O CÉU GIRA
Mercedes Álvarez, El cielo gira, Espanha, 2004

Crônica de um desaparecimento

Que o céu gira, isso não é o mais surpreendente. O que espanta, encanta, apaixona nesse filme de Mercedes Álvarez é a maneira como algumas coisas se assentam e se prendem à terra, sempre por um determinado momento, e depois se desprendem, fogem ou somem, simplesmente desaparecem da existência, deixando vestígios. Inusitada situação, essa de pegar alguns velhos senhores camponeses para falar de tempo para além dos quesionamentos sobre vida e morte
. Mas esses senhores, em alguma medida, são os privilegiados para discursar sobre isso, porque é algo que lhes ocupa profundamente as mentes, algo que se prende a suas carnes e sensibilidades: o fato de que sua aldeia, o adorável vilarejo de Aldeaseñor, em Soria, chega rapidamente ao fim, com alguns poucos habitantes autóctones, e nenhum em idade de ter filhos. A última filha de Aldeaseñor não é vista, mas ouvida: é a própria Mercedes Álvarez, diretora do filme, que deixou o vilarejo ainda pequena, com os pais. O que surge do seu reencontro com a paisagem e com os habitantes é nada menos que comovente, e tudo é colocado em jogo na aproximação dramática que a diretora faz daquele espaço, daquele território. Partindo do sensível, do material, ela ordena seu filme no sentido do mais abstrato, do puramente inteligível, de um contato brutal com aquilo que começa como carnal e passa a ser puro construto de pensamento: a passagem do vivencial para o histórico, a forma como a sucessão de momentos que é a vida pode se cristalizar em memórias e registros ou simplesmente desaparecer sem deixar traços.

E é aí que O Céu Gira surpreende. Pois o tom do filme não é exatamente o de melancolia com uma possível presença tirânica do tempo, mas o de uma doce serenidade em relação à transitoriedade de tudo que está acima do solo e abaixo do céu. Muitas imagens aparecem, de estaturos e graus diferenciados, e Mercedes Álvarez sabe inscrever nelas todas, através da filmagem mas principalmente e sem dúvida pela montagem, a marca de uma presença temporária, de uma instalação por tempo determinado. No início do filme, somos apresentados às pegadas dos dinossauros numa pedra; ao final, vemos dois camponeses de Aldeaseñor discutindo sobre o povoamento de outros planetas. Entre essas figuras, dos vestígios incrustados na terra até a projeção de cenários de futuro, temos uma miríade de imagens da finitude: um antigo castelo em ruínas que tem sua configuração totalmente modificada para virar um hotel; uma paisagem que muda radicalmente com instalação de moinhos de energia eólica; e, principalmente, o pintor Pello Azketa, que perde progressivamente sua visão. Por mais que essas imagens nos espantem pela tristeza das relíquias que desaparecem, a estrutura de O Céu Gira faz um trabalho inverso, nos mostrando que o efêmero é uma condição natural e que, por mais doloroso que possa ser, as coisas nasccem, persistem por uma determinada duração, e em seguida desaparecem.

Não é muito comum se deparar com uma cineasta – quanto mais uma documentarista! – que pensa o mundo não através de seu próprio ponto de vista, ou o ponto de vista de sua geração, mas do ponto de vista da própria terra. E, no caso de O Céu Gira, é ainda mais notável, dado que se trata da terra de nascimento da própria realizadora: quase uma crueldade essa virada de ponto-de-vista. Não é um retrato de uma infância perdida (visão subjetiva), de uma mirada da ciência contemporânea (visão museológica que luta para preservar tudo e manter como arquivo), mas de um mergulho estóico na inevitabilidade das mudanças provocadas pelo tempo. E que prazer ver esses doces senhores, esses camponeses transformados em filósofos de seu próprio desaparecimento como povoação, pela naturalidade com que vêem seu definhar como um tranqüilo imperativo da natureza. Não são tantos filmes no mundo que podem demandar sem ostentação a familiaridade com Heráclito. O Céu Gira pode.

Hoje, no Brasil talvez mais do que em outras partes do mundo, documentário é tudo vaidade. Vaidade de um valor social, pela fantasmática quimera do registro do outro (inserção social, ou até contrapartida), idéia de "cinema de cidadão", oásis do "retrato da realidade". Nesse panorama tão árido em idéias, Mercedes Álvarez também tem algo a contrapor: em O Céu Gira, decupagem campo/contracampo dos diálogos, raccords de ação, tudo que pertence ao universo do cinema de ação, dos retakes e da encenação. Não é atrás da realidade nua e crua que a cineasta corre atrás, mas de uma determinada configuração, um elo que se estabelece entre sua verdade e a verdade daquilo que está em frente à câmera. Se há autenticidade, ela não deve ser buscada na filmagem, mas no resultado (mesmo que recheado de "inverdades" factuais). Mesmo porque, se há um cineasta com o qual Mercedes Álverez parece partilhar em algum nível uma sensibilidade, é Abbas Kiarostami. Relações semelhantes de paisagem, miniaturização do personagem (cortes no plano realizam efeito semelhante ao fim de Através das Oliveiras, com diferentes finalidades), um mistério que se esconde e impede a revelação (misticismo do cinema de ambos), e também uma certa vontade de exercitar o dom "f for fake" do cinema. Ficção do real, O Céu Gira prova por sua força que o documentário, como arte – lição de Rouch, de Wiseman, de Coutinho –, para fugir do fetiche do registro, só pode ser salvo pelo conceito.

Ruy Gardnier