QUARTA B
Marcelo Galvão, Brasil, 2005

Pais doentes, cinema órfão

Faltam, decididamente, pais para esses cineastas orgulhosamente egressos da publicidade no Brasil. Aprenderam tudo, aparentemente: no fazer "diário", na labuta dos planos e enquadramentos rápidos, cheios de cor e pragmáticos, afinal, o bicho come. Aprenderam, em suma, amparados quase por uma orfandade de estilo, uma orfandade que, para se adequar ao mundo profissional, converteu-se em extraexpressividade. Expressão de tudo, de forma sensacional, anabolizada, e, mais do que tudo, eficientista e atualista. É o mito do jovem que teve que se sair de casa e aprender tudo sozinho, para sobreviver e amansar o mundo prático, e depois ganhá-lo, muito cedo – mas sem o forro de um legado de referências sólido, apenas casuais, provisórias. Por conta dessa sua relação com o pacto de trabalho e social, quando emergem no cinema de fato, esses diretores parecem obsessivos pela lógica comportamental do público consumidor que, durante anos, por meio de planilhas e amadurecimento da própria experiência de trabalho, aprenderam a mirar. E continuam sem pais.

Cineasta orgulhosamente “moderninho”, saído da experiência nas melhores tratorias do audiovisual de mercado paulistanas, Marcelo Galvão tem muito a ver com seu eventual colega de O2, Paulo Morelli, diretor de Viva Voz: a visão dos dois para a classe média, da qual partem como cidadãos, é das mais esquizofrênicas. À esquizofrenia, soma-se, na pauta dos dois, um humor corrosivo, que na eleição de personagens que encarnam estereótipos patetistas da urbanidade burlesca, parece corroer nada mais que o próprio filme. Parece tudo preparado para pegar fogo e, do lado de fora, o diretor rir. Mal sabem eles que são eles mesmos, Morelli no caso de Viva Voz, Galvão no caso de Quarta B, que parecem morar nos mundos que montam. Sua visão fútil para o que enquadram é o que determina, em última instância, a frivolidade e a irresponsabilidade, cínica ou simpática, dos personagens.

A pretensão de Galvão aqui é clara, e não abrimos o texto com a paternidade de forma gratuita: através de um único espaço cênico, uma sala de aula, movimentar fantoches da classe média para urdir uma observação a respeito dos equívocos de projeção e entendimento na relação pais e filhos. É uma reunião escolar, os pais de alunos da quarta série discutirão o surgimento de um tijolo de marijuana achado pelo faxineiro na classe. Quem portava a droga? Qual das crianças é a mais mal-intencionada e errada? E, mais importante, qual dos pais é? Só assim poderá ser descoberto o autor mirim do crime e a chave para o colapsto institucional que se revela.

Os pais partirão para um degladiamento moral e, às vezes, físico. Com câmera digital na mão, circulante, tudo bem verossímil e sujinho, com cortes e manobras ao estilo de Os Idiotas e Festa de Família (Galvão prova que é, como qualquer colega, antes de tudo, um atualizado), com truques de subversão do fluxo do tempo e da realidade através da montagem, o diretor busca uma espécie de naturalismo paulistano mágico, para evidenciar, no enclausuramento dos pais no território dos filhos, exatamente a distância que há entre eles. Afinal, para ser um estudo, há de haver essa carga de credibilidade estética de catálogo; para haver humor, há de misturar esse artifício da credibilidade com o burlesco e com a ondulação da realidade. Os pais, obedecendo a índices (o surfista, o culto arrogante, a dondoca), se lançarão na provável mesma experiência dos infantes. Vão acender "um" numa roda para poderem dialogar de igual para igual. Viajarão legal, situação que produzirá momentos de comédia sustentados em um certo imaginário cômico geral relativo ao efeito da maconha. Humor de mesa de bar caro.

No final, numa atmosfera fora do filme, Galvão posiciona, num sofá, os pais dos pais dos alunos, que vão depor, diante da câmera, sobre o comportamento e a natureza de seus filhos trintões, que havíamos acompanhado na última hora e meia, debatendo sobre os próprios filhos. Ou seja, em torno dessa espiral de discussão de atitude que é o filme, há pretensões claras: a de estudo crítico interiorizado (a metodologia mais coerente para se analisar comportamento) e espertinho da sociedade é uma; outra é a da manifestação do contrato entre regimes de formação, ambientes de aprendizado, agentes provedores e utilizadores desses regimes e ambientes como algo, senão falido, atrapalhado. Afinal a psique de cada adulto fantoche ali já é bem, cada uma a seu modo, complicada.

Quarta B representa a classe média setor cultura e comportamento, Galvão, roteirista e filmador da publicidade, criticando o que está no seu nariz em termos de cultura e comportamento e não se reconhecendo lá, nessa mesma configuração sociológica, por exemplo, como agente da ativação de hábitos de consumo e propagação dos valores. Articulando a crítica, que já parte de um tão pálido e asséptico humor elitista, como se à distância: como se carregasse a prerrogativa da visão especial para determinado tipo de gente, mas denunciando em seus próprios hábitos estéticos e dramatúrgicos a mesma mediocridade, e previsibilidade, daqueles que estão diante de sua lupa.

Claudio Szynkier