A
grande surpresa de Mistérios da Carne não
está na primeira evidência que o filme
entrega – a de um trauma originário que repercute
de forma absolutamente antagônica na vida de dois
adolescentes. Nem na estilização – a meio
caminho entre o virtuosismo e o acometimento profundo
em relação ao assunto em questão
– que seu diretor/roteirista/montador Gregg Araki depura
ao longo de 99 minutos. O que espanta e deslumbra neste
filme são as saídas, sempre cativantes,
que ele encontra diante das suas muitas sinucas de bico.
O trauma deixa de ser assunto psicanalítico à
mesma medida que não se esconde em figuras de
recalque: é pela construção de
um imaginário – fantasia romântica de um
verão perdido no tempo ou fábula sci-fi
de abdução por alienígenas – que
Mistérios da Carne retorna à cena
inaugural da história que conta, ou seja, ao
abuso sexual de duas crianças por um adulto.
Mas talvez o filme torne inapropriada essa expressão
outrora inequívoca, "abuso", tamanha
a peculiaridade de seu relato.
Duas crianças, um mesmo episódio, dois
desdobramentos. Neil já começa contando
como foi aliciado, quando tinha oito anos de idade,
pelo treinador de baseball de dentes claros e
bigode aparado, um tipo físico que ele mais tarde
apreciaria nos homens. Enquanto Neil lembra claramente,
com rigor de detalhes, tudo que aconteceu na sala repleta
de brinquedos e jogos de Atari da casa do treinador,
Brian diz que com aquela mesma idade sofreu um apagão
e cinco minutos de vida lhe foram arrancados da consciência.
Mas percebemos que ele também foi vítima,
se não do mesmo, de um assédio semelhante
ao que Neil narra até com certa nostalgia. Não
é surpresa de roteiro: o filme não cria
suspense barato em cima disso, e seu paralelismo narrativo
traz uma enorme carga de honestidade frente às
possíveis diferenças de abordagem a um
mesmo evento-trauma. Nas primeiras imagens do filme
já se define essa divergência de visões:
a chuva de cereais coloridos que cai em câmera
lenta sobre a cabeça de Neil, rosto maravilhado,
sorriso aberto, é completamente diferente do
aguaceiro que desaba sobre Brian, encolhido atrás
de seus óculos no banco de reservas do time de
baseball. Um mesmo movimento de câmera
(o tilt que desce da chuva em direção
ao rosto da criança) introduz duas situações
díspares e – mais ainda – dois destinos opostos,
que as vozes em off de Brian e Neil evocam com
estranheza e encantamento. O que para Brian se configura
como a origem do engessamento de um processo – sua transição
da infância para a idade adulta, já que
ele fica preso aos hábitos infantis e a uma condição
"assexuada", como se algo ocorrido naquele
momento de que não se lembra o travasse na eterna
repetição de uma mesma quimera infanto-juvenil
–, para Neil não tem qualquer conotação
de fuga do fato real através de uma maquinação
que extrapola os limites carnais e terrestres. Neil
leva a cicatriz para dentro da carne, revisitando-a
todos os dias ao se prostituir para homens mais velhos.
Eterno desejo de imagem, para um, e eterno desejo de
corpo, para outro. Mas o mistério é o
mesmo: a história de aliens e a aventura
por motéis e boates guardam uma origem comum,
são homólogas e portanto inseparáveis.
Ou melhor: devem se reatar um dia (como acontece no
final).
Esse episódio que aparentemente só pediria
um tratamento, o do repúdio e do asco, rende
para Gregg Araki um misto de sobriedade e obnubilação.
