Lars von Trier é, em última
instância, um estrategista. É o que víamos
em As Cinco Obstruções: a questão de um jogo
cujas regras são claras e que prevê de antemão as jogadas
dos participantes – dispõe em simulacro as jogadas possíveis
–, preparando pequenas “armadilhas”; e é de que consiste,
basicamente, o díptico formado por Dogville e
Manderlay. Se já havia algum espectro disto em
filmes como Dançando no Escuro e Ondas do
Destino, era de forma mais sutil, pois a rendição
maior era a um sentimentalismo melodramático; e o interesse
principal, a adesão do espectador à aventura sentimental
proposta. Já Dogville apresenta a estratégia
e transforma esta aventura numa montanha-russa, que
é destroçada no final, pela “reviravolta” da razão que
o filme perpetra. Perdemos, então, totalmente a noção
de “acontecimento” e ficamos com a sensação de que estávamos,
desde sempre, presos na armadilha. Tudo já estava virtualmente
lá, apenas esperando para ser confirmado pela voz em
off, que “constrói” aquela maquete e conta a
história, organizando-a em capítulos e explicitando
que sabe o final.
Em Manderlay, no entanto, já não há mais sentimento,
apenas estratégia. O que, por um lado, põe a limpo a
“natureza” do trabalho de Lars von Trier e, por outro,
elimina completamente uma aura de acontecimento, que
ainda acompanhava Dogville. E que fazia dele
um filme instigante em certa medida, pelo domínio que
demonstra sobre os preceitos de identificação da narrativa
clássica – embora a postura de titereiro de von Trier
em relação a isto seja bastante questionável. Até que
ponto seria “lícito” jogar com as emoções de quem se
entrega de peito aberto à tela luminosa? Se existem
razões sólidas para questionar o ilusionismo cinematográfico
e os processos de identificação perpetrados pelo cinema
clássico-narrativo em sua hegemonia opressiva, seriam
estas validadas por uma postura de ataque às suas supostas
“vítimas”? O espectador do cinema clássico (ou poderíamos
dizer apenas “hegemônico”), que não pode ser vitimizado,
por certo reconhece na sua relação com o cinema uma
fonte de prazer. E se a forma fílmica é admiravelmente
maleável, podendo servir, sim, de arma política, seja
qual for a vertente de posicionamento, não parece que
demonstrar maestria às custas da manipulação da adesão
de quem estabelece um pacto com esta matéria seja algo
admirável.
Lars von Trier acrescenta à sua crítica moralizante
sobre o mundo, viabilizada por uma “forma de resistência”
(o Dogma 95), uma crítica moralizante sobre a forma
cinematográfica. O circuito do cinismo se completa.
E, em Manderlay, se expõe, se concretiza, fazendo
da narrativa que acompanhamos nada além de uma representação
fria de uma estratégia, na qual o discurso não é definível
com clareza, pois importa menos dizer alguma coisa,
do que provocar gratuitamente, para concluir que, de
uma forma geral e difusa, as pessoas do mundo são desprezíveis.
Não há detalhamento na particularização dos casos “analisados”.
Seja no interior dos EUA na Grande Depressão, seja numa
fazenda que ainda mantém a escravidão 70 anos após ela
ter sido extinta, as questões são as mesmas – basicamente
o mau-caratismo humano movido pelo egoísmo. Algo tão
geral quanto indefinido, que poderia ser ilustrado com
exemplos os mais diversos, ad eternum. Qualquer
intenção de posicionamento político se esvai aí, na
generalização grosseira pelo uso de arquétipos que serve
de base para a narrativa. O que parece uma grande sacada
– falar de tudo indiretamente, narrar um “conto” para
tratar do que é sempre representado com naturalismo
ou realismo, para comentar sobre os homens e o mundo
– é, na verdade, apenas o reforço de uma descrença.
E isto toma ares mais problemáticos quando se entrecruza
com a questão dos negros, ainda mais localizada historicamente.
Generalizá-la como mais uma ilustração de que não há
como se posicionar neste mundo, porque toda a causa
em que acreditamos é, no fundo, uma quimera, seja ela
a bondade humanista ou a igualdade justa, esvazia qualquer
tomada de posição e desvaloriza os indivíduos. Indivíduos
estes que a ironia do “Livro da Mam” tenta mapear. Mas
se o mapeamento de “tipos” é uma piada, demonstrar por
um mapeamento, que as próprias pessoas se mapeiam e
se encaixam, é mais do que revelar a alma humana, é
atestar uma descrença em qualquer tipo de positividade.
Não há ponto de fuga possível no mapa asfixiante desenhado
por von Trier em Dogville e Manderlay.
O sarcasmo, amplo e irrestrito, se traveste de crítica
sócio-histórica, quando na verdade, apenas quer girar
em torno de si mesmo, como no desespero de um louco
aprisionado, que ri de tudo para não morrer. Atestado
de quase desistência da vida, de mal-estar cristão por
um mundo que se furta à organização, no qual mandamentos
não são mais aplicáveis e a incerteza exige uma maleabilidade
de contorcionista e a habilidade da acrobacia. O desespero
pela “descoberta”, em Manderlay, já está, ele
mesmo, coberto de desânimo – não cabe mais matar os
habitantes e atear fogo na cidade; basta largá-los pra
lá, esquecê-los na História, pois não há mais esperança
possível. Deus abandonou o mundo. E Grace perdeu, portanto,
todo empenho em seu teatro. Está desacreditada. Já não
sofre, já não se surpreende com que lhe é revelado,
apenas confirma as virtualizações dispostas no “pré-narrativa’.
E, com esta Grace, já não temos empatia. Com esta narrativa,
já não temos mais surpresas. Cada instante pode ser
previsto pelo cinismo já assertado. Este mundo
está perdido.
Tatiana Monassa
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