MISTÉRIOS DA CARNE
Gregg Araki, Mysterious Skin, EUA, 2005

A grande surpresa de Mistérios da Carne não está na primeira evidência que o filme entrega – a de um trauma originário que repercute de forma absolutamente antagônica na vida de dois adolescentes. Nem na estilização – a meio caminho entre o virtuosismo e o acometimento profundo em relação ao assunto em questão – que seu diretor/roteirista/montador Gregg Araki depura ao longo de 99 minutos. O que espanta e deslumbra neste filme são as saídas, sempre cativantes, que ele encontra diante das suas muitas sinucas de bico. O trauma deixa de ser assunto psicanalítico à mesma medida que não se esconde em figuras de recalque: é pela construção de um imaginário – fantasia romântica de um verão perdido no tempo ou fábula sci-fi de abdução por alienígenas – que Mistérios da Carne retorna à cena inaugural da história que conta, ou seja, ao abuso sexual de duas crianças por um adulto. Mas talvez o filme torne inapropriada essa expressão outrora inequívoca, "abuso", tamanha a peculiaridade de seu relato.

Duas crianças, um mesmo episódio, dois desdobramentos. Neil já começa contando como foi aliciado, quando tinha oito anos de idade, pelo treinador de baseball de dentes claros e bigode aparado, um tipo físico que ele mais tarde apreciaria nos homens. Enquanto Neil lembra claramente, com rigor de detalhes, tudo que aconteceu na sala repleta de brinquedos e jogos de Atari da casa do treinador, Brian diz que com aquela mesma idade sofreu um apagão e cinco minutos de vida lhe foram arrancados da consciência. Mas percebemos que ele também foi vítima, se não do mesmo, de um assédio semelhante ao que Neil narra até com certa nostalgia. Não é surpresa de roteiro: o filme não cria suspense barato em cima disso, e seu paralelismo narrativo traz uma enorme carga de honestidade frente às possíveis diferenças de abordagem a um mesmo evento-trauma. Nas primeiras imagens do filme já se define essa divergência de visões: a chuva de cereais coloridos que cai em câmera lenta sobre a cabeça de Neil, rosto maravilhado, sorriso aberto, é completamente diferente do aguaceiro que desaba sobre Brian, encolhido atrás de seus óculos no banco de reservas do time de baseball. Um mesmo movimento de câmera (o tilt que desce da chuva em direção ao rosto da criança) introduz duas situações díspares e – mais ainda – dois destinos opostos, que as vozes em off de Brian e Neil evocam com estranheza e encantamento. O que para Brian se configura como a origem do engessamento de um processo – sua transição da infância para a idade adulta, já que ele fica preso aos hábitos infantis e a uma condição "assexuada", como se algo ocorrido naquele momento de que não se lembra o travasse na eterna repetição de uma mesma quimera infanto-juvenil –, para Neil não tem qualquer conotação de fuga do fato real através de uma maquinação que extrapola os limites carnais e terrestres. Neil leva a cicatriz para dentro da carne, revisitando-a todos os dias ao se prostituir para homens mais velhos. Eterno desejo de imagem, para um, e eterno desejo de corpo, para outro. Mas o mistério é o mesmo: a história de aliens e a aventura por motéis e boates guardam uma origem comum, são homólogas e portanto inseparáveis. Ou melhor: devem se reatar um dia (como acontece no final).

