O
cinema como paisagem de imagens e sons. Para Shinji
Aoyama, estar no mundo – e na matéria cinematográfica
– parece ser, antes de mais nada, estar imerso completamente
em imagens e sons, que se mesclam e se fundem indistintivamente.
E continuar a existir, saber se relacionar com eles,
pois que fomos abandonados por Deus.
Em 2015, o mundo encontra-se devastado por uma epidemia
viral supostamente propagada por imagens, que causariam
uma excitação ocular incontrolável.
A "Síndrome de Lemming" joga suas vítimas
numa profunda depressão e leva-as ao suicídio.
A overdose de imagens a que somos expostos (imagens
frenéticas, saturadas; imagens da memória,
testemunho de cenas) nos atira para a beira de um penhasco,
no qual precisamos novamente aprender a olhar. Aprender
a estabelecer pontes com o mundo a partir da própria
desarmonia deste. E talvez neste estado caótico,
uma música que é só confusão
de sons (notas e ruídos), resistência e
alargamento das possibilidades artísticas, possa
fazer uma diferença, apontar para uma cura. Da
mesma forma que Aoyama busca uma cura com o seu cinema.
Cura de males da alma, causados por uma enormidade de
enfermidades que o mundo pode vir a oferecer aos mais
incautos. É preciso continuar de alguma forma
após a devastação. Prosseguir em
paisagens devastadas após a vivência do
extremo – desertificação de almas por
impactos emocionais e esvaziamentos de espaços
por destruição disseminada.
E, nestes ambientes hostis, para prosseguir é
preciso redescobrir o sentido da companhia, reinventar
a família, forjar uniões a partir de parâmetros
mais tangíveis do que laços de sangue.
Em Eureka, esta união vem a partir do
trauma de uma situação extrema perante
a própria vida, que joga os personagens numa
árdua luta para continuarem existindo; em Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonastes?; um afeto
e uma fé que devem ser fortes o suficiente para
burlar o impulso incontrolável de auto-destruição.
Impulso orgânico, que faz os corpos rejeitarem
a vida por um excesso de imagens. Impulso social, que
faz os seres negarem a vida por excesso de informações
e de demandas.
O excesso sonoro, no entanto, é bem-vindo. Mizui
e Asuhara escapam da atribulação da fama,
que acometia seu grupo Stepin Fetchit na cidade, para
viver em retiro no interior, experimentando com os limites
da matéria musical. Curiosa inversão esta,
que busca uma reconstituição da vida (da
vontade de viver) por uma desertificação
de imagens – e da própria imagem do filme, cinemascope
para o amplo e o vazio – e por um exagero sonoro. Nesta
experiência radical de uma outra forma
– da música, do cinema –, algo como um ponto
zero após a destruição precedente,
é necessário aprender o tempo todo a "criar
sobre o vazio", a usar os escombros para produzir
o novo. Regurgitar os restos de memória e inventar
novas conexões (artísticas e humanas,
sem diferenciação). É o que fazem
Mizui e Asuhara com a banda, e com a "comunidade"
que estabeleceram com Navi em sua pensão sempre
vazia de hóspedes. Reagrupamento estratégico,
tática de reação – que Miyagi e
a neta, em sua busca pela cura, encontram.
A morte, no entanto, não cessa de rondar, neste
universo apocalíptico com traços de ficção
científica de quadrinhos: corpos espalhados,
o suicídio "genuíno" de Asuhara,
que cede sob uma pressão mínima, mas já
insuportável, a lembrança dos que foram
e não voltam. Abandonados à própria
sorte, como que à deriva no mar de ondas incessantes
que observam, os sobreviventes sabem que qualquer salvação
deve vir de suas próprias mãos – e de
sua própria capacidade para inventar –, que devem
conseguir resistir à vida e estabelecer formas
de viverem juntos. Para que sua única companhia
durante este inverno próximo não seja
as imagens esmaecidas das almas dos que já se
foram.
Tatiana Monassa
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