A grande questão a respeito de Morro da Conceição
é a sua construção de objeto. O
filme é marcado por uma tensão absolutamente
determinante entre dois traços, tensão
essa expressada em dois critérios de montagem.
O primeiro é a óbvia inclinação,
expressada sobretudo no jogo de iluminação
que inicia e encerra o filme e nas inserções
de planos de ruas e praças da região título,
de se fazer uma geografia. Ora, Morro da Conceição
se diz, desde o título, um filme sobre o espaço
ou sobre uma espacialidade conceitual. O Morro da Conceição,
nos arredores da Praça Mauá, Centro do
Rio, é um espaço simbólico em relação
ao espaço. Sua existência é, de
certa forma, um desafio ao Centro do Rio, já
que destoa dele por ser uma área residencial
colada ao centro nervos(íssim)o da cidade. O
segundo é o fato de que o filme é, no
final das contas, um recorte. Nas mãos de Cristiana
Grumbach a região vira um espaço simbólico
também em relação ao tempo. Em
vez de fazer uma sociologia do local, ela resolveu fazer
uma antropologia da longevidade: ela colhe depoimentos
apenas de idosos. Ela seleciona apenas um tipo de morador
do local que escolheu para sua geografia (por mais humana
que esta seja). É nas mãos deles que fica
a tarefa de construir o local narrativamente. Daí
o bairro e suas ruas se tornarem uma área para
se pensar "um Rio que não existe mais",
quer ele tenha mudado fisicamente quer a visão
dos entrevistados tenha mudado ela mesma (pela passagem
do tempo ou pelas lentes da nostalgia, que invariavelmente
cegam um narrador). As memórias dos moradores
servem não apenas para se fazer uma crônica
da Zona Portuária carioca, mas também
para mostrar como o homem exercita o poder narrativo
quando ao mesmo tempo tem (nas costas) e não
tem (no horizonte) todo o tempo do mundo.
Daí ser inevitável uma comparação,
por vários motivos: Morro da Conceição
é um filme que se aproxima de O fim e o Princípio,
de Eduardo Coutinho. Um dos motivos óbvios dessa
comparação é o fato de Cristiana
Grumbach trabalhar com Coutinho em todos os seus últimos
filmes, inclusive em O Fim e o Princípio.
Outro é o fato de que as filmagens do filme dela
são anteriores às do de Coutinho, o que
pode apontar uma certa influência de um sobre
o outro. Mas o fato é que ambos falam sobre a
finitude da vida e sobre os horizontes da memória
observados em ilhas de eternidade. No filme de Coutinho,
em uma comunidade no Nordeste; no de Cristiana Grumbach,
em um bairro que parece deslocado da lógica de
uma cidade grande e cosmopolita.
Os dois filmes são realmente muito próximos
porque problematizam a relação entre memória
e proximidade da morte a partir da produção
de (ou do encontro com) ilhas de eternidade no meio
do oceano de aceleração do mundo contemporâneo.
Mas Morro da Conceição parte de
uma opção de montagem: o filme escolhe
apenas os personagens mais velhos e faz, com isso, um
filme sobre a visão que um determinado tipo de
morador tem de uma localidade. Seu recorte no mínimo
limita o filme. Sobretudo na contradição
dessa opção com a clara vontade de fazer
a "geografia humana do local". Não
é, segundo o próprio subtítulo
("Morro da Conceição. E do Seu Chapéu,
e da Dona Nenê" etc), apenas um filme sobre
o local, mas também sobre as pessoas.
Não é, entretanto, sobre todas as pessoas.
É só sobre algumas, no sentido em que
é apenas sobre uma de suas categorias de pessoas.
Não é preciso dizer que a totalização
possível a respeito do local vai por água
abaixo com esse flerte com o emocional. Sim, porque
a opção do filme é claramente por
uma afetividade: ali não moram só velhinhos,
mas os velhinhos são mais expressivos, mais memorialistas,
mais nostálgicos, mais tocantes. O filme seria,
então descobrimos quando notamos que apenas
eles, apenas os moradores mais antigos terão
voz sobre a busca de uma memória do lugar.
A questão passa a ser o conteúdo intrínseco
das falas deles: "o passado era melhor", "o
carnaval acabou", "por que tudo tem mudar?",
"a velhice é dolorida", "o importante
é viver" etc. Isso, idosos de outros locais
poderiam dizer, fossem do Grajaú, fossem da Cidade
de Deus (estes últimos, claro, com os componentes
de outra nostalgia, mas a questão, no final das
contas, é existencial, não social).
