MOOLAADÉ
Ousmane Sembene, Moolaadé, Senegal/França/
Burkina Faso/Camarões/Marrocos/Tunísia, 2004

Imagina-se Ousmane Sembene à maneira como ele apresenta a personagem de Colle: alguém que sabe exatamente o que quer. Não é o único, mas esse direcionamento claro, essa exatidão, essa precisão de proposta talvez seja o maior trunfo de Moolaadé. Normalmente, quando somos confrontados a ficções políticas de esquerda, o diretor parece ficar nos pedindo desculpas o tempo inteiro por politizar o discurso: vemos então tentativas frouxas de criar romances, intrigas romanescas, artifícios de roteiro destinados a aproximar o espectador convencional, a fazer do filme "um filme". Naturalmente, essas tentativas volta e meia são falidas porque nem conseguem cativar o mínimo de interesse por parte do diretor, que vê nelas apenas uma concessão para atenuar a carga do discurso. Em Moolaadé, nada disso. Nenhuma manobra diversionista, nenhuma subtrama que nos desligue da temática central, uma frontalidade que chega a ser ofensiva. Ousmane Sembene sabe que cinema político não é a adição de um conteúdo a uma estrutura conhecida (a dos filmes convencionais), mas a subtração de uma série de confetes espetaculares que mantém uma relação ilusionista com o espectador. E quanto mais direto um filme for com seu tema, quanto mais austera for a relação com o espectador, melhor o resultado será atingido. E Moolaadé é uma única linha reta com destino à resistência, ao questionamento, às tensões nascidas da relação entre a tradição e a modernidade.

Moolaadé nos instala de imediato num vilarejo africano longínquo. A distância de qualquer cidade grande é sublinhada pela banca de mercadorias capitaneada por Mercenaire, um comerciante mulherengo e aproveitador que superfatura seus produtos por ser o único da região. Num dia como outro qualquer, algumas meninas aparecem em frente à casa de Colle, uma portentosa mulher que anos atrás não permitiu que sua filha fosse mutilada em seus órgãos genitais, conforme a tradição da tribo. Esse grupo de meninas pede que ela, como única na tribo que já se sensibilizou por essa situação, proteja-as como anteriormente protegera sua filha. Colle então invoca a moolaadé, proteção sagrada que só pode ser revogada por aquela que a proclamou, e que estabelece um espaço como intocável por aqueles que não forem convidados a entrar. A partir da invocação da proteção, o filme funciona em estrutura de cascata. Primeiro as mães vão reclamar suas filhas, depois os anciãos da cidade, e por fim o clímax, com a chegada do marido e as chicotadas em praça pública. É engraçado fazer um tipo de comparação com os filmes que geralmente seguem um percurso semelhante. Eles fatalmente tenderiam a dramatizar a dúvida da personagem, a criar suspense em cima de seu sofrimento e de sua posição cada vez mais solitária no seio daquela sociedade. Ora, Moolaadé não está disposto a usar esses truques narrativos com seu espectador. Sua dramaturgia em linha reta exige que Colle não titubeie em nenhum momento, que ela seja a recipiente perfeita da mudança, da contestação, que ela seja a encarnação de uma idéia.

Porque o objetivo de Ousmane Sembene é claramente o de discutir uma idéia, e de criar uma ficção unicamente com o fim de desenvolvê-la e dramatizá-la. Talvez essa seja a grande diferença que sobressai comparando mentalmente a experiência de assistir a Moolaadé com a experiência de assistir a outros filmes "políticos". A primeira impressão é que Moolaadé parece "primário" em comparação, impregnado da "mensagem" que tem para passar e sem nenhuma operação expressiva além disso, mas é justamente o contrário. Mal acostumados que estamos aos protocolos de um cinema "sério", temos o pendor instintivo de medir o "mínimo de dramaturgia aceitável" comparando-o com a média dos filmes que nos interessa (e, convenhamos, a exibição em DVD na Mostra de São Paulo acabou com toda fruição da fotografia que poderíamos ter do filme). Mas Sembene busca outro tipo de expressão, e nesse sentido é tão minucioso quanto Straub-Huillet ou Brakhage em seus respectivos ramos, só que talvez mais incompreendido, porque seus fins não são imediatamente plásticos, ou de embevecimento. Moolaadé é um filme de ação, um filme que partilha do desejo de pura denotação a fim de estabelecer uma arte materialista, que nos forneça as condições materiais de uma dada situação (como era que Godard dizia? Uma análise precisa de uma situação precisa) e faça toda ação derivar das injustiças mostradas no estudo preciso do estado de coisas. Moolaadé começa morno, talvez até desajeitado, mas nos pega pelo braço e termina épico, como se Brecht jamais tivesse tido melhor seguidor no cinema. Não é o filme mais ousado de Ousmane Sembene, mas Moolaadé nos deixa feliz por reavivar uma posição em relação ao cinema e à vida que nos emociona, numa área – o "cinema político" – que geralmente costuma nos desabonar justamente por não ser sincero o suficiente, por ser mais retórico do que eficaz. Sembene, ao contrário, faz seu cinema com suas vísceras, e com precisão impecável.

Ruy Gardnier