Ele pôs a interrogação de parti
pris que nenhum outro filme anterior que tratasse
do mesmo assunto havia posto de verdade: nós
adultos só conseguimos olhar para a pedofilia
do treinador com ares reprovadores e indignados, mas
o que um acontecimento como esse representa na mente
da criança que o vivencia? A partir dessa crucial
interrogação, o filme não consegue
se fixar nem na sordidez nem na doçura (pois
doce é a forma do treinador se aproximar dos
meninos), e se torna todo ele uma paisagem tão
turva quanto interior – ainda que essa paisagem se dê
a ver na pele, nos rostos (maquiados ou não),
nas paredes com pôsteres ou pichações,
nos signos externos. A fronteira entre os planos subjetivos
e aqueles mais próximos de um registro direto
se torna aqui bastante oscilatória. Verdadeiro
e falso, natureza e artifício pregueados um sobre
o outro, não sobram inferno nem paraíso
incontestáveis: há um problema, como não
poderia deixar de haver, e o que se destaca daí
é muito menos da ordem do abjeto e imoral do
que daquela – que não esconde seus poderes de
sedução – do mistério, do enigma.
É uma arte de abstracionismo que não reconhece
senão maneiras irredutivelmente concretas de
mostrar o que deseja. Araki não encena eufemismos,
nem põe em dúvida o que vemos: se num
determinado momento uma mão alienígena
se substitui ao toque do adulto pedófilo, é
porque o filme se dedica, sobretudo, ao imaginário
dos seus personagens, às suas vias particulares
de interação com o mundo.
A pele, que o filme carrega no título original
(adaptação do romance de Scott Heim, de
fortes traços autobiográficos), mostra-se
a superfície viva em que as mudanças do
filme se inscrevem; um receptáculo de modulações
gráficas ou de signos de auto-inclusão
numa cultura pop distante (a maquiagem, os piercings
e as roupas de Eric, o amigo de Neil que não
sai da cidade pequena em que vivem, mas parece antenado
com tudo que acontece em Londres ou Nova York), de sinais
biológicos ou de sinais extraterrestres (as manchas
do sarcoma de Kaposi no tronco de um dos clientes de
Neil; o corte na perna de Avalyn – a amiga ufóloga
que Brian arranja após assistir a um programa
de tv – que ela diz ter sido obra de seres de outro
planeta). A pele é o que permite ao filme transformar
tudo em jogo de superfícies, mas é também
o que o obriga às instâncias mais profundas.
Local em que se manifesta tudo, do desejo ao medo, do
amor à doença. Quando Avalyn vai à
casa de Brian e tenta afoitamente tirar sua roupa, em
meio a palavras de sedução nada convincentes,
a ficha dele cai. O curto-circuito entre sua obsessão
com alienígenas e a violação sexual
vem à tona. Entre a fascinante chegada de um
disco voador, vista por uma criança, e a brutalidade
de um estupro sofrido por um adolescente (Neil encurralado
na banheira do redneck que o espanca), Mistérios
da Carne estabelece uma relação de
notável franqueza com seus personagens. Eles
recebem de Gregg Araki uma liberdade emocionante, uma
oportunidade de serem amados não importa o que
façam.
No final do filme, o retorno à casa vazia do
treinador, lugar que o tempo tratou de fantasmagorizar.
Desenho da catarse por excelência: com Brian deitado
a seu colo, em posição fetal, no sofá
(na cena do "crime", por assim dizer), Neil
acolhe o amigo carinhosamente e conta de uma vez por
todas, sem ignorar as nuances, o que ocorreu entre eles
dois e o treinador. O filme faz seu último movimento
arriscado, e sai ganhando novamente. A penumbra da sala
vai gradualmente se acentuando até que sobram
apenas o sofá e eles dois, todo o resto da casa
apagado e esquecido. Não é fácil
saber toda a verdade e ter de lidar com ela constantemente,
como Neil confessa a Brian. Dali em diante tudo mudará
para melhor? Ou será ladeira abaixo? Resposta
que não cabe ao filme induzir. O importante é
ter em mente que descer a ladeira, em Mistérios
da Carne, não significa perder a viagem,
ou muito menos passar ao largo da beleza que pode existir
na trajetória de vida de uma pessoa. Até
onde o filme se permite ir, sobressai a vontade expressa
em palavras por Neil, e que Araki realiza ao fazer o
espaço ao redor deles sumir e a câmera
se distanciar para atingir a escuridão do céu
noturno, aquele em que se insinuam as estrelas, os cometas
e os discos voadores. Desaparição: desejo
maior que a vida, porém inegável neste
filme.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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