Hans,
o homem morto, é um espectro. Existe apenas nas
falas da moça misteriosa e nas teorias do detetive
Pinto. O detetive é, na verdade, o homem cujas
memórias estão em jogo. Atormentado por
uma certa crise de identidade pós-divórcio,
ele fica obcecado pela solução da morte
de Hans, como uma explicação que ele devesse
às conjeturas da filha ou um objeto oportuno
ao qual se agarrar para fugir do rosto da ex-esposa.
A progressão desta trama de clima pseudo-existencialista,
cujos mistérios estão relacionados às
psicologias labirínticas dos personagens envolvidos,
é pautada pelo suspense da descoberta de uma
solução (barata) para uma morte (ao que
tudo indica, um crime de assassinato). Todo o entrecruzamento
de ensejos e jogos mentais – entre o detetive e a garota,
entre ela e Hans e entre Hans e a amiga desaparecida
e o rapaz Fernando –, que num primeiro momento serve
para transfigurar a investigação policial
mais corrente em jogo de simulacros no qual a verdade
(a solução) seria inatingível e
a busca por ela apenas deflagraria diversas camadas
de imagens e "competições psicológicas"
que orientam as atitudes das pessoas e a relação
investigador-investigado, expressa no final das contas
uma grande vontade de esclarecimento.
A imagem pobre e pixelada de uma camerazinha de vídeo
é a única pista do detetive Pinto e a
base de toda sua investigação, a única
materialidade de que dispõe para tentar desdobrar
sentidos e acontecimentos de um passado que se esvaiu
e do qual o cadáver de Hans é o produto.
A partir destas imagens e das interrogações
de Pinto à garota envolvida com Hans, vêm
imagens mais sólidas: imagens em película
que constituem os flashbacks do filme alavancados
pelas "confissões" da moça e
que são a principal injunção narrativa
promovida pelo filme. O desvelamento que estas imagens
aparentemente propiciam em relação ao
passado enigmático que envolve a morte daquele
alemão em terras portuguesas mostra-se, na verdade,
uma grande quimera. E aí está o grande
ponto de interesse de Memórias de um Homem
Morto. A história que vemos em imagens molda-se
a partir da fala da moça. E esta fala vai mudando
de acordo com os questionamentos do detetive, de acordo
com o andamento de suas investigações.
Toda a arquitetação daquela história
movida por um jogo de gato-e-rato emocional e intelectual
se altera diante de nossos olhos a cada vez que a menina
muda seu relato. Às vezes em detalhes, às
vezes completamente.
Isto que se configuraria como uma espécie de
discussão do estatuto de uma imagem – a imagem
do vídeo, evidência primeira e única,
a imagem do próprio filme, narrativa-ilustrativa
e a princípio atestadora de uma verdade diegética
– acaba tornando-se, no entanto, mais uma história
da ânsia pela solução de um crime
e pela descoberta final do "acontecido". O
filme perde-se em seu semi-enredo policial e na tentativa
de realizar o curto-circuito entre esta premissa e a
vida pessoal dos personagens, habitada de sentimentos
e pensamentos naturalmente confusos, misteriosos e labirínticos.
Com isto, o outro pólo dramático, centrado
no convívio de Pinto com sua filha e que constitui
uma excelente matéria-prima para uma crônica
de relações, também se desestrutura,
acabando como uma trama familiar mais rasteira. E o
nó que amarraria estes diferentes impulsos do
filme, que seria a figura do detetive, com seu problema
pessoal desestabilizador e sua paranóia investigativa
em busca de uma verdade para a qual não haveria
evidências possíveis, não está
bem dado.
A quase não-solução do "crime"
aponta para um conjunto evasivo de imagens memoriais
(restos de um tempo tomado como fluxo não-linear
e imaterial) – algo até relacionável a
Raoul Ruiz –, que condensaria acontecimentos e psicologias
num todo indistinguível. Este todo flutuaria
no ar um quê fantasioso da Lisboa meio-mítica,
meio sem-tempo que Memórias de um Homem Morto
tenta desenhar, como visões multiplicadas, embaçadas,
quebradiças, quase impessoais – tal qual o "olhar
vítreo" do título original sugere.
Porém, não há força na condução
do filme para fazer dele uma experiência consistente
para o espectador, clara e concisa quanto aos seus objetivos
– nem um objeto formalmente capaz de integrar o nevoeiro
matutino da praia. A despeito da engenhosa proposta,
Heltschl acaba querendo investigação demais
e drama demais, deixando o interesse pelo seu filme
se esvair por entre as linhas narrativas que vão
se erigindo além da conta.
Tatiana Monassa
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