ODETE
João Pedro Rodrigues, Odete, Portugal, 2005

João Pedro Rodrigues tem fama de cineasta ranzinza: cinéfilo, admirador dos “mestres” do cinema moderno (Bresson, Fassbinder, Pasolini, Godard), ele nutre uma certa desconfiança com o cinema contemporâneo. Um dos poucos diretores que ele diz admirar é Tsai Ming-liang, que, não por acaso, tem uma postura semelhante. Poderíamos dizer que ambos são, de certa forma, “conservadores”, embora tenham realizado alguns dos filmes mais inovadores dos últimos dez anos. Há neles uma angústia alimentada por uma nostalgia de outros tempos (indefinidos), pela falta de um afeto que preencha a existência. Falta essa inevitável, na alienação urbana do mundo global contemporâneo. No entanto, a observação destes alienados e excluídos, marginais de uma certa sociedade, tanto em Tsai como em Rodrigues, se dá por um tratamento privilegiado, revestido de um carinho e uma atenção comoventes.

Odete trabalha num supermercado. Imersa em produtos de todos os tipos, ela é dona de um comportamento que parece inadequado, desajustado em relação à funcionalidade que se espera naquele ambiente. Fora dali, ela também não corresponde às expectativas comportamentais mais corriqueiras: nutre uma obsessão em ter um filho, como se pudesse concentrar na relação maternal todo o afeto do mundo, um tanto deslocado e sem espaço. Odete tem dificuldades de perceber fronteiras entre o seu desejo e o mundo à sua volta. Da mesma forma, Rodrigues não estabelece fronteiras entre seu olhar de cineasta e a vivência um tanto marginal de seus personagens, cujas lógicas impregnam os universos ficcionais criados. Tudo é filmado como o que há, sem o estabelecimento de instâncias normativas e contraposições. O mundo é como cada um o experimenta.

Mas a pregnância destas vivências particulares é, de fato, por vezes quase impossível. Na aparente naturalidade de funcionamento que Rodrigues filma (a rotina do supermercado, os procedimentos de um velório ou, em O Fantasma, a coleta de lixo), a desfuncionalidade (que na verdade é uma questão de adequação) dos seus personagens os obriga a percursos um tanto destacados e solitários, à margem do comunitário. Eles são fantasmas que estão tentando interagir, de alguma forma. Em O Fantasma, o vagar de Sergio pela noite escura de Lisboa o converte num espectro que busca uma imagem, algo no que se reconhecer, algo que possa dar solidez à sua existência. E esta busca acaba culminando numa transformação: ele torna-se praticamente um cachorro, pois descobre nessa forma animal um eco (aquele que mais demonstrava sintonia com ele era um cachorro).

Odete não difere muito disto. Apaixona-se por um morto, um espírito já sem corpo. Sua vontade incontrolável de ter outro corpo junto ao seu (um filho, um amante enlouquecido) desloca suas forças para o namorado morto de Rui, que de suposto pai de seu “filho de vento”, passa a re-existir nela própria. Rui, que também sofre pela ausência do amado e pela dificuldade em se alinhar novamente a uma “vida normal”, vê naquela incorporação uma forma de restabelecer contato com as coisas, de retomar uma vivência.

Paralelamente ao deslocamento que João Pedro Rodrigues opera em tratos cotidianos, emparelhando o “anormal” ao “normal”, está sua intensa corporificação do mundo. Os homens são seres pulsantes e a vida se manifesta na existência corporal. Ser um fantasma, circular na não-visibilidade de um espaço social, é levar uma existência apagada. E sua câmera, ao registrar os corpos como entes maciços e veículos de toda a vida, dá aos seus personagens perdidos, condições de existência, imagens que os reintegram ao meio físico, para que, com esta dignidade recuperada, eles possam prosseguir, mesmo que atolados em busca de uma mudança que venha aplacar a angústia da solidão.

O cuidadoso naturalismo de representação afasta o aparente exagero das situações retratadas da condição de absurdo, concedendo-lhes toda a verossimilhança possível. Colocadas lado-a-lado com ações mais banais, que recebem o mesmo tratamento, as obsessões doentias dos personagens tornam-se tão somente formas diferentes de existir. Odete acaba dando alento à mãe do rapaz morto com sua falsa gravidez e evita a morte de Rui com o afeto que lhe oferece através de seu travestimento. Diferentemente do artificialismo ilustrativo de Tsai, a arma de Rodrigues para tratar do afastamento de uma integração a um todo organizado segundo leis rígidas de funcionamento, excludentes por natureza, é este naturalismo, numa quase postura de “registro”, embalada por um distanciamento bressoniano. Para ele é preciso que as vidas destituídas de espaço e reconhecimento sejam rendidas ao mesmo substrato que sustenta a existência da “normalidade”, que o mecanismo de alienação seja eliminado do registro do mundo. Pois ele parte da assunção de que tudo permanecerá como está e só abrindo o campo para afirmações individuais (mesmo que estas sejam respostas doloridas de uma realidade cruel), é possível sobreviver ao esmagamento promovido pelo amplo sistema de normatização dos corpos e comportamentos, que loucamente regulamenta as dinâmicas do meio urbano global.

Tatiana Monassa