MARCAS DA VIOLÊNCIA
David Cronenberg, A History of Violence, EUA, 2005

Talvez o que mais impressione no cinema de David Cronenberg seja a habilidade, a facilidade com que o cineasta opera mudanças formais, alternando diferentes tons do registro, sem nunca sacrificar seu estilo. É praticamente impossível assistir a um filme assinado pelo diretor canadense sem reconhecer sua marca, elegante e inefável, impressa em cada plano – e Cronenberg não pode ser considerado, sob qualquer aspecto, um formalista puro e simples. Uma qualidade de artesão em obra fortemente autoral.

Assim, não é de estranhar que em Marcas da Violência tudo pareça deslocado à primeira vista: cenário provinciano, personagens caricaturais, atenção particular da direção à observação da rotina e da vida familiar. Pensamos estar em terreno novo para o diretor, e de fato estamos, embora tenhamos a certeza absoluta de que as coisas vão se encaminhar progressivamente para a barbárie e para a monstruosidade.

Ora, o novo filme de Cronenberg é devedor de um fatalismo langiano em sua construção dramática – uma lógica de encadeamento das ações sob a qual não se tem controle, e que, no fim, vai revelar a natureza profunda de cada personagem. A começar pelo prólogo – um primor de realização, com sua evocação atmosférica de pesadelo e sua serena descrição de um ato animalesco e boçal – e pela cena que dá seqüência, em brutal contraste com a anterior, percebemos que não há rota de fuga possível para evitar o choque entre estes dois registros, aparentemente sem pontos de contato.

Acompanhamos sem maior envolvimento o desenrolar de um típico dia na vida de uma típica família de uma típica cidadezinha do interior norte-americano – uma rotina de tortas de maçã, de tímidas vitórias pessoais no campo de baseball, de fantasias sexuais comuns e sem maiores atrativos. Mas por trás de todo esse quadro de "normalidade" há um zumbido, um ruído estranho que Cronenberg sinaliza com singular ironia – algo como um Hawthorne em sua descrição da decadência da sociedade puritana do século XVIII. Na escola, há o valentão frustrado com a derrota para o tímido vira-latas; na lanchonete, o cozinheiro relata o fim de seu casamento com uma neurótica violenta que acreditava ter se casado com um psicopata; na cama, o vira-latas pai é presenteado com a fantasia do valentão; em casa, monstros se escondem no armário e embaixo da cama.

Como em um episódio de The Twilight Zone, um caso singular vai virar esse quadro do avesso e pôr em xeque as bases das instituições que sustentam toda essa normalidade. No centro está a figura do pai, onipresente nas ficções do cinema americano contemporâneo que buscam engajamento em discurso sobre as mazelas daquela sociedade. Em Marcas da Violência, o que parece estar em jogo é o deslocamento do centro de poder da figura materna, um ponderado depositário de valores pacíficos e civilizatórios (uma advogada, não menos), para um pai de velho testamento, um pesadelo de masculinidade rompante e descontrolada.

Aqui, Cronenberg retoma um locus clássico do western, cuja representação máxima, em tom de caricatura, seria o Shane de George Stevens. Seu Tom Stall também é um clichê ambulante – também um "homem de poucas palavras" no dizer do ogro representado por Ed Harris –, mas ao contrário do cavaleiro misterioso de Stevens, Tom age prioritariamente em defesa da manutenção da ordem à qual ele pertence, e não por um senso de justiça superior. E não são apenas os fins que divergem, mas também os meios e a natureza: Tom é uma máquina de matar, um animal selvagem, puro instinto aprisionado no "estábulo" imaginário de seu novo nome. Vale dizer que "stall", além de estábulo, significa também envelhecer – e a maturidade de Tom não é natural, mas uma fantasia criada sobre outra, adolescente, de poder.

O retorno dessa fantasia reprimida nasce de um profundo desencanto expresso no diálogo dos adolescentes – para eles, amadurecer significa se resignar a um estado de impotência, de frieza, de alcoolismo e insatisfação sexual e sentimental. O mundo-clichê que eles habitam, herdeiro de uma iconografia do bem-estar da América dos anos 50, não oferece maiores saídas, uma vez que a cidade grande, o ideal de fuga tradicional – romantizado num American Graffiti, por exemplo –, surge aqui simbolizado pelas sinistras figuras corrompidas e monstruosas que perturbam a paz de sua cidadezinha.

Neste particular, o filme guarda pontos de contato nada desprezíveis com outra alegoria da guerra preventiva, a Guerra dos Mundos de Spielberg. Em questão em ambos os filmes, no de Spielberg em uma seqüência particularmente polêmica, a legitimação de um ato de violência em defesa da família –, em que os filmes refletem em citação direta ou em alusão o Mystic River de Eastwood. Em Cronenberg, porém, é muito clara a opção pela esquiva à discussão moral de Eastwood ou Spielberg. Cronenberg está mais próximo de uma mitologia, do terreno simbólico, que nas mãos dos outros diretores vira terreno pantanoso. Vide a purificação do protagonista, na imagem mais carregada de simbologia religiosa da carreira do diretor, se banhando nas águas plácidas de um lago depois do parricídio simbólico cometido em repúdio à brutal herança que Tom evita receber a todo custo.

No fim, em seqüência antológica à mesa do jantar, o filho adolescente não consegue esconder o fascínio, o orgulho e a inspiração diante do pai; a esposa se vê engolida pela cruel lógica dos fatos, e se resigna num choro calado diante da necessidade da presença daquele que impõe um novo equilíbrio de poder; a criança assustada do início, com a candura e inocência típicas, coloca o prato sobre a mesa, restabelecendo num gesto a ordem familiar e a aceitação plena. Uma vez afastado o mal maior – a crueldade e a barbárie sem sentido –, Marcas da Violência se assume como fábula, dando um sentido ao medo e à violência. Os monstros no armário podem ser imaginários ou não – mas, via das dúvidas, melhor manter a luz acesa.


Fernando Veríssimo