,
que configuravam o maior mérito de Boyz’n the Hood.
Durante a primeira meia hora de Quatro Irmãos,
vão sendo construídos e definidos de forma bastante
intensa os laços entre os personagens-título, irmãos
de criação que retornam a um pobre subúrbio da cidade
de Detroit para o enterro da mãe adotiva, morta em circunstâncias
suspeitas durante o assalto a uma loja. O quarteto –
dois negros, dois brancos – é apresentado sem qualquer
forma de maniqueísmo, nem heróis nem vítimas, apenas
figuras fadadas a permanecerem distantes de uma vida
bem sucedida, personalidades díspares unidas por formas
de amor fraterno intensas que sobrepõem-se a quaisquer
laços raciais e familiares. Quando o grupo retorna à
casa materna, ficam em pouco tempo definidos os perfis
de cada indivíduo do quarteto, tornando não menos que
lógicas as atitudes quase sempre extremas que serão
tomadas ao longo do restante do filme.
Preparado o terreno para a ação dos personagens, o que
se vê a partir do momento em que fica claro que a morte
da mãe não teria sido meramente circunstancial são alguns
dos momentos de violência mais seca e desglamurizada,
e por isso mesmo dos mais impressionantes, que o cinema
apresentou nos últimos tempos. A vingança dos irmãos
vai sendo mostrada por Singleton com uma objetividade
narrativa ímpar. Os atos passam a se suceder num crescendo,
sem pausas para alívio ou explicações, que seriam por
sinal desnecessárias. As seqüências se intercalam por
uma pulsação que por vezes choca, numa crueza que deixa
clara o quanto essa violência estaria inserida de forma
natural no universo retratado no filme. Quase não há
interferência externa, seja dos habitantes que não participam
diretamente da ação, seja de alguma forma maior de justiça
institucionalizada. Fica patente uma espécie de lei
do silêncio e um retrato de abandono ao qual estariam
submetidas as comunidades pobres como a que aparece
em Quatro Irmãos, abandono esse que se estende
de forma igual a todos, sejam brancos, negros ou latinos.
Distantes da noção de prosperidade generalizada que
a cultura oficial americana insiste em propagar e, por
outro lado, bastante próxima de uma realidade normalmente
identificada como terceiro-mundista.
Singleton leva seu filme até um clímax bastante seco,
uma seqüência ambientada em lugar ermo, no qual só se
vê neve, os personagens e seus carros, destacando ainda
mais o incessante isolamento ao qual parecem destinados.
E mesmo que o final proponha uma redenção, não há como
não acreditar que essa pode ser apenas pouco mais que
um momento fugaz. Conclusão mais que certeira para um
filme que não se assiste impunemente, conduzido de forma
exemplar por um cineasta cujo talento não deve ser subestimado.
Gilberto Silva Jr.
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