Um dos fenômenos mais marcantes, que se
acentua a partir da segunda metade do século passado,
e hoje aparece vivo como nunca no mundo (e por isso
mesmo também encarnado no cinema mundial), é a má consciência
do Primeiro Mundo (em especial, dos europeus) em relação
ao seu passado, e mesmo o seu presente, no que tange
o Terceiro Mundo. Esta tendência, se está mais viva
do que nunca, como podemos ver no verdadeiro tratado
sobre o assunto que é A febre, e se encontra
seu exemplar mais “artisticamente relevante” no igualmente
deplorável Caché, pode ser vista ainda em muitos
outros dos filmes em cartaz nos festivais internacionais
do momento. Os dois exemplos que pegamos aqui são apenas
mais duas vertentes deste fenômeno.
Nordeste é um filme de Juan Solanas, filho de
Fernando Solanas, criado no exílio francês do seu pai,
e que por lá ficou após a volta paterna à terra natal.
É, de fato, um cineasta francês, como demonstrava seu
curta O homem sem cabeça, um sub-Jean-Pierre
Jeunet que rodou com sucesso os festivais do mundo.
Pois, na sua estréia em longa-metragam, Juan Solanas
precisa revisitar suas origens argentinas, e se encontra
encarnado neste filme na personagem principal interpretada
por Carole Bouquet. Seu olhar sobre o que filma na Argentina
é tão estrangeiro quanto o dela sobre o país que visita.
Acompanhamos no filme duas tramas paralelas cujo imbricamento
é mais do que óbvio: a quarentona francesa solteirona
que vai à América do Sul adotar uma criança, e a pobre-coitada
argentina do interior que não consegue sustentar a filha.
Até chegarmos no óbvio encontro das duas mulheres, o
que vemos é um catálogo de horrores do Terceiro Mundo
sendo desvendados aos olhos de Bouquet (horrores, porém
também com muita humanidade, se é que me entendem).
Tudo sempre, é claro, numa fotografia impecável e com
a profundidade de caracterização de personagens que
se pode esperar de um filme onde o vilão, por exemplo,
persegue a mocinha indefesa com o seu carro e atropela
a bicicleta dela sem nenhum motivo aparente – só porque
ele é mau.
“Filme de arte” por filiação, Nordeste tempera
seu cinema-denúncia com muito filtro, névoa e pôr do
sol. É cool demais para se assumir como melodrama,
estilizado demais para atingir o naturalismo que finge
buscar, mas também é nobre demais para se assumir artificial.
Ou seja, passeia sempre naquele limbo sem qualquer consistência
do filme “humano-emocionante”, que precisa trazer o
choque do conteúdo sem ser desagradável na imagem. Deseja,
acima de todos os adjetivos, ser um filme “bonito” –
e como a maioria dos que assim o fazem, é um verdadeiro
horror. Previsível em cada sequência, é um dos exemplares
mais assépticos do cinema da culpa que vemos em algum
tempo.
Da mesma estirpe, ainda que em linhagem levemente distinta,
vem Quando sei nato non puoi piu nasconderti,
cujo título já diz quase tudo sobre as intenções do
filme: abrir os olhos da burguesia italiana para o fato
de que há miséria no mundo (e pior, na porta de suas
casas). O filme começa com cenas banais do cotidiano
de uma família pequeno-burguesa típica, numa pequena
cidade italiana. Vivem bem, felizes – mas a filmagem
curiosamente traz o cheiro de que a tragédia se aproxima
daquele lar. Nenhum plano é realizado simplesmente por
interesse no que fazem e dizem aquelas pessoas, todos
parecem reiterar sempre que aquela felicidade precisará
pagar um preço. É o bom e velho cinema que usa seus
personagens para passar lições de moral.
Lá pela meia hora do filme, a sequência que insere a
tragédia até causa algum interesse, porque parece instaurar
uma perda de controle, um luto sincero. A sensação dura
poucos segundos, pois o salvamento que se aproxima reinsere
o cunho sociológico barato: retirado do mar onde se
afogava por um barco de refugiados (cujos pilotos podiam
facilmente ir dirigir a pickup que persegue bicicletas
em Nordeste), o jovem burguês abrirá seus olhos
para a verdade do mundo – na forma de dois irmãos romenos
pobres (mas muito bonitos). Isso tudo num barco que
parece patrocinado pelas United Colors of Benetton.
Quando sei nato... é o exemplar típico do cinema-ONG:
apelando para o dualismo da culpa social e da piedade,
rebaixa os “menos favorecidos” a objetos de fascínio/compaixão
nas mãos dos autênticos protagonistas, os sujeitos de
sempre, a burguesia. Na metáfora que monta, tenta nos
dizer que todos são crianças, e é sendo fiel a este
mote que realiza seu filme: assume o espectador como
um menino de 7 anos de idade, desavisado, ingênuo, precisando
de esclarecimentos sobre “como são as coisas do mundo”,
de alguém que lhe dê a mão e mostre o caminho. Cheio
de falsos finais, não consegue resistir à tentação de
chafurdar cada vez mais na sua própria piscina de auto-lamentação.
O objetivo é o de sempre: que ao final as platéias se
sintam mais “humanas” simplesmente por terem expiado,
elas também, as suas culpas, se identificando com os
personagens em sua via crúcis iluminadora, e apiedadas
do sofrimento alheio. Cinema-circo, versão assistencialista.
Para que não se diga que são filmes sem função, a verdadeira
utilidade de obras como Nordeste e Quando
sei nato..., passa bem longe do esclarecimento que
supõem, ou de qualquer relevância política ou social:
o que eles fazem melhor é nos ajudar a entender, mais
do que qualquer mensalão, as origens e a profundidade
da crise do pensamento de esquerda no mundo.
Eduardo Valente
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