MARCAS DA VIOLÊNCIA
David Cronenberg, A History of Violence, EUA, 2005

Ainda que a dubiedade do título original faça parte do jogo, é possível apontar para que lado pesa a balança: o novo filme de Cronenberg parece menos um histórico da violência do que a violência como princípio da história, dessa e provavelmente de todas. Menos projeto arqueológico do que interrogação do mito. Ou talvez as duas coisas em igual medida, mas sem que nenhuma reflexão didática sobre barbárie e sociedade seja capaz de ocupar sequer um segundo da irretocável duração do filme. Não se trata, de mais a mais, de apenas requentar o arcabouço de assassinatos em que se dá o "nascimento de uma nação". Muito diferentemente, assistimos a uma ficção familiar em várias de suas etapas: conservação, proteção, conciliação, transmissão. Todo o percurso do filme conflui para o jantar em família, cena inaugural que precisa ser escoltada ao longo da narrativa, para que finalmente se desenrole protegida de toda ameaça e de todo mal. Pois o que há a temer, ou mesmo a condenar, depois que a família descobre na violência sua pedra fundadora? Se a articulação entre espaço domiciliar e espaço público é a grande jogada ensaiada do cinema americano, não resta dúvida de que Cronenberg permite – e mesmo estimula – sua entrada no filme. A violência (em estado puro?) nada rende além de um autêntico enredo de transmissão, que corresponde à ativação de um mal atávico – como a explosão agressiva ("inconsciente", segundo ele próprio) do filho adolescente de Tom Stall. Amante das formas híbridas, do orgânico que se funde ao tecnológico, Cronenberg agora realiza um filme em que a carne, sem precisar ser invadida senão provisoriamente (a faca no pé de Tom, ou a bala no ombro), oferece seu emaranhado de fibras à ambigüidade de registros que perpassa o filme.

Tom/Joey (Viggo Mortensen em versão psicótica, placidamente alucinada) é ao mesmo tempo o homem e sua sombra, o conflito como novo centro da subjetividade. Marcas da Violência revela de uma só vez a força e a monstruosidade da carne, não a "nova carne" (Videodrome, A Mosca), mas a antiga, a que precede a contaminação. A conjugação de corpos começa a ser evocada através de histórias violentas, e é assim que, já no início do filme, o empregado da lanchonete de Tom Stall conta da noite em que, enquanto transavam, uma namorada cravou-lhe um garfo nas costas. Se terminaram logo depois? "Não, nos casamos e ficamos juntos mais seis anos", o empregado responde. O casamento nasce de uma agressão que, como tudo em Cronenberg, deve ser sexualizada – e depois integrada à economia familiar. Duas cenas de sexo para sr. e sra. Stall: uma fantasia de retorno à adolescência, época que não puderam viver juntos, e uma trepada brutal e ofegante na escadaria da casa, tentativa de reconciliação pela carne. O sexo é jogado, portanto, para um tempo imaginário que desconhece o casamento ("o que fizeram com minha esposa?", pergunta Tom, e ela responde: "nada de esposa agora") ou para depois da crise conjugal, quando a excitação vem da raiva e da embriaguez por uma sensação de potência que não deixa de ser mórbida. É natural pensar no final de Sobre Meninos e Lobos, mas lá havia um princípio de regulação da cidade que Cronenberg não inclui da mesma forma na sua fábula – que é tão assustadora quanto bem-humorada. Uma família reunida à mesa, após ter sido eliminado quem se intrometeu no seu caminho, é a imagem síntese de Marcas da Violência, e não a cidade desfilando suas virtudes.

Com Marcas da Violência, Cronenberg nos atira para dentro de uma arte da duração que desde Crash não era tão bem calculada. Por mais que a porta de entrada seja um plano-seqüência de inestimável domínio técnico-conceitual, Marcas da Violência é um verdadeiro filme de montagem, filme de raccord, de costura entre imagens, de troca de olhares e de cortes em movimento. A mise en scène é preparada para o impacto do corte: uma arte de encenar em que a grande mestria está no modo fulminante e conciso pelo qual um plano é levado a se impor sobre o outro. E no modo gentil – às vezes um tanto cínico – de um plano convidar o outro a se instalar na ficção e responder à imagem que o precede. Em outras palavras, responder ao rosto que o precede: essa arte da duração é também a expressão translúcida de uma dramaturgia facial que põe em dúvida a opacidade reinante no cinema de Cronenberg.

É curioso que o filme tenha uma violência que soma à ação enfática dos personagens uma indelicadeza de página marrom, de jornal carniceiro (ou de folhetim gore). A decupagem valoriza o processo, esquadrinha os atos violentos em três ou quatro planos de genial cumplicidade estética, coreografia lacônica e infalível. Mas a interrogação moral está lá: close-up em quase todos os rostos detonados pelo mocinho. Mergulhando no cinema de gênero – no caso, estaríamos mais próximos de um western do que de um thriller de suspense –, Cronenberg não esgota seu material na iconografia e na eficácia narrativa. Marcas da Violência é um filme sobre o alcance da ficção, resultando naquilo que os mestres sempre souberam revolver das profundezas do imaginário popular: os calos – discretos ou não – de suas mais remotas origens.


Luiz Carlos Oliveira Jr.