Na comparação com O Fim e o Princípio,
a produção da ilha de eternidade do filme,
o espaço em que o tempo é gerido pela
memória e por pouca perspectiva de futuro, Coutinho
vai aonde a velhice é regra, com raras exceções:
no interior do Nordeste, o jovem está indo embora
e, por hierarquia, quem fala é quem está
à frente da família. Os jovens que ficam,
poucos, ficam velhos em sua própria lógica.
A menina-guia destoa tanto dos entrevistados que virou
guia, parte dos entrevistadores, uma tradutora de "idosês".
Morro da Conceição, não,
recorta os idosos da ambiência da região,
que é coalhada de crianças e jovens.
Se é um filme sobre esses idosos, então,
a opção pelo uso da livre fala fez ficarem
apenas insinuados os elementos que fazem daqueles personagens
singulares: mais do que refletirem o passado de uma
região, eles têm um passado, ligado
a uma das regiões que compuseram e ainda compõem,
um certo submundo da cidade grande. O Morro da Conceição
não é apenas um espaço idílico
do Centro, é também um campo de referências
da Zona Portuária, um correlato da Lapa mítica
de Madama Satã (que é citado por um dos
entrevistados, aliás). E é no passado
desses personagens que está o filme, embora sua
montagem não tenha encontrado a maneira de externalizar
isso, que aparece insinuado em várias falas.
"Eu tentei matar um homem", "Eu ia pro
corso e me acabava", "Brigava, naquele tempo
se dava de navalha", "Conheci o Madame Satã",
"Os homens passavam a mão na gente no baile".
Ora, a velhice costuma produzir um passado mais doce,
um passado mítico em que tudo se perdoa, tudo
vira "a vida". Idosos, os personagens ainda
são pessoas cheias de contradições
e cuja juventude foi expressivamente rica, mas a dimensão
emocional de sua idade, a suposta sabedoria que vem
com a velhice doma a câmera e o final cut.
Não estou dizendo, com isso, que o filme deveria
ter forçado os idosos a "deixar cair máscaras"
e nem estou propondo o meu filme no lugar do de Cristiana
Grumbach. Quero dizer, em vez disso, que o material
traz esse conteúdo intrinsecamente e era a chave
para fazer o filme escapar de uma certa tendência
afetiva do documentarismo que acaba por prejudicar o
que há de documental mesmo nos filmes.
Ora, era mais ou menos claro, antes de filmar, que ali,
não se estaria diante de idosos quaisquer. É
como se fazer um filme em Vila Aliança. É
claro que vários dos personagens terão
passados ligados à criminalidade. Se não
se pode pré-estabelecer o documentário,
também não se pode ignorar esse conhecimento
prévio. O mito da generosidade absoluta do documentarista,
da fuga da semiologia imposta pelo diretor, levado ao
limite, ou produz uma certa inocência no diretor
mesmo ou pressupõe a mesma inocência no
espectador. Claro, a comparação com a
Vila Aliança é apenas por contigüidade
conceitual. Não é de banditismo que se
fala em Morro da Conceição, mas é
igualmente de uma relação com a moralidade
e com a história.
E o fato de Cristiana Grumbach ser jovem ainda traz
uma vantagem a seu filme: ela é jovem. Ser jovem
é estar (estatisticamente) longe da morte e ter
a possibilidade de desafiá-la, rir dela. Ela
é diferente de Coutinho diante dos idosos no
Nordeste. Ele pergunta se eles têm medo da morte
e recebe de volta: "E o senhor, não tem?".
Não se trata de respeitar ou não os entrevistados,
mas é claro que 94 anos de vida trazem mais,
muito mais do que a experiência de rezadeira e
ter visto o jornal A Noite ser invadido! Há pessoas
que nasceram na primeira década do século
passado. É gente que viu a cidade ser transformada
a ferro e a fogo e que teve posições políticas
em relação a cada ferro e a cada fogo
que modificou a cidade. Os ecos do passado, entretanto,
preferem ser doces.
Como arqueologia de almas, entretanto, o filme aponta
para uma bela contradição poderosa: essa
dimensão todo-idoso-é-igual que pulsa
em cada entrevista contrasta com a vontade de singularidade
que cada um manifesta. Nesse sentido, a opção
de câmera de Jacques Cheuiche que a realizadora
utilizou é determinante. Não pelas claques
geográficas, mas pela relação com
o olhar. A câmera sempre procura a permanência
do olhar, sempre procura dar a chance de cada um ser
apenas um. E esse é o grande mérito do
filme, sua vontade de humanização, sem
falseamento.
Alexandre Werneck
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