Imagina-se
Ousmane Sembene à maneira como ele apresenta
a personagem de Colle: alguém que sabe exatamente
o que quer. Não é o único, mas
esse direcionamento claro, essa exatidão, essa
precisão de proposta talvez seja o maior trunfo
de Moolaadé. Normalmente, quando
somos confrontados a ficções políticas
de esquerda, o diretor parece ficar nos pedindo desculpas
o tempo inteiro por politizar o discurso: vemos então
tentativas frouxas de criar romances, intrigas romanescas,
artifícios de roteiro destinados a aproximar
o espectador convencional, a fazer do filme "um
filme". Naturalmente, essas tentativas volta e
meia são falidas porque nem conseguem cativar
o mínimo de interesse por parte do diretor, que
vê nelas apenas uma concessão para atenuar
a carga do discurso. Em Moolaadé, nada
disso. Nenhuma manobra diversionista, nenhuma subtrama
que nos desligue da temática central, uma frontalidade
que chega a ser ofensiva. Ousmane Sembene sabe que cinema
político não é a adição
de um conteúdo a uma estrutura conhecida (a dos
filmes convencionais), mas a subtração
de uma série de confetes espetaculares que mantém
uma relação ilusionista com o espectador.
E quanto mais direto um filme for com seu tema, quanto
mais austera for a relação com o espectador,
melhor o resultado será atingido. E Moolaadé
é uma única linha reta com destino à
resistência, ao questionamento, às tensões
nascidas da relação entre a tradição
e a modernidade.
Moolaadé nos instala de imediato num vilarejo
africano longínquo. A distância de qualquer
cidade grande é sublinhada pela banca de mercadorias
capitaneada por Mercenaire, um comerciante mulherengo
e aproveitador que superfatura seus produtos por ser
o único da região. Num dia como outro
qualquer, algumas meninas aparecem em frente à
casa de Colle, uma portentosa mulher que anos atrás
não permitiu que sua filha fosse mutilada em
seus órgãos genitais, conforme a tradição
da tribo. Esse grupo de meninas pede que ela, como única
na tribo que já se sensibilizou por essa situação,
proteja-as como anteriormente protegera sua filha. Colle
então invoca a moolaadé, proteção
sagrada que só pode ser revogada por aquela que
a proclamou, e que estabelece um espaço como
intocável por aqueles que não forem convidados
a entrar. A partir da invocação da proteção,
o filme funciona em estrutura de cascata. Primeiro as
mães vão reclamar suas filhas, depois
os anciãos da cidade, e por fim o clímax,
com a chegada do marido e as chicotadas em praça
pública. É engraçado fazer um tipo
de comparação com os filmes que geralmente
seguem um percurso semelhante. Eles fatalmente tenderiam
a dramatizar a dúvida da personagem, a criar
suspense em cima de seu sofrimento e de sua posição
cada vez mais solitária no seio daquela sociedade.
Ora, Moolaadé não está disposto
a usar esses truques narrativos com seu espectador.
Sua dramaturgia em linha reta exige que Colle não
titubeie em nenhum momento, que ela seja a recipiente
perfeita da mudança, da contestação,
que ela seja a encarnação de uma idéia.
Porque o objetivo de Ousmane Sembene é claramente
o de discutir uma idéia, e de criar uma ficção
unicamente com o fim de desenvolvê-la e dramatizá-la.
Talvez essa seja a grande diferença que sobressai
comparando mentalmente a experiência de assistir
a Moolaadé com a experiência de
assistir a outros filmes "políticos".
A primeira impressão é que Moolaadé
parece "primário" em comparação,
impregnado da "mensagem" que tem para passar
e sem nenhuma operação expressiva além
disso, mas é justamente o contrário. Mal
acostumados que estamos aos protocolos de um cinema
"sério", temos o pendor instintivo
de medir o "mínimo de dramaturgia aceitável"
comparando-o com a média dos filmes que nos interessa
(e, convenhamos, a exibição em DVD na
Mostra de São Paulo acabou com toda fruição
da fotografia que poderíamos ter do filme). Mas
Sembene busca outro tipo de expressão, e nesse
sentido é tão minucioso quanto Straub-Huillet
ou Brakhage em seus respectivos ramos, só que
talvez mais incompreendido, porque seus fins não
são imediatamente plásticos, ou de embevecimento.
Moolaadé é um filme de ação,
um filme que partilha do desejo de pura denotação
a fim de estabelecer uma arte materialista, que nos
forneça as condições materiais
de uma dada situação (como era que Godard
dizia? Uma análise precisa de uma situação
precisa) e faça toda ação derivar
das injustiças mostradas no estudo preciso do
estado de coisas. Moolaadé começa
morno, talvez até desajeitado, mas nos pega pelo
braço e termina épico, como se Brecht
jamais tivesse tido melhor seguidor no cinema. Não
é o filme mais ousado de Ousmane Sembene, mas
Moolaadé nos deixa feliz por reavivar
uma posição em relação ao
cinema e à vida que nos emociona, numa área
o "cinema político" que
geralmente costuma nos desabonar justamente por não
ser sincero o suficiente, por ser mais retórico
do que eficaz. Sembene, ao contrário, faz seu
cinema com suas vísceras, e com precisão
impecável.
Ruy Gardnier
|