MEU DEUS, MEU DEUS, POR QUE
ME ABANDONASTES?

Shinji Aoyama, Eli, Eli, lema sabachtani?, Japão, 2005

O cinema como paisagem de imagens e sons. Para Shinji Aoyama, estar no mundo – e na matéria cinematográfica – parece ser, antes de mais nada, estar imerso completamente em imagens e sons, que se mesclam e se fundem indistintivamente. E continuar a existir, saber se relacionar com eles, pois que fomos abandonados por Deus.

Em 2015, o mundo encontra-se devastado por uma epidemia viral supostamente propagada por imagens, que causariam uma excitação ocular incontrolável. A "Síndrome de Lemming" joga suas vítimas numa profunda depressão e leva-as ao suicídio. A overdose de imagens a que somos expostos (imagens frenéticas, saturadas; imagens da memória, testemunho de cenas) nos atira para a beira de um penhasco, no qual precisamos novamente aprender a olhar. Aprender a estabelecer pontes com o mundo a partir da própria desarmonia deste. E talvez neste estado caótico, uma música que é só confusão de sons (notas e ruídos), resistência e alargamento das possibilidades artísticas, possa fazer uma diferença, apontar para uma cura. Da mesma forma que Aoyama busca uma cura com o seu cinema. Cura de males da alma, causados por uma enormidade de enfermidades que o mundo pode vir a oferecer aos mais incautos. É preciso continuar de alguma forma após a devastação. Prosseguir em paisagens devastadas após a vivência do extremo – desertificação de almas por impactos emocionais e esvaziamentos de espaços por destruição disseminada.

E, nestes ambientes hostis, para prosseguir é preciso redescobrir o sentido da companhia, reinventar a família, forjar uniões a partir de parâmetros mais tangíveis do que laços de sangue. Em Eureka, esta união vem a partir do trauma de uma situação extrema perante a própria vida, que joga os personagens numa árdua luta para continuarem existindo; em Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?; um afeto e uma fé que devem ser fortes o suficiente para burlar o impulso incontrolável de auto-destruição. Impulso orgânico, que faz os corpos rejeitarem a vida por um excesso de imagens. Impulso social, que faz os seres negarem a vida por excesso de informações e de demandas.

O excesso sonoro, no entanto, é bem-vindo. Mizui e Asuhara escapam da atribulação da fama, que acometia seu grupo Stepin Fetchit na cidade, para viver em retiro no interior, experimentando com os limites da matéria musical. Curiosa inversão esta, que busca uma reconstituição da vida (da vontade de viver) por uma desertificação de imagens – e da própria imagem do filme, cinemascope para o amplo e o vazio – e por um exagero sonoro. Nesta experiência radical de uma outra forma – da música, do cinema –, algo como um ponto zero após a destruição precedente, é necessário aprender o tempo todo a "criar sobre o vazio", a usar os escombros para produzir o novo. Regurgitar os restos de memória e inventar novas conexões (artísticas e humanas, sem diferenciação). É o que fazem Mizui e Asuhara com a banda, e com a "comunidade" que estabeleceram com Navi em sua pensão sempre vazia de hóspedes. Reagrupamento estratégico, tática de reação – que Miyagi e a neta, em sua busca pela cura, encontram.

A morte, no entanto, não cessa de rondar, neste universo apocalíptico com traços de ficção científica de quadrinhos: corpos espalhados, o suicídio "genuíno" de Asuhara, que cede sob uma pressão mínima, mas já insuportável, a lembrança dos que foram e não voltam. Abandonados à própria sorte, como que à deriva no mar de ondas incessantes que observam, os sobreviventes sabem que qualquer salvação deve vir de suas próprias mãos – e de sua própria capacidade para inventar –, que devem conseguir resistir à vida e estabelecer formas de viverem juntos. Para que sua única companhia durante este inverno próximo não seja as imagens esmaecidas das almas dos que já se foram.


Tatiana Monassa