Esse episódio que aparentemente só pediria um tratamento, o do repúdio e do asco, rende para Gregg Araki um misto de sobriedade e obnubilação. Ele pôs a interrogação de parti pris que nenhum outro filme anterior que tratasse do mesmo assunto havia posto de verdade: nós adultos só conseguimos olhar para a pedofilia do treinador com ares reprovadores e indignados, mas o que um acontecimento como esse representa na mente da criança que o vivencia? A partir dessa crucial interrogação, o filme não consegue se fixar nem na sordidez nem na doçura (pois doce é a forma do treinador se aproximar dos meninos), e se torna todo ele uma paisagem tão turva quanto interior – ainda que essa paisagem se dê a ver na pele, nos rostos (maquiados ou não), nas paredes com pôsteres ou pichações, nos signos externos. A fronteira entre os planos subjetivos e aqueles mais próximos de um registro direto se torna aqui bastante oscilatória. Verdadeiro e falso, natureza e artifício pregueados um sobre o outro, não sobram inferno nem paraíso incontestáveis: há um problema, como não poderia deixar de haver, e o que se destaca daí é muito menos da ordem do abjeto e imoral do que daquela – que não esconde seus poderes de sedução – do mistério, do enigma. É uma arte de abstracionismo que não reconhece senão maneiras irredutivelmente concretas de mostrar o que deseja. Araki não encena eufemismos, nem põe em dúvida o que vemos: se num determinado momento uma mão alienígena se substitui ao toque do adulto pedófilo, é porque o filme se dedica, sobretudo, ao imaginário dos seus personagens, às suas vias particulares de interação com o mundo.

A pele, que o filme carrega no título original (adaptação do romance de Scott Heim, de fortes traços autobiográficos), mostra-se a superfície viva em que as mudanças do filme se inscrevem; um receptáculo de modulações gráficas ou de signos de auto-inclusão numa cultura pop distante (a maquiagem, os piercings e as roupas de Eric, o amigo de Neil que não sai da cidade pequena em que vivem, mas parece antenado com tudo que acontece em Londres ou Nova York), de sinais biológicos ou de sinais extraterrestres (as manchas do sarcoma de Kaposi no tronco de um dos clientes de Neil; o corte na perna de Avalyn – a amiga ufóloga que Brian arranja após assistir a um programa de tv – que ela diz ter sido obra de seres de outro planeta). A pele é o que permite ao filme transformar tudo em jogo de superfícies, mas é também o que o obriga às instâncias mais profundas. Local em que se manifesta tudo, do desejo ao medo, do amor à doença. Quando Avalyn vai à casa de Brian e tenta afoitamente tirar sua roupa, em meio a palavras de sedução nada convincentes, a ficha dele cai. O curto-circuito entre sua obsessão com alienígenas e a violação sexual vem à tona. Entre a fascinante chegada de um disco voador, vista por uma criança, e a brutalidade de um estupro sofrido por um adolescente (Neil encurralado na banheira do redneck que o espanca), Mistérios da Carne estabelece uma relação de notável franqueza com seus personagens. Eles recebem de Gregg Araki uma liberdade emocionante, uma oportunidade de serem amados não importa o que façam.

No final do filme, o retorno à casa vazia do treinador, lugar que o tempo tratou de fantasmagorizar. Desenho da catarse por excelência: com Brian deitado a seu colo, em posição fetal, no sofá (na cena do "crime", por assim dizer), Neil acolhe o amigo carinhosamente e conta de uma vez por todas, sem ignorar as nuances, o que ocorreu entre eles dois e o treinador. O filme faz seu último movimento arriscado, e sai ganhando novamente. A penumbra da sala vai gradualmente se acentuando até que sobram apenas o sofá e eles dois, todo o resto da casa apagado e esquecido. Não é fácil saber toda a verdade e ter de lidar com ela constantemente, como Neil confessa a Brian. Dali em diante tudo mudará para melhor? Ou será ladeira abaixo? Resposta que não cabe ao filme induzir. O importante é ter em mente que descer a ladeira, em Mistérios da Carne, não significa perder a viagem, ou muito menos passar ao largo da beleza que pode existir na trajetória de vida de uma pessoa. Até onde o filme se permite ir, sobressai a vontade expressa em palavras por Neil, e que Araki realiza ao fazer o espaço ao redor deles sumir e a câmera se distanciar para atingir a escuridão do céu noturno, aquele em que se insinuam as estrelas, os cometas e os discos voadores. Desaparição: desejo maior que a vida, porém inegável neste filme.


Luiz Carlos Oliveira Jr.