Ainda
que a dubiedade do título original faça
parte do jogo, é possível apontar para
que lado pesa a balança: o novo filme de Cronenberg
parece menos um histórico da violência
do que a violência como princípio da história,
dessa e provavelmente de todas. Menos projeto arqueológico
do que interrogação do mito. Ou talvez
as duas coisas em igual medida, mas sem que nenhuma
reflexão didática sobre barbárie
e sociedade seja capaz de ocupar sequer um segundo da
irretocável duração do filme. Não
se trata, de mais a mais, de apenas requentar o arcabouço
de assassinatos em que se dá o "nascimento
de uma nação". Muito diferentemente,
assistimos a uma ficção familiar em várias
de suas etapas: conservação, proteção,
conciliação, transmissão. Todo
o percurso do filme conflui para o jantar em família,
cena inaugural que precisa ser escoltada ao longo da
narrativa, para que finalmente se desenrole protegida
de toda ameaça e de todo mal. Pois o que há
a temer, ou mesmo a condenar, depois que a família
descobre na violência sua pedra fundadora? Se
a articulação entre espaço domiciliar
e espaço público é a grande jogada
ensaiada do cinema americano, não resta dúvida
de que Cronenberg permite – e mesmo estimula – sua entrada
no filme. A violência (em estado puro?) nada rende
além de um autêntico enredo de transmissão,
que corresponde à ativação de um
mal atávico – como a explosão agressiva
("inconsciente", segundo ele próprio)
do filho adolescente de Tom Stall. Amante das formas
híbridas, do orgânico que se funde ao tecnológico,
Cronenberg agora realiza um filme em que a carne, sem
precisar ser invadida senão provisoriamente (a
faca no pé de Tom, ou a bala no ombro), oferece
seu emaranhado de fibras à ambigüidade de
registros que perpassa o filme.
Tom/Joey (Viggo Mortensen em versão psicótica,
placidamente alucinada) é ao mesmo tempo o homem
e sua sombra, o conflito como novo centro da subjetividade.
Marcas da Violência revela de uma só
vez a força e a monstruosidade da carne, não
a "nova carne" (Videodrome, A Mosca),
mas a antiga, a que precede a contaminação.
A conjugação de corpos começa a
ser evocada através de histórias violentas,
e é assim que, já no início do
filme, o empregado da lanchonete de Tom Stall conta
da noite em que, enquanto transavam, uma namorada cravou-lhe
um garfo nas costas. Se terminaram logo depois? "Não,
nos casamos e ficamos juntos mais seis anos", o
empregado responde. O casamento nasce de uma agressão
que, como tudo em Cronenberg, deve ser sexualizada –
e depois integrada à economia familiar. Duas
cenas de sexo para sr. e sra. Stall: uma fantasia de
retorno à adolescência, época que
não puderam viver juntos, e uma trepada brutal
e ofegante na escadaria da casa, tentativa de reconciliação
pela carne. O sexo é jogado, portanto, para um
tempo imaginário que desconhece o casamento ("o
que fizeram com minha esposa?", pergunta Tom, e
ela responde: "nada de esposa agora") ou para
depois da crise conjugal, quando a excitação
vem da raiva e da embriaguez por uma sensação
de potência que não deixa de ser mórbida.
É natural pensar no final de Sobre Meninos
e Lobos, mas lá havia um princípio
de regulação da cidade que Cronenberg
não inclui da mesma forma na sua fábula
– que é tão assustadora quanto bem-humorada.
Uma família reunida à mesa, após
ter sido eliminado quem se intrometeu no seu caminho,
é a imagem síntese de Marcas da Violência,
e não a cidade desfilando suas virtudes.
Com Marcas da Violência, Cronenberg nos
atira para dentro de uma arte da duração
que desde Crash não era tão bem
calculada. Por mais que a porta de entrada seja um plano-seqüência
de inestimável domínio técnico-conceitual,
Marcas da Violência é um verdadeiro
filme de montagem, filme de raccord, de costura
entre imagens, de troca de olhares e de cortes em movimento.
A mise en scène é preparada para
o impacto do corte: uma arte de encenar em que a grande
mestria está no modo fulminante e conciso pelo
qual um plano é levado a se impor sobre o outro.
E no modo gentil – às vezes um tanto cínico
– de um plano convidar o outro a se instalar na ficção
e responder à imagem que o precede. Em outras
palavras, responder ao rosto que o precede: essa arte
da duração é também a expressão
translúcida de uma dramaturgia facial que põe
em dúvida a opacidade reinante no cinema de Cronenberg.
É curioso que o filme tenha uma violência
que soma à ação enfática
dos personagens uma indelicadeza de página marrom,
de jornal carniceiro (ou de folhetim gore). A
decupagem valoriza o processo, esquadrinha os atos violentos
em três ou quatro planos de genial cumplicidade
estética, coreografia lacônica e infalível.
Mas a interrogação moral está lá:
close-up em quase todos os rostos detonados pelo
mocinho. Mergulhando no cinema de gênero – no
caso, estaríamos mais próximos de um western
do que de um thriller de suspense –, Cronenberg
não esgota seu material na iconografia e na eficácia
narrativa. Marcas da Violência é
um filme sobre o alcance da ficção, resultando
naquilo que os mestres sempre souberam revolver das
profundezas do imaginário popular: os calos –
discretos ou não – de suas mais remotas origens.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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