MEMÓRIAS DE UM HOMEM MORTO
Markus Heltschl, Der Gläserne Blick, Áustria/Alemanha/Portugal, 2003

Hans, o homem morto, é um espectro. Existe apenas nas falas da moça misteriosa e nas teorias do detetive Pinto. O detetive é, na verdade, o homem cujas memórias estão em jogo. Atormentado por uma certa crise de identidade pós-divórcio, ele fica obcecado pela solução da morte de Hans, como uma explicação que ele devesse às conjeturas da filha ou um objeto oportuno ao qual se agarrar para fugir do rosto da ex-esposa.

A progressão desta trama de clima pseudo-existencialista, cujos mistérios estão relacionados às psicologias labirínticas dos personagens envolvidos, é pautada pelo suspense da descoberta de uma solução (barata) para uma morte (ao que tudo indica, um crime de assassinato). Todo o entrecruzamento de ensejos e jogos mentais – entre o detetive e a garota, entre ela e Hans e entre Hans e a amiga desaparecida e o rapaz Fernando –, que num primeiro momento serve para transfigurar a investigação policial mais corrente em jogo de simulacros no qual a verdade (a solução) seria inatingível e a busca por ela apenas deflagraria diversas camadas de imagens e "competições psicológicas" que orientam as atitudes das pessoas e a relação investigador-investigado, expressa no final das contas uma grande vontade de esclarecimento.

A imagem pobre e pixelada de uma camerazinha de vídeo é a única pista do detetive Pinto e a base de toda sua investigação, a única materialidade de que dispõe para tentar desdobrar sentidos e acontecimentos de um passado que se esvaiu e do qual o cadáver de Hans é o produto. A partir destas imagens e das interrogações de Pinto à garota envolvida com Hans, vêm imagens mais sólidas: imagens em película que constituem os flashbacks do filme alavancados pelas "confissões" da moça e que são a principal injunção narrativa promovida pelo filme. O desvelamento que estas imagens aparentemente propiciam em relação ao passado enigmático que envolve a morte daquele alemão em terras portuguesas mostra-se, na verdade, uma grande quimera. E aí está o grande ponto de interesse de Memórias de um Homem Morto. A história que vemos em imagens molda-se a partir da fala da moça. E esta fala vai mudando de acordo com os questionamentos do detetive, de acordo com o andamento de suas investigações. Toda a arquitetação daquela história movida por um jogo de gato-e-rato emocional e intelectual se altera diante de nossos olhos a cada vez que a menina muda seu relato. Às vezes em detalhes, às vezes completamente.

Isto que se configuraria como uma espécie de discussão do estatuto de uma imagem – a imagem do vídeo, evidência primeira e única, a imagem do próprio filme, narrativa-ilustrativa e a princípio atestadora de uma verdade diegética – acaba tornando-se, no entanto, mais uma história da ânsia pela solução de um crime e pela descoberta final do "acontecido". O filme perde-se em seu semi-enredo policial e na tentativa de realizar o curto-circuito entre esta premissa e a vida pessoal dos personagens, habitada de sentimentos e pensamentos naturalmente confusos, misteriosos e labirínticos. Com isto, o outro pólo dramático, centrado no convívio de Pinto com sua filha e que constitui uma excelente matéria-prima para uma crônica de relações, também se desestrutura, acabando como uma trama familiar mais rasteira. E o nó que amarraria estes diferentes impulsos do filme, que seria a figura do detetive, com seu problema pessoal desestabilizador e sua paranóia investigativa em busca de uma verdade para a qual não haveria evidências possíveis, não está bem dado.

A quase não-solução do "crime" aponta para um conjunto evasivo de imagens memoriais (restos de um tempo tomado como fluxo não-linear e imaterial) – algo até relacionável a Raoul Ruiz –, que condensaria acontecimentos e psicologias num todo indistinguível. Este todo flutuaria no ar um quê fantasioso da Lisboa meio-mítica, meio sem-tempo que Memórias de um Homem Morto tenta desenhar, como visões multiplicadas, embaçadas, quebradiças, quase impessoais – tal qual o "olhar vítreo" do título original sugere. Porém, não há força na condução do filme para fazer dele uma experiência consistente para o espectador, clara e concisa quanto aos seus objetivos – nem um objeto formalmente capaz de integrar o nevoeiro matutino da praia. A despeito da engenhosa proposta, Heltschl acaba querendo investigação demais e drama demais, deixando o interesse pelo seu filme se esvair por entre as linhas narrativas que vão se erigindo além da conta.


Tatiana Monassa