Crônica
de um desaparecimento
Que o céu gira, isso não é o mais
surpreendente. O que espanta, encanta, apaixona nesse
filme de Mercedes Álvarez é a maneira
como algumas coisas se assentam e se prendem à
terra, sempre por um determinado momento, e depois se
desprendem, fogem ou somem, simplesmente desaparecem
da existência, deixando vestígios. Inusitada
situação, essa de pegar alguns velhos
senhores camponeses para falar de tempo para além
dos quesionamentos sobre vida e morte. Mas esses
senhores, em alguma medida, são os privilegiados
para discursar sobre isso, porque é algo que
lhes ocupa profundamente as mentes, algo que se prende
a suas carnes e sensibilidades: o fato de que sua aldeia,
o adorável vilarejo de Aldeaseñor, em
Soria, chega rapidamente ao fim, com alguns poucos habitantes
autóctones, e nenhum em idade de ter filhos.
A última filha de Aldeaseñor não
é vista, mas ouvida: é a própria
Mercedes Álvarez, diretora do filme, que deixou
o vilarejo ainda pequena, com os pais. O que surge do
seu reencontro com a paisagem e com os habitantes é
nada menos que comovente, e tudo é colocado em
jogo na aproximação dramática que
a diretora faz daquele espaço, daquele território.
Partindo do sensível, do material, ela ordena
seu filme no sentido do mais abstrato, do puramente
inteligível, de um contato brutal com aquilo
que começa como carnal e passa a ser puro construto
de pensamento: a passagem do vivencial para o histórico,
a forma como a sucessão de momentos que é
a vida pode se cristalizar em memórias e registros
ou simplesmente desaparecer sem deixar traços.
E é aí que O Céu Gira surpreende.
Pois o tom do filme não é exatamente o
de melancolia com uma possível presença
tirânica do tempo, mas o de uma doce serenidade
em relação à transitoriedade de
tudo que está acima do solo e abaixo do céu.
Muitas imagens aparecem, de estaturos e graus diferenciados,
e Mercedes Álvarez sabe inscrever nelas todas,
através da filmagem mas principalmente e sem
dúvida pela montagem, a marca de uma presença
temporária, de uma instalação por
tempo determinado. No início do filme, somos
apresentados às pegadas dos dinossauros numa
pedra; ao final, vemos dois camponeses de Aldeaseñor
discutindo sobre o povoamento de outros planetas. Entre
essas figuras, dos vestígios incrustados na terra
até a projeção de cenários
de futuro, temos uma miríade de imagens da finitude:
um antigo castelo em ruínas que tem sua configuração
totalmente modificada para virar um hotel; uma paisagem
que muda radicalmente com instalação de
moinhos de energia eólica; e, principalmente,
o pintor Pello Azketa, que perde progressivamente sua
visão. Por mais que essas imagens nos espantem
pela tristeza das relíquias que desaparecem,
a estrutura de O Céu Gira faz um trabalho
inverso, nos mostrando que o efêmero é
uma condição natural e que, por mais doloroso
que possa ser, as coisas nasccem, persistem por uma
determinada duração, e em seguida desaparecem.
Não é muito comum se deparar com uma cineasta
quanto mais uma documentarista! que pensa
o mundo não através de seu próprio
ponto de vista, ou o ponto de vista de sua geração,
mas do ponto de vista da própria terra. E, no
caso de O Céu Gira, é ainda mais
notável, dado que se trata da terra de nascimento
da própria realizadora: quase uma crueldade essa
virada de ponto-de-vista. Não é um retrato
de uma infância perdida (visão subjetiva),
de uma mirada da ciência contemporânea (visão
museológica que luta para preservar tudo e manter
como arquivo), mas de um mergulho estóico na
inevitabilidade das mudanças provocadas pelo
tempo. E que prazer ver esses doces senhores, esses
camponeses transformados em filósofos de seu
próprio desaparecimento como povoação,
pela naturalidade com que vêem seu definhar como
um tranqüilo imperativo da natureza. Não
são tantos filmes no mundo que podem demandar
sem ostentação a familiaridade com Heráclito.
O Céu Gira pode.
Hoje, no Brasil talvez mais do que em outras partes
do mundo, documentário é tudo vaidade.
Vaidade de um valor social, pela fantasmática
quimera do registro do outro (inserção
social, ou até contrapartida), idéia de
"cinema de cidadão", oásis do
"retrato da realidade". Nesse panorama tão
árido em idéias, Mercedes Álvarez
também tem algo a contrapor: em O Céu
Gira, decupagem campo/contracampo dos diálogos,
raccords de ação, tudo que pertence
ao universo do cinema de ação, dos retakes
e da encenação. Não é
atrás da realidade nua e crua que a cineasta
corre atrás, mas de uma determinada configuração,
um elo que se estabelece entre sua verdade e a verdade
daquilo que está em frente à câmera.
Se há autenticidade, ela não deve ser
buscada na filmagem, mas no resultado (mesmo que recheado
de "inverdades" factuais). Mesmo porque, se
há um cineasta com o qual Mercedes Álverez
parece partilhar em algum nível uma sensibilidade,
é Abbas Kiarostami. Relações semelhantes
de paisagem, miniaturização do personagem
(cortes no plano realizam efeito semelhante ao fim de
Através das Oliveiras, com diferentes
finalidades), um mistério que se esconde e impede
a revelação (misticismo do cinema de ambos),
e também uma certa vontade de exercitar o dom
"f for fake" do cinema. Ficção
do real, O Céu Gira prova por sua força
que o documentário, como arte lição
de Rouch, de Wiseman, de Coutinho , para fugir
do fetiche do registro, só pode ser salvo pelo
conceito.
Ruy Gardnier
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