Projeto
dos sonhos de Roman Polanski, Oliver Twist continua
a exploração, cara ao cineasta, do tema
da inocência que persiste ainda quando confrontada
com a realidade corrupta que a cerca. Porém,
da mesma forma que em O Pianista, o Mal se apresenta
sob diversas formas, seja ele absoluto, na figura de
William Sykes, seja ele fruto das fraquezas e falhas
humanas, como Fagin.
Roman Polanski une-se novamente ao produtor Alain Sarde,
ao roteirista Ronald Harwood e ao fotógrafo Pawell
Edelman – mesma equipe de O Pianista – para realizar,
com idêntico senso de narrativa clássica
e de espetáculo, a adaptação do
romance de Charles Dickens, Oliver Twist. Conforme
já indicado desde os créditos de abertura
(série de litogravuras comuns na ilustração
de livros), o diretor segue ao pé da letra as
determinações do escritor, sendo-lhe bastante
fiel, de modo que a trama, levada inúmeras vezes
ao cinema – as versões mais conhecidas são
as de David Lean e o musical de Carol Reed – mostra
as conhecidas desventuras do órfão Oliver
Twist no submundo londrino caracterizado pela miséria,
pela marginalidade e pelos pequenos crimes que acontecem
nas ruas.
Oliver Twist, para Polanski, representa a pureza e a
integridade que, em contato com o mundo hostil, ainda
resiste, devido ao coração nobre que possui.
Por outro lado, William Sykes e Fagin, como são
chamados em várias ocasiões ao longo do
filme, interpretam o diabo, ou seja, personagens que
carregam em si a vilania do ambiente onde estão
inseridos. No entanto, são maldades diferentes,
pois enquanto Bill aponta para a natureza própria
do Mal, que existe independentemente da vontade humana
(ou que antes se apossa dela) – notar a presença
do cão Bull’s Eye, símbolo do demônio,
sempre ao lado do personagem –, Fagin sintetiza justamente
o inverso, a saber, as idiossincrasias que, devido a
situações circunstanciais em jogo (interesses
econômicos, problemas afetivos, desestruturação
do núcleo familiar), afetam os homens todos os
dias. Em Oliver Twist, Fagin possui função
dramática semelhante ao do oficial nazista que,
a despeito da ideologia anti-semita que professa, auxilia
o herói judeu em O Pianista: expressar
que as ações dos personagens não
estão previamente inscritas em seus genes, mas
que, na verdade, são resultado das escolhas éticas
e morais que tomam em contato com o meio externo que
os influencia.
Ponto culminante de Oliver Twist, assim, é
o encontro entre o herói e Fagin na prisão,
pouco antes deste ser enforcado. Omitido das demais
versões do clássico dickensiano, que em
geral terminam na morte de Bill Sykes, o encontro mostra
a fragilidade e temor de Fagin pela execução
iminente, já que o outrora vilão, para
aquém do monstro desumano como se é tentado
a representá-lo, significou efetivamente, junto
aos trombadinhas que executavam pequenos furtos a seu
mando, a primeira família na qual Oliver esteve
inserido. A seqüência em questão retoma
a impressão favorável deixada pelo primeiro
ato da narrativa irregular, em que Polanski caracteriza
a pobreza generalizada, as ruas enlameadas e os tipos
escroques da Londres do século XIX, se não
com a desenvoltura de Martin Scorsese em Gangues
de Nova York – influenciado, por sua vez, pelos
romances de Dickens –, pelo menos com a competência
necessária para criar os ambientes onde a pureza
e a corrupção de desenvolvem e se chocam.
Oliver Twist, contudo, não resolve o calcanhar
de Aquiles de dez entre dez adaptações
cinematográficas de obras consagradas: como no
filme de David Lean ou no de Carol Reed, novamente o
atropelo dos acontecimentos descritos no livro, uma
vez que foram condensados para caber nas duas horas
de projeção, marcam presença, retirando
o foco principal do relacionamento entre os personagens
a fim de direcioná-lo rumo à aparente
fidelidade do roteiro quanto ao enredo proposto pelo
autor inglês.
Portanto, embora Oliver Twist mantenha Roman
Polanski na trilha aberta por O Pianista, sua
tão sonhada versão de Dickens para as
telas decepciona pela falta de ousadia do cineasta em
filmá-la de maneira diferente do que outros tantos
já fizeram.
Paulo Ricardo de Almeida
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