MAROCK
Laila Marrakchi, Marock, Marrocos/França, 2005

Um dos primeiros planos de Marock assusta um tanto: num traveling lateral, vemos vários carros importados e chiques parados num estacionamento (que supomos ser de um clube noturno, por ouvirmos ao fundo “The Power”, do grupo americano Snap!), quando no meio deles surge um homem mais velho, de joelhos, rezando à maneira muçulmana. O plano assusta porque, logo no começo do filme, parece querer dar conta com apenas uma imagem de uma das principais problemáticas do longa de estréia da diretora Marrakchi, e ao escolher uma imagem tão óbvia quanto improvável, deixa no ar a apreensão de que o filme enverede por este caminho que, sob a desculpa de ser simbólico, seria apenas banal.

Mas, salvo pequenas recaídas de caracterizações exageradas (como os primeiros momentos do irmão da protagonista, na volta à casa da família), Marock deixa para trás este caminho e aposta muito mais naquilo que é de fato o seu forte: um sinceríssimo retrato da vida de uma determinada juventude marroquina, e seus pequenos conflitos diários. O grau de sinceridade do filme certamente diz respeito à intimidade da diretora com o assunto, visto que ela não esconde nem um pouco o caráter altamente autobiográfico do trabalho – a ponto de fazer questão de localizar cronologicamente o filme em 1997, justamente a época em que ela tinha a idade das personagens que retrata.

O principal a se notar, e é muito bem vindo que a diretora tenha sido a primeira a fazê-lo, é que ao dar conta principalmente destes pequenos dramas (passar ou não no vestibular, perder ou não a virgindade – drama nem tão pequenos assim, aliás), ela acaba dando conta de traçar um painel bastante rico sobre a vida no Marrocos. Que passa, com maior ou menor sutileza, por vários tipos de relações dentro da sociedade marroquina: os conflitos de gênero, de religiões, de gerações, e até mesmo de classes sociais. E, no caso específico da classe social mais abastada que o filme mostra mais atentamente, ele trata ainda das determinantes questões da conflituosa relação com a cultura ocidental, sempre presente como um desejado horizonte de estudos futuros, assim como fonte de cultura de massa que perpassa o filme (principalmente na trilha sonora).

A relação com esta cultura de massa, aliás, não está apenas no enredo do filme: é inerente mesmo à forma escolhida pela diretora para este trabalho tão pessoal, em muito devedor de toda uma tradição do teen movie norte-americano. Este contato com o cinema americano surge, aliás, num divertido diálogo onde vemos a penetração quase clandestina dos filmes comerciais de grandes estúdios. Mas, no caso de Marock, a utilização deste formato tão conhecido, mesmo com a repetição de várias das suas cenas-chave (dizem presente a corrida de carros, a fuga com o namorado para uma praia distante, a discussão em família, a sala de aula, o sexo no quarto dos pais), adquire um frescor quase inaugurante, semelhante a vermos os primeiros thrillers ou westerns americanos, lá no nascimento mesmo do cinema. A paisagem e os costumes que cercam este material de gênero soam tão novos no meio daquelas cenas que tanto conhecemos e vimos, que há uma excitação espectatorial insuspeita em acompanhá-las.

O filme consegue nos pegar de tal maneira que, quando quase no final a tragédia surge em cena, o risco premente daquilo tudo ganhar um peso de cautionary tale, à la Aos Treze, nem chega de fato a tomar forma. Embora possivelmente dispensável, e mais do que tudo uma maneira bem simplória de solucionar o bastante complexo dilema religioso que tomava corpo no filme, este evento trágico é tratado pelo filme com tal falta de cerimônia e de exageros que ganha, muito mais do que um papel central na sua narrativa, um tom de apenas um evento a mais, igualado a todas as outras vivências da juventude ali mostradas (vivência esta, aliás, bastante universal – a perda do amigo no acidente automobilístico é tão marroquina quanto é carioca). Sabiamente, o filme dramatiza muito mais a reconciliação com o irmão e, logo depois, a despedida no aeroporto do grupo de amigos. Indica assim que o trauma verdadeiro em questão aqui é o de fazer a passagem desta fase da vida que acompanhamos no filme para a próxima. E que esta época, alegrias e tristezas pesadas, fica mesmo para depois como a doce lembrança de uma dança no telhado da casa, com as amigas – imagem que fecha o bastante agradável filme de Marrakchi.

Eduardo Valente