MANDERLAY
Lars Von Trier, Manderlay, Dinamarca/Suécia/
França/EUA/Holanda/Alemanha, 2005

Há três estruturas básicas que norteiam a realização de seqüências no cinema. Na primeira, apenas se repete o enredo do original, com os mesmos contratempos no caminho dos personagens (a trilogia American Pie, por exemplo). Na segunda, tal qual as novelas ou as séries televisivas que continuam no próximo capítulo, o filme é dividido em várias partes que retomam exatamente do ponto em que a anterior parou (a saga de O Senhor dos Anéis). Na terceira, a continuação se apropria dos elementos fundamentais da obra precedente e lhe amplia e transforma os sentidos, com resultados finais completamente diversos. Nesta última categoria se encontra Manderlay que, repetindo os cenários marcados no chão, a protagonista e o narrador de Dogville, dispensa-lhes tratamentos diferentes, pois agora se observam a heroína consciente desde o início de seu poder sobre a comunidade, o espaço em desequilíbrio e em constante mutação e o “apresentador” que se surpreende com os próprios rumos tomados pelo filme.

Após deixarem Dogville, Grace e comitiva chegam à fazenda de Manderlay, no Alabama, onde a escravidão ainda persiste. Revoltada com a “Lei da Mamãe” que os subjuga, Grace liberta os negros escravos e, sob a força das armas, tenta implantar regime econômico liberal fundado na liberdade e na participação coletiva. Contudo, tanto a disposição dos negros em categorias pré-definidas pelo código que os oprimia – há os “orgulhosos”, os “camaleônicos”, os “submissos”, os “falantes” –, quanto o fascínio que o poder exerce sobre Grace põem tudo a perder.

Para se enxergar Manderlay, deve-se olhar para além de Dogville. Embora a personagem principal seja a mesma em ambos os filmes, o enfoque de Lars Von Trier e, em conseqüência, o envolvimento que ele requer do espectador quanto aos acontecimentos na tela são inteiramente diferentes. Em Dogville, a princípio, nada se sabe a respeito de Grace, que emerge como a típica heroína melodramática: mulher frágil e sofrida, que enfrenta a população hostil que, depois de a acolher, abusa dela para, finalmente, expulsá-la da cidade a fim de reintroduzir a Ordem. Com Manderlay, dá-se o contrário, pois o diretor trabalha justamente a partir da lembrança que a platéia possui do original. Assim, como já se sabe, desde o primeiro plano, do passado de Grace, do que ela é capaz de fazer (assassinar a comunidade que se volta contra ela) e do desejo pelo poder que a move, Von Trier não força a identificação sentimental com a protagonista para, ao final, revelar a verdade cruel, como em Dogville, mas antes parte do conhecimento desta verdade a fim de gerar o distanciamento que, afinal, está pressuposto na ausência de cenários, na explícita marcação teatral e na narração irônica. Mesmo que se veicule a recusa de Nicole Kidman em participar da seqüência, é inegável a transformação dramática contida na troca da atriz principal, uma vez que, no lugar dos olhos marejados, do nariz vermelho, das bochechas salientes e da fala tímida e entrecortada de Kidman, entra a expressão gélida de Bryce Dallas Howard, cuja frieza e autocontrole levam a crer que as boas intenções expressas em seu discurso são apenas fachada para o imenso prazer que o domínio em Manderlay lhe proporciona.

A Grace de Manderlay não se atém ao que as palavras dizem, mas às palavras em si, ao poder intrínseco da enunciação. Ela não se preocupa com os antigos escravos – e todo seu discurso politicamente correto soa falso e mecânico –, e sim em controlá-los. Está em jogo, para a heroína, substituir a “Lei da Mamãe” pela “Lei de Grace”, estabelecida sobre os conceitos da liberdade, da igualdade e da fraternidade que, ao final e ao cabo, ela mesmo ditou. Grace instala suas próprias regras, por bem ou por mal, já que o ensino da democracia, através do processo de votação, é assegurado pela presença das armas mafiosas, vigilantes e punitivas. No entanto, tal qual a tempestade de areia que varre a fazenda, ou a sexualidade à flor da pele que leva a heroína a se entregar a Timothy (escravo “camaleônico” que se faz passar por “orgulhoso”), a dinâmica das forças sociais que interagem no espaço demarcado por Lars Von Trier mostra-se imprevisível, de modo que, ao contrário de Dogville – em que existe um ordenamento primeiro que, ameaçado, somente explicita a violência que o constitui –, a Ordem em Manderlay está em permanente reconfiguração, sujeita ao contexto histórico imediato (a Grande Depressão e o regime de exclusão racial no Sul dos EUA) e aos interesses legítimos de afirmação que cada grupo expressa: Grace, que busca impor sua influência; os mafiosos, que querem regalias; Hector, o jogador, que tenciona ganhar dinheiro no mercado que acaba de se abrir; os proprietários brancos, que visam ao retorno do velho domínio; os negros, que, acima de tudo, protegem-se da sociedade ainda mais injusta que está fora dos limites de Manderlay. Não há, por conseguinte, cordeiros passivos, e sim agentes em luta que se chocam constantemente, transformando o espaço para a surpresa do próprio narrador que, se em Dogville explicava todos os procedimentos dramáticos e narrativos com didatismo (a fim de atenuar a estranheza causada pela ausência de cenários), em Manderlay se restringe a comentar os acontecimentos depois de já concluídos, dada a impossibilidade de antever as mudanças explosivas que as tensões sociais acarretam.

Ao longo do filme, o autoproclamado munsi (nação de reis) Timothy revela-se, na verdade, um mansi (povo de escravos). De Dogville a Manderlay, o caminho que Grace percorre não é justamente o inverso? Ela começa servil e, paulatinamente, torna-se o centro do poder. Controle e submissão, temas caros a Lars Von Trier e que circundam Manderlay por todos os lados.

Paulo Ricardo de Almeida