Há três estruturas básicas que
norteiam a realização de seqüências no cinema. Na primeira,
apenas se repete o enredo do original, com os mesmos
contratempos no caminho dos personagens (a trilogia
American Pie, por exemplo). Na segunda, tal qual
as novelas ou as séries televisivas que continuam no
próximo capítulo, o filme é dividido em várias partes
que retomam exatamente do ponto em que a anterior parou
(a saga de O Senhor dos Anéis). Na terceira,
a continuação se apropria dos elementos fundamentais
da obra precedente e lhe amplia e transforma os sentidos,
com resultados finais completamente diversos. Nesta
última categoria se encontra Manderlay que, repetindo
os cenários marcados no chão, a protagonista e o narrador
de Dogville, dispensa-lhes tratamentos diferentes,
pois agora se observam a heroína consciente desde o
início de seu poder sobre a comunidade, o espaço em
desequilíbrio e em constante mutação e o “apresentador”
que se surpreende com os próprios rumos tomados pelo
filme.
Após deixarem Dogville, Grace e comitiva chegam à fazenda
de Manderlay, no Alabama, onde a escravidão ainda persiste.
Revoltada com a “Lei da Mamãe” que os subjuga, Grace
liberta os negros escravos e, sob a força das armas,
tenta implantar regime econômico liberal fundado na
liberdade e na participação coletiva. Contudo, tanto
a disposição dos negros em categorias pré-definidas
pelo código que os oprimia – há os “orgulhosos”, os
“camaleônicos”, os “submissos”, os “falantes” –, quanto
o fascínio que o poder exerce sobre Grace põem tudo
a perder.
Para se enxergar Manderlay, deve-se olhar para
além de Dogville. Embora a personagem principal
seja a mesma em ambos os filmes, o enfoque de Lars Von
Trier e, em conseqüência, o envolvimento que ele requer
do espectador quanto aos acontecimentos na tela são
inteiramente diferentes. Em Dogville, a princípio,
nada se sabe a respeito de Grace, que emerge como a
típica heroína melodramática: mulher frágil e sofrida,
que enfrenta a população hostil que, depois de a acolher,
abusa dela para, finalmente, expulsá-la da cidade
a fim de reintroduzir a Ordem. Com Manderlay,
dá-se o contrário, pois o diretor trabalha justamente
a partir da lembrança que a platéia possui do original.
Assim, como já se sabe, desde o primeiro plano, do passado
de Grace, do que ela é capaz de fazer (assassinar a
comunidade que se volta contra ela) e do desejo pelo
poder que a move, Von Trier não força a identificação
sentimental com a protagonista para, ao final, revelar
a verdade cruel, como em Dogville, mas antes
parte do conhecimento desta verdade a fim de gerar o
distanciamento que, afinal, está pressuposto
na ausência de cenários, na explícita marcação teatral
e na narração irônica. Mesmo que se veicule a recusa
de Nicole Kidman em participar da seqüência, é inegável
a transformação dramática contida na troca da atriz
principal, uma vez que, no lugar dos olhos marejados,
do nariz vermelho, das bochechas salientes e da fala
tímida e entrecortada de Kidman, entra a expressão gélida
de Bryce Dallas Howard, cuja frieza e autocontrole levam
a crer que as boas intenções expressas em seu discurso
são apenas fachada para o imenso prazer que o domínio
em Manderlay lhe proporciona.
A Grace de Manderlay não se atém ao que as palavras
dizem, mas às palavras em si, ao poder intrínseco da
enunciação. Ela não se preocupa com os antigos escravos
– e todo seu discurso politicamente correto soa falso
e mecânico –, e sim em controlá-los. Está em jogo, para
a heroína, substituir a “Lei da Mamãe” pela “Lei de
Grace”, estabelecida sobre os conceitos da liberdade,
da igualdade e da fraternidade que, ao final e ao cabo,
ela mesmo ditou. Grace instala suas próprias regras,
por bem ou por mal, já que o ensino da democracia, através
do processo de votação, é assegurado pela presença das
armas mafiosas, vigilantes e punitivas. No entanto,
tal qual a tempestade de areia que varre a fazenda,
ou a sexualidade à flor da pele que leva a heroína a
se entregar a Timothy (escravo “camaleônico” que se
faz passar por “orgulhoso”), a dinâmica das forças sociais
que interagem no espaço demarcado por Lars Von Trier
mostra-se imprevisível, de modo que, ao contrário de
Dogville – em que existe um ordenamento primeiro
que, ameaçado, somente explicita a violência que o constitui
–, a Ordem em Manderlay está em permanente reconfiguração,
sujeita ao contexto histórico imediato (a Grande Depressão
e o regime de exclusão racial no Sul dos EUA) e aos
interesses legítimos de afirmação que cada grupo expressa:
Grace, que busca impor sua influência; os mafiosos,
que querem regalias; Hector, o jogador, que tenciona
ganhar dinheiro no mercado que acaba de se abrir; os
proprietários brancos, que visam ao retorno do velho
domínio; os negros, que, acima de tudo, protegem-se
da sociedade ainda mais injusta que está fora dos limites
de Manderlay. Não há, por conseguinte, cordeiros passivos,
e sim agentes em luta que se chocam constantemente,
transformando o espaço para a surpresa do próprio narrador
que, se em Dogville explicava todos os procedimentos
dramáticos e narrativos com didatismo (a fim de atenuar
a estranheza causada pela ausência de cenários), em
Manderlay se restringe a comentar os acontecimentos
depois de já concluídos, dada a impossibilidade de antever
as mudanças explosivas que as tensões sociais acarretam.
Ao longo do filme, o autoproclamado munsi (nação
de reis) Timothy revela-se, na verdade, um mansi
(povo de escravos). De Dogville a Manderlay, o caminho
que Grace percorre não é justamente o inverso? Ela começa
servil e, paulatinamente, torna-se o centro do poder.
Controle e submissão, temas caros a Lars Von Trier e
que circundam Manderlay por todos os lados.
Paulo Ricardo de Almeida
|