Pais doentes, cinema órfão
Faltam, decididamente, pais para esses cineastas orgulhosamente
egressos da publicidade no Brasil. Aprenderam tudo,
aparentemente: no fazer "diário", na labuta
dos planos e enquadramentos rápidos, cheios de cor e
pragmáticos, afinal, o bicho come. Aprenderam, em suma,
amparados quase por uma orfandade de estilo, uma orfandade
que, para se adequar ao mundo profissional, converteu-se
em extraexpressividade. Expressão de tudo, de forma
sensacional, anabolizada, e, mais do que tudo, eficientista
e atualista. É o mito do jovem que teve que se sair
de casa e aprender tudo sozinho, para sobreviver e amansar
o mundo prático, e depois ganhá-lo, muito cedo – mas
sem o forro de um legado de referências sólido, apenas
casuais, provisórias. Por conta dessa sua relação com
o pacto de trabalho e social, quando emergem no cinema
de fato, esses diretores parecem obsessivos pela lógica
comportamental do público consumidor que, durante anos,
por meio de planilhas e amadurecimento da própria experiência
de trabalho, aprenderam a mirar. E continuam sem pais.
Cineasta orgulhosamente “moderninho”, saído da experiência
nas melhores tratorias do audiovisual de mercado paulistanas,
Marcelo Galvão tem muito a ver com seu eventual colega
de O2, Paulo Morelli, diretor de Viva Voz: a
visão dos dois para a classe média, da qual partem como
cidadãos, é das mais esquizofrênicas. À esquizofrenia,
soma-se, na pauta dos dois, um humor corrosivo, que
na eleição de personagens que encarnam estereótipos
patetistas da urbanidade burlesca, parece corroer nada
mais que o próprio filme. Parece tudo preparado para
pegar fogo e, do lado de fora, o diretor rir. Mal sabem
eles que são eles mesmos, Morelli no caso de Viva
Voz, Galvão no caso de Quarta B, que parecem
morar nos mundos que montam. Sua visão fútil para o
que enquadram é o que determina, em última instância,
a frivolidade e a irresponsabilidade, cínica ou simpática,
dos personagens.
A pretensão de Galvão aqui é clara, e não abrimos o
texto com a paternidade de forma gratuita: através de
um único espaço cênico, uma sala de aula, movimentar
fantoches da classe média para urdir uma observação
a respeito dos equívocos de projeção e entendimento
na relação pais e filhos. É uma reunião escolar, os
pais de alunos da quarta série discutirão o surgimento
de um tijolo de marijuana achado pelo faxineiro na classe.
Quem portava a droga? Qual das crianças é a mais mal-intencionada
e errada? E, mais importante, qual dos pais é? Só assim
poderá ser descoberto o autor mirim do crime e a chave
para o colapsto institucional que se revela.
Os pais partirão para um degladiamento moral e, às vezes,
físico. Com câmera digital na mão, circulante, tudo
bem verossímil e sujinho, com cortes e manobras ao estilo
de Os Idiotas e Festa de Família (Galvão
prova que é, como qualquer colega, antes de tudo, um
atualizado), com truques de subversão do fluxo do tempo
e da realidade através da montagem, o diretor busca
uma espécie de naturalismo paulistano mágico, para evidenciar,
no enclausuramento dos pais no território dos filhos,
exatamente a distância que há entre eles. Afinal, para
ser um estudo, há de haver essa carga de credibilidade
estética de catálogo; para haver humor, há de misturar
esse artifício da credibilidade com o burlesco e com
a ondulação da realidade. Os pais, obedecendo a índices
(o surfista, o culto arrogante, a dondoca), se lançarão
na provável mesma experiência dos infantes. Vão acender
"um" numa roda para poderem dialogar de igual
para igual. Viajarão legal, situação que produzirá momentos
de comédia sustentados em um certo imaginário cômico
geral relativo ao efeito da maconha. Humor de mesa de
bar caro.
No final, numa atmosfera fora do filme, Galvão posiciona,
num sofá, os pais dos pais dos alunos, que vão depor,
diante da câmera, sobre o comportamento e a natureza
de seus filhos trintões, que havíamos acompanhado na
última hora e meia, debatendo sobre os próprios filhos.
Ou seja, em torno dessa espiral de discussão de atitude
que é o filme, há pretensões claras: a de estudo crítico
interiorizado (a metodologia mais coerente para se analisar
comportamento) e espertinho da sociedade é uma; outra
é a da manifestação do contrato entre regimes de formação,
ambientes de aprendizado, agentes provedores e utilizadores
desses regimes e ambientes como algo, senão falido,
atrapalhado. Afinal a psique de cada adulto fantoche
ali já é bem, cada uma a seu modo, complicada.
Quarta B representa a classe média setor cultura
e comportamento, Galvão, roteirista e filmador da publicidade,
criticando o que está no seu nariz em termos de cultura
e comportamento e não se reconhecendo lá, nessa mesma
configuração sociológica, por exemplo, como agente da
ativação de hábitos de consumo e propagação dos valores.
Articulando a crítica, que já parte de um tão pálido
e asséptico humor elitista, como se à distância: como
se carregasse a prerrogativa da visão especial para
determinado tipo de gente, mas denunciando em seus próprios
hábitos estéticos e dramatúrgicos a mesma mediocridade,
e previsibilidade, daqueles que estão diante de sua
lupa.
Claudio Szynkier
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