OS INVISÍVEIS
Thierry Jousse, Les invisibles, França, 2005

Blind date

Nada de acrobacias visuais ou miríades narrativas no primeiro longa-metragem de Thierry Jousse. Ex-editor da Cahiers du Cinéma, Jousse não faz de Os Invisíveis a vertigem de uma quimera cinéfila nutrida por anos e anos de atividade crítica. Embora vez ou outra o filme esbarre em um certo enclausuramento teórico da imagem, no geral sobressai um projeto que apenas recolhe fragmentos e busca alguns arranjos a partir deles. O que o filme representa para Jousse está inscrito no protagonista do filme, Bruno (Laurent Lucas), que compõe música eletrônica e tem o hábito de apontar seu gravador para qualquer lugar de onde possa sair som. Ele representa a própria jornada tateante do diretor: pesquisar os timbres, aceitar sons de qualquer natureza (um portão de ferro rangendo, uma vez feminina “umedecida”, um telefone tocando, o tráfego na rua), samplear o mundo – e o cinema – para traduzi-lo em música num momento posterior. Da mesma forma que Bruno vai para o estúdio arregimentar a bagunça sonora que ele captou e produzir uma faixa (que pode crescer ou decrescer indefinidamente, mas que no fundo deve ocupar um espaço limitado), Jousse adentra o set para colocar, em não mais que 85 minutos, alguma pista, algum traço sobre a massa efusiva que povoa seu imaginário cinefágico. Os Invisíveis possui essa característica – em nada desinteressante – de ser um traçado tremido que às vezes escapa a si próprio, perde de vista seu objetivo. Por exemplo: a aparição de Sr. William no meio do filme, figura explicitamente lynchiana (mais uma tirada de chapéu do que uma sacada maneirista), é uma espécie de sample narrativo: um registro encontrado em algum outro ponto fora do sistema e que é incluído com a arbitrariedade de uma das jam sessions que Bruno realiza com seu amigo guitarrista.

O roteiro do filme também não nega uma parcela de “filosofia da composição”. A invisibilidade vem de uma rede que interconecta linhas telefônicas, forma arqueológica das salas de chat da internet que permite que Bruno chegue até Lisa, a mulher com quem ele passa a manter encontros às escuras num quarto de hotel. Lisa estabelece as regras: luzes completamente apagadas, sem revelar os rostos, sem criar qualquer tipo de vínculo, sem cigarro após o sexo. Corpo sem imagem: apenas voz e tato, som e textura. Bruno leva sempre um gravador com o qual registra as conversas fugidias, os gemidos, as respirações ofegantes, as exalações sonoras dos corpos – tudo que depois será usado na suas composições.

Neste momento, o filme se torna realmente instigante e misterioso. A uma sociedade com os olhos cansados pelo bombardeamento visual, Jousse oferece uma nova partilha da atenção: escutar melhor o mundo, fazer o blackout da imagem para se livrar da transparência excessiva e retomar a força (não desacompanhada do pânico intrínseco ao sentimento de perda) do desejo cego, da vontade de ir atrás da mulher (musa) inalcançável – o que conduz a um outro voyeurismo, dessa vez sonoro. Blow Out, de Brian De Palma, mostrava a junção, com rigor quase semiótico, dessas duas camadas aqui descoladas: o material sonoro bruto, em toda sua riqueza evocativa, e as imagens que a ele se acoplam. A seqüência em que Bruno acorda e vê o rosto de Lisa, já pela manhã, tem tudo para ser um sonho, apenas a imagem que ele gostaria de encontrar. Idealização (Bruno não é decididamente um romântico, mas...)? Cura de uma angústia? A imaginação (a de Bruno, a nossa) se vê inflada pela ambiência sonora que preenche a penumbra no quarto do hotel. A imagem do outro é o limite ou a expansão do desejo?

A seqüência que pontua o fim da melhor parte de Os Invisíveis é quando Bruno acorda, põe os headphones e acompanha os sons de Lisa indo embora enquanto perfaz o trajeto dela com o olhar a partir do que ouve. A presença sonora é tão forte que quase vemos um fantasma se locomover pelos espaços vazios. E Lisa de fato some do filme. Por mais que Bruno passe a procurá-la freneticamente, ela permanece como a nota inatingível (eterno ponto de fuga do ofício dos músicos), o timbre indefinido que o obceca. É quando ocorrem os desvios narrativos (a visita ao Sr. William, a tentativa de entrar na boate, o encontro com a outra mulher que conhece pelo telefone) que fazem o filme perder o rumo, o ritmo e mesmo o ponto de contato com sua questão teórica relevante. As seqüências finais do filme, se não “justificam os meios”, ao menos esclarecem as intenções. Bruno chega a ver a mulher que estava naquela manhã ao seu lado na cama, a Lisa que tanto procura, mas não vai até ela (talvez porque a imagem de mãe, que é o que ela interpreta naquele momento, não fosse bem o papel que ele escolhera para ela). A Bruno coube ir para o estúdio e transformar em obra uma experiência vivida. Uma fonte de inspiração, uma experiência e seu registro: processo que vale tanto para Bruno quanto para o filme.

Thierry Jousse fez um filme de atmosferas ambíguas, de trilhos facilmente desviáveis pelo inusitado, de perambulações insones por paisagens de néon. Existe um clima um tanto nineties no filme, um tributo à década em que Jousse exerceu com mais empenho e destaque sua profissão de crