João Pedro Rodrigues tem fama
de cineasta ranzinza: cinéfilo, admirador dos “mestres”
do cinema moderno (Bresson, Fassbinder, Pasolini, Godard),
ele nutre uma certa desconfiança com o cinema contemporâneo.
Um dos poucos diretores que ele diz admirar é Tsai Ming-liang,
que, não por acaso, tem uma postura semelhante. Poderíamos
dizer que ambos são, de certa forma, “conservadores”,
embora tenham realizado alguns dos filmes mais inovadores
dos últimos dez anos. Há neles uma angústia alimentada
por uma nostalgia de outros tempos (indefinidos), pela
falta de um afeto que preencha a existência. Falta essa
inevitável, na alienação urbana do mundo global contemporâneo.
No entanto, a observação destes alienados e excluídos,
marginais de uma certa sociedade, tanto em Tsai como
em Rodrigues, se dá por um tratamento privilegiado,
revestido de um carinho e uma atenção comoventes.
Odete trabalha num supermercado. Imersa em produtos
de todos os tipos, ela é dona de um comportamento que
parece inadequado, desajustado em relação à funcionalidade
que se espera naquele ambiente. Fora dali, ela também
não corresponde às expectativas comportamentais mais
corriqueiras: nutre uma obsessão em ter um filho, como
se pudesse concentrar na relação maternal todo o afeto
do mundo, um tanto deslocado e sem espaço. Odete tem
dificuldades de perceber fronteiras entre o seu desejo
e o mundo à sua volta. Da mesma forma, Rodrigues não
estabelece fronteiras entre seu olhar de cineasta e
a vivência um tanto marginal de seus personagens, cujas
lógicas impregnam os universos ficcionais criados. Tudo
é filmado como o que há, sem o estabelecimento de instâncias
normativas e contraposições. O mundo é como cada um
o experimenta.
Mas a pregnância destas vivências particulares é, de
fato, por vezes quase impossível. Na aparente naturalidade
de funcionamento que Rodrigues filma (a rotina do supermercado,
os procedimentos de um velório ou, em O Fantasma,
a coleta de lixo), a desfuncionalidade (que na
verdade é uma questão de adequação) dos seus personagens
os obriga a percursos um tanto destacados e solitários,
à margem do comunitário. Eles são fantasmas que estão
tentando interagir, de alguma forma. Em O Fantasma,
o vagar de Sergio pela noite escura de Lisboa o converte
num espectro que busca uma imagem, algo no que se reconhecer,
algo que possa dar solidez à sua existência. E esta
busca acaba culminando numa transformação: ele torna-se
praticamente um cachorro, pois descobre nessa forma
animal um eco (aquele que mais demonstrava sintonia
com ele era um cachorro).
Odete não difere muito disto. Apaixona-se por um morto,
um espírito já sem corpo. Sua vontade incontrolável
de ter outro corpo junto ao seu (um filho, um amante
enlouquecido) desloca suas forças para o namorado morto
de Rui, que de suposto pai de seu “filho de vento”,
passa a re-existir nela própria. Rui, que também sofre
pela ausência do amado e pela dificuldade em se alinhar
novamente a uma “vida normal”, vê naquela incorporação
uma forma de restabelecer contato com as coisas, de
retomar uma vivência.
Paralelamente ao deslocamento que João Pedro Rodrigues
opera em tratos cotidianos, emparelhando o “anormal”
ao “normal”, está sua intensa corporificação do mundo.
Os homens são seres pulsantes e a vida se manifesta
na existência corporal. Ser um fantasma, circular na
não-visibilidade de um espaço social, é levar uma existência
apagada. E sua câmera, ao registrar os corpos como entes
maciços e veículos de toda a vida, dá aos seus personagens
perdidos, condições de existência, imagens que os reintegram
ao meio físico, para que, com esta dignidade recuperada,
eles possam prosseguir, mesmo que atolados em busca
de uma mudança que venha aplacar a angústia da solidão.
O cuidadoso naturalismo de representação afasta o aparente
exagero das situações retratadas da condição de absurdo,
concedendo-lhes toda a verossimilhança possível. Colocadas
lado-a-lado com ações mais banais, que recebem o mesmo
tratamento, as obsessões doentias dos personagens tornam-se
tão somente formas diferentes de existir. Odete acaba
dando alento à mãe do rapaz morto com sua falsa gravidez
e evita a morte de Rui com o afeto que lhe oferece através
de seu travestimento. Diferentemente do artificialismo
ilustrativo de Tsai, a arma de Rodrigues para tratar
do afastamento de uma integração a um todo organizado
segundo leis rígidas de funcionamento, excludentes por
natureza, é este naturalismo, numa quase postura de
“registro”, embalada por um distanciamento bressoniano.
Para ele é preciso que as vidas destituídas de espaço
e reconhecimento sejam rendidas ao mesmo substrato que
sustenta a existência da “normalidade”, que o mecanismo
de alienação seja eliminado do registro do mundo. Pois
ele parte da assunção de que tudo permanecerá como está
e só abrindo o campo para afirmações individuais (mesmo
que estas sejam respostas doloridas de uma realidade
cruel), é possível sobreviver ao esmagamento promovido
pelo amplo sistema de normatização dos corpos e comportamentos,
que loucamente regulamenta as dinâmicas do meio urbano
global.
Tatiana Monassa
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