Um dos primeiros planos de Marock
assusta um tanto: num traveling lateral, vemos
vários carros importados e chiques parados num estacionamento
(que supomos ser de um clube noturno, por ouvirmos ao
fundo “The Power”, do grupo americano Snap!), quando
no meio deles surge um homem mais velho, de joelhos,
rezando à maneira muçulmana. O plano assusta porque,
logo no começo do filme, parece querer dar conta com
apenas uma imagem de uma das principais problemáticas
do longa de estréia da diretora Marrakchi, e ao escolher
uma imagem tão óbvia quanto improvável, deixa no ar
a apreensão de que o filme enverede por este caminho
que, sob a desculpa de ser simbólico, seria apenas banal.
Mas, salvo pequenas recaídas de caracterizações exageradas
(como os primeiros momentos do irmão da protagonista,
na volta à casa da família), Marock deixa para
trás este caminho e aposta muito mais naquilo que é
de fato o seu forte: um sinceríssimo retrato da vida
de uma determinada juventude marroquina, e seus pequenos
conflitos diários. O grau de sinceridade do filme certamente
diz respeito à intimidade da diretora com o assunto,
visto que ela não esconde nem um pouco o caráter altamente
autobiográfico do trabalho – a ponto de fazer questão
de localizar cronologicamente o filme em 1997, justamente
a época em que ela tinha a idade das personagens que
retrata.
O principal a se notar, e é muito bem vindo que a diretora
tenha sido a primeira a fazê-lo, é que ao dar conta
principalmente destes pequenos dramas (passar ou não
no vestibular, perder ou não a virgindade – drama nem
tão pequenos assim, aliás), ela acaba dando conta de
traçar um painel bastante rico sobre a vida no Marrocos.
Que passa, com maior ou menor sutileza, por vários tipos
de relações dentro da sociedade marroquina: os conflitos
de gênero, de religiões, de gerações, e até mesmo de
classes sociais. E, no caso específico da classe social
mais abastada que o filme mostra mais atentamente, ele
trata ainda das determinantes questões da conflituosa
relação com a cultura ocidental, sempre presente como
um desejado horizonte de estudos futuros, assim como
fonte de cultura de massa que perpassa o filme (principalmente
na trilha sonora).
A relação com esta cultura de massa, aliás, não está
apenas no enredo do filme: é inerente mesmo à forma
escolhida pela diretora para este trabalho tão pessoal,
em muito devedor de toda uma tradição do teen movie
norte-americano. Este contato com o cinema americano
surge, aliás, num divertido diálogo onde vemos a penetração
quase clandestina dos filmes comerciais de grandes estúdios.
Mas, no caso de Marock, a utilização deste formato
tão conhecido, mesmo com a repetição de várias das suas
cenas-chave (dizem presente a corrida de carros, a fuga
com o namorado para uma praia distante, a discussão
em família, a sala de aula, o sexo no quarto dos pais),
adquire um frescor quase inaugurante, semelhante a vermos
os primeiros thrillers ou westerns americanos,
lá no nascimento mesmo do cinema. A paisagem e os costumes
que cercam este material de gênero soam tão novos no
meio daquelas cenas que tanto conhecemos e vimos, que
há uma excitação espectatorial insuspeita em acompanhá-las.
O filme consegue nos pegar de tal maneira que, quando
quase no final a tragédia surge em cena, o risco premente
daquilo tudo ganhar um peso de cautionary tale,
à la Aos Treze, nem chega de fato a tomar forma.
Embora possivelmente dispensável, e mais do que tudo
uma maneira bem simplória de solucionar o bastante complexo
dilema religioso que tomava corpo no filme, este evento
trágico é tratado pelo filme com tal falta de cerimônia
e de exageros que ganha, muito mais do que um papel
central na sua narrativa, um tom de apenas um evento
a mais, igualado a todas as outras vivências da juventude
ali mostradas (vivência esta, aliás, bastante universal
– a perda do amigo no acidente automobilístico é tão
marroquina quanto é carioca). Sabiamente, o filme dramatiza
muito mais a reconciliação com o irmão e, logo depois,
a despedida no aeroporto do grupo de amigos. Indica
assim que o trauma verdadeiro em questão aqui é o de
fazer a passagem desta fase da vida que acompanhamos
no filme para a próxima. E que esta época, alegrias
e tristezas pesadas, fica mesmo para depois como a doce
lembrança de uma dança no telhado da casa, com as amigas
– imagem que fecha o bastante agradável filme de Marrakchi.
Eduardo Valente
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