MANDERLAY
Lars Von Trier, Manderlay, Dinamarca/Suécia/
França/EUA/Holanda/Alemanha, 2005

Lars von Trier é, em última instância, um estrategista. É o que víamos em As Cinco Obstruções: a questão de um jogo cujas regras são claras e que prevê de antemão as jogadas dos participantes – dispõe em simulacro as jogadas possíveis –, preparando pequenas “armadilhas”; e é de que consiste, basicamente, o díptico formado por Dogville e Manderlay. Se já havia algum espectro disto em filmes como Dançando no Escuro e Ondas do Destino, era de forma mais sutil, pois a rendição maior era a um sentimentalismo melodramático; e o interesse principal, a adesão do espectador à aventura sentimental proposta. Já Dogville apresenta a estratégia e transforma esta aventura numa montanha-russa, que é destroçada no final, pela “reviravolta” da razão que o filme perpetra. Perdemos, então, totalmente a noção de “acontecimento” e ficamos com a sensação de que estávamos, desde sempre, presos na armadilha. Tudo já estava virtualmente lá, apenas esperando para ser confirmado pela voz em off, que “constrói” aquela maquete e conta a história, organizando-a em capítulos e explicitando que sabe o final.

Em Manderlay, no entanto, já não há mais sentimento, apenas estratégia. O que, por um lado, põe a limpo a “natureza” do trabalho de Lars von Trier e, por outro, elimina completamente uma aura de acontecimento, que ainda acompanhava Dogville. E que fazia dele um filme instigante em certa medida, pelo domínio que demonstra sobre os preceitos de identificação da narrativa clássica – embora a postura de titereiro de von Trier em relação a isto seja bastante questionável. Até que ponto seria “lícito” jogar com as emoções de quem se entrega de peito aberto à tela luminosa? Se existem razões sólidas para questionar o ilusionismo cinematográfico e os processos de identificação perpetrados pelo cinema clássico-narrativo em sua hegemonia opressiva, seriam estas validadas por uma postura de ataque às suas supostas “vítimas”? O espectador do cinema clássico (ou poderíamos dizer apenas “hegemônico”), que não pode ser vitimizado, por certo reconhece na sua relação com o cinema uma fonte de prazer. E se a forma fílmica é admiravelmente maleável, podendo servir, sim, de arma política, seja qual for a vertente de posicionamento, não parece que demonstrar maestria às custas da manipulação da adesão de quem estabelece um pacto com esta matéria seja algo admirável.

Lars von Trier acrescenta à sua crítica moralizante sobre o mundo, viabilizada por uma “forma de resistência” (o Dogma 95), uma crítica moralizante sobre a forma cinematográfica. O circuito do cinismo se completa. E, em Manderlay, se expõe, se concretiza, fazendo da narrativa que acompanhamos nada além de uma representação fria de uma estratégia, na qual o discurso não é definível com clareza, pois importa menos dizer alguma coisa, do que provocar gratuitamente, para concluir que, de uma forma geral e difusa, as pessoas do mundo são desprezíveis.

Não há detalhamento na particularização dos casos “analisados”. Seja no interior dos EUA na Grande Depressão, seja numa fazenda que ainda mantém a escravidão 70 anos após ela ter sido extinta, as questões são as mesmas – basicamente o mau-caratismo humano movido pelo egoísmo. Algo tão geral quanto indefinido, que poderia ser ilustrado com exemplos os mais diversos, ad eternum. Qualquer intenção de posicionamento político se esvai aí, na generalização grosseira pelo uso de arquétipos que serve de base para a narrativa. O que parece uma grande sacada – falar de tudo indiretamente, narrar um “conto” para tratar do que é sempre representado com naturalismo ou realismo, para comentar sobre os homens e o mundo – é, na verdade, apenas o reforço de uma descrença. E isto toma ares mais problemáticos quando se entrecruza com a questão dos negros, ainda mais localizada historicamente. Generalizá-la como mais uma ilustração de que não há como se posicionar neste mundo, porque toda a causa em que acreditamos é, no fundo, uma quimera, seja ela a bondade humanista ou a igualdade justa, esvazia qualquer tomada de posição e desvaloriza os indivíduos. Indivíduos estes que a ironia do “Livro da Mam” tenta mapear. Mas se o mapeamento de “tipos” é uma piada, demonstrar por um mapeamento, que as próprias pessoas se mapeiam e se encaixam, é mais do que revelar a alma humana, é atestar uma descrença em qualquer tipo de positividade.

Não há ponto de fuga possível no mapa asfixiante desenhado por von Trier em Dogville e Manderlay. O sarcasmo, amplo e irrestrito, se traveste de crítica sócio-histórica, quando na verdade, apenas quer girar em torno de si mesmo, como no desespero de um louco aprisionado, que ri de tudo para não morrer. Atestado de quase desistência da vida, de mal-estar cristão por um mundo que se furta à organização, no qual mandamentos não são mais aplicáveis e a incerteza exige uma maleabilidade de contorcionista e a habilidade da acrobacia. O desespero pela “descoberta”, em Manderlay, já está, ele mesmo, coberto de desânimo – não cabe mais matar os habitantes e atear fogo na cidade; basta largá-los pra lá, esquecê-los na História, pois não há mais esperança possível. Deus abandonou o mundo. E Grace perdeu, portanto, todo empenho em seu teatro. Está desacreditada. Já não sofre, já não se surpreende com  que lhe é revelado, apenas confirma as virtualizações dispostas no “pré-narrativa’. E, com esta Grace, já não temos empatia. Com esta narrativa, já não temos mais surpresas. Cada instante pode ser previsto pelo cinismo já assertado. Este mundo está perdido.

Tatiana Monassa