Talvez
o que mais impressione no cinema de David Cronenberg
seja a habilidade, a facilidade com que o cineasta opera
mudanças formais, alternando diferentes tons
do registro, sem nunca sacrificar seu estilo. É
praticamente impossível assistir a um filme assinado
pelo diretor canadense sem reconhecer sua marca, elegante
e inefável, impressa em cada plano – e Cronenberg
não pode ser considerado, sob qualquer aspecto,
um formalista puro e simples. Uma qualidade de artesão
em obra fortemente autoral.
Assim, não é de estranhar que em Marcas
da Violência tudo pareça deslocado
à primeira vista: cenário provinciano,
personagens caricaturais, atenção particular
da direção à observação
da rotina e da vida familiar. Pensamos estar em terreno
novo para o diretor, e de fato estamos, embora tenhamos
a certeza absoluta de que as coisas vão se encaminhar
progressivamente para a barbárie e para a monstruosidade.
Ora, o novo filme de Cronenberg é devedor de
um fatalismo langiano em sua construção
dramática – uma lógica de encadeamento
das ações sob a qual não se tem
controle, e que, no fim, vai revelar a natureza profunda
de cada personagem. A começar pelo prólogo
– um primor de realização, com sua evocação
atmosférica de pesadelo e sua serena descrição
de um ato animalesco e boçal – e pela cena que
dá seqüência, em brutal contraste
com a anterior, percebemos que não há
rota de fuga possível para evitar o choque entre
estes dois registros, aparentemente sem pontos de contato.
Acompanhamos sem maior envolvimento o desenrolar de
um típico dia na vida de uma típica família
de uma típica cidadezinha do interior norte-americano
– uma rotina de tortas de maçã, de tímidas
vitórias pessoais no campo de baseball,
de fantasias sexuais comuns e sem maiores atrativos.
Mas por trás de todo esse quadro de "normalidade"
há um zumbido, um ruído estranho que Cronenberg
sinaliza com singular ironia – algo como um Hawthorne
em sua descrição da decadência da
sociedade puritana do século XVIII. Na escola,
há o valentão frustrado com a derrota
para o tímido vira-latas; na lanchonete, o cozinheiro
relata o fim de seu casamento com uma neurótica
violenta que acreditava ter se casado com um psicopata;
na cama, o vira-latas pai é presenteado com a
fantasia do valentão; em casa, monstros se escondem
no armário e embaixo da cama.
Como em um episódio de The Twilight Zone,
um caso singular vai virar esse quadro do avesso e pôr
em xeque as bases das instituições que
sustentam toda essa normalidade. No centro está
a figura do pai, onipresente nas ficções
do cinema americano contemporâneo que buscam engajamento
em discurso sobre as mazelas daquela sociedade. Em Marcas
da Violência, o que parece estar em jogo é
o deslocamento do centro de poder da figura materna,
um ponderado depositário de valores pacíficos
e civilizatórios (uma advogada, não menos),
para um pai de velho testamento, um pesadelo de masculinidade
rompante e descontrolada.
Aqui, Cronenberg retoma um locus clássico
do western, cuja representação
máxima, em tom de caricatura, seria o Shane
de George Stevens. Seu Tom Stall também é
um clichê ambulante – também um "homem
de poucas palavras" no dizer do ogro representado por
Ed Harris –, mas ao contrário do cavaleiro misterioso
de Stevens, Tom age prioritariamente em defesa da manutenção
da ordem à qual ele pertence, e não por
um senso de justiça superior. E não são
apenas os fins que divergem, mas também os meios
e a natureza: Tom é uma máquina de matar,
um animal selvagem, puro instinto aprisionado no "estábulo"
imaginário de seu novo nome. Vale dizer que "stall",
além de estábulo, significa também
envelhecer – e a maturidade de Tom não é
natural, mas uma fantasia criada sobre outra, adolescente,
de poder.
O retorno dessa fantasia reprimida nasce de um profundo
desencanto expresso no diálogo dos adolescentes
– para eles, amadurecer significa se resignar a um estado
de impotência, de frieza, de alcoolismo e insatisfação
sexual e sentimental. O mundo-clichê que eles
habitam, herdeiro de uma iconografia do bem-estar da
América dos anos 50, não oferece maiores
saídas, uma vez que a cidade grande, o ideal
de fuga tradicional – romantizado num American Graffiti,
por exemplo –, surge aqui simbolizado pelas sinistras
figuras corrompidas e monstruosas que perturbam a paz
de sua cidadezinha.
Neste particular, o filme guarda pontos de contato nada
desprezíveis com outra alegoria da guerra preventiva,
a Guerra dos Mundos de Spielberg. Em questão
em ambos os filmes, no de Spielberg em uma seqüência
particularmente polêmica, a legitimação
de um ato de violência em defesa da família
–, em que os filmes refletem em citação
direta ou em alusão o Mystic River de
Eastwood. Em Cronenberg, porém, é muito
clara a opção pela esquiva à discussão
moral de Eastwood ou Spielberg. Cronenberg está
mais próximo de uma mitologia, do terreno simbólico,
que nas mãos dos outros diretores vira terreno
pantanoso. Vide a purificação do protagonista,
na imagem mais carregada de simbologia religiosa da
carreira do diretor, se banhando nas águas plácidas
de um lago depois do parricídio simbólico
cometido em repúdio à brutal herança
que Tom evita receber a todo custo.
No fim, em seqüência antológica à
mesa do jantar, o filho adolescente não consegue
esconder o fascínio, o orgulho e a inspiração
diante do pai; a esposa se vê engolida pela cruel
lógica dos fatos, e se resigna num choro calado
diante da necessidade da presença daquele que
impõe um novo equilíbrio de poder; a criança
assustada do início, com a candura e inocência
típicas, coloca o prato sobre a mesa, restabelecendo
num gesto a ordem familiar e a aceitação
plena. Uma vez afastado o mal maior – a crueldade e
a barbárie sem sentido –, Marcas da Violência
se assume como fábula, dando um sentido ao medo
e à violência. Os monstros no armário
podem ser imaginários ou não – mas, via
das dúvidas, melhor manter a luz acesa.
Fernando Veríssimo
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