PARALELAS E TRANSVERSAIS
Nordeste, de Juan Solanas
Quando Sei Nato non Puoi Piu Nasconderti, de Marco Tulio Giordana


Argentina/França, 2005
Itália/Inglaterra/França, 2005


Um dos fenômenos mais marcantes, que se acentua a partir da segunda metade do século passado, e hoje aparece vivo como nunca no mundo (e por isso mesmo também encarnado no cinema mundial), é a má consciência do Primeiro Mundo (em especial, dos europeus) em relação ao seu passado, e mesmo o seu presente, no que tange o Terceiro Mundo. Esta tendência, se está mais viva do que nunca, como podemos ver no verdadeiro tratado sobre o assunto que é A febre, e se encontra seu exemplar mais “artisticamente relevante” no igualmente deplorável Caché, pode ser vista ainda em muitos outros dos filmes em cartaz nos festivais internacionais do momento. Os dois exemplos que pegamos aqui são apenas mais duas vertentes deste fenômeno.

Nordeste é um filme de Juan Solanas, filho de Fernando Solanas, criado no exílio francês do seu pai, e que por lá ficou após a volta paterna à terra natal. É, de fato, um cineasta francês, como demonstrava seu curta O homem sem cabeça, um sub-Jean-Pierre Jeunet que rodou com sucesso os festivais do mundo. Pois, na sua estréia em longa-metragam, Juan Solanas precisa revisitar suas origens argentinas, e se encontra encarnado neste filme na personagem principal interpretada por Carole Bouquet. Seu olhar sobre o que filma na Argentina é tão estrangeiro quanto o dela sobre o país que visita.
Acompanhamos no filme duas tramas paralelas cujo imbricamento é mais do que óbvio: a quarentona francesa solteirona que vai à América do Sul adotar uma criança, e a pobre-coitada argentina do interior que não consegue sustentar a filha. Até chegarmos no óbvio encontro das duas mulheres, o que vemos é um catálogo de horrores do Terceiro Mundo sendo desvendados aos olhos de Bouquet (horrores, porém também com muita humanidade, se é que me entendem). Tudo sempre, é claro, numa fotografia impecável e com a profundidade de caracterização de personagens que se pode esperar de um filme onde o vilão, por exemplo, persegue a mocinha indefesa com o seu carro e atropela a bicicleta dela sem nenhum motivo aparente – só porque ele é mau.

“Filme de arte” por filiação, Nordeste tempera seu cinema-denúncia com muito filtro, névoa e pôr do sol. É cool demais para se assumir como melodrama, estilizado demais para atingir o naturalismo que finge buscar, mas também é nobre demais para se assumir artificial. Ou seja, passeia sempre naquele limbo sem qualquer consistência do filme “humano-emocionante”, que precisa trazer o choque do conteúdo sem ser desagradável na imagem. Deseja, acima de todos os adjetivos, ser um filme “bonito” – e como a maioria dos que assim o fazem, é um verdadeiro horror. Previsível em cada sequência, é um dos exemplares mais assépticos do cinema da culpa que vemos em algum tempo.

Da mesma estirpe, ainda que em linhagem levemente distinta, vem Quando sei nato non puoi piu nasconderti, cujo título já diz quase tudo sobre as intenções do filme: abrir os olhos da burguesia italiana para o fato de que há miséria no mundo (e pior, na porta de suas casas). O filme começa com cenas banais do cotidiano de uma família pequeno-burguesa típica, numa pequena cidade italiana. Vivem bem, felizes – mas a filmagem curiosamente traz o cheiro de que a tragédia se aproxima daquele lar. Nenhum plano é realizado simplesmente por interesse no que fazem e dizem aquelas pessoas, todos parecem reiterar sempre que aquela felicidade precisará pagar um preço. É o bom e velho cinema que usa seus personagens para passar lições de moral.

Lá pela meia hora do filme, a sequência que insere a tragédia até causa algum interesse, porque parece instaurar uma perda de controle, um luto sincero. A sensação dura poucos segundos, pois o salvamento que se aproxima reinsere o cunho sociológico barato: retirado do mar onde se afogava por um barco de refugiados (cujos pilotos podiam facilmente ir dirigir a pickup que persegue bicicletas em Nordeste), o jovem burguês abrirá seus olhos para a verdade do mundo – na forma de dois irmãos romenos pobres (mas muito bonitos). Isso tudo num barco que parece patrocinado pelas United Colors of Benetton.

Quando sei nato... é o exemplar típico do cinema-ONG: apelando para o dualismo da culpa social e da piedade, rebaixa os “menos favorecidos” a objetos de fascínio/compaixão nas mãos dos autênticos protagonistas, os sujeitos de sempre, a burguesia. Na metáfora que monta, tenta nos dizer que todos são crianças, e é sendo fiel a este mote que realiza seu filme: assume o espectador como um menino de 7 anos de idade, desavisado, ingênuo, precisando de esclarecimentos sobre “como são as coisas do mundo”, de alguém que lhe dê a mão e mostre o caminho. Cheio de falsos finais, não consegue resistir à tentação de chafurdar cada vez mais na sua própria piscina de auto-lamentação. O objetivo é o de sempre: que ao final as platéias se sintam mais “humanas” simplesmente por terem expiado, elas também, as suas culpas, se identificando com os personagens em sua via crúcis iluminadora, e apiedadas do sofrimento alheio. Cinema-circo, versão assistencialista.

Para que não se diga que são filmes sem função, a verdadeira utilidade de obras como Nordeste e Quando sei nato..., passa bem longe do esclarecimento que supõem, ou de qualquer relevância política ou social: o que eles fazem melhor é nos ajudar a entender, mais do que qualquer mensalão, as origens e a profundidade da crise do pensamento de esquerda no mundo.

Eduardo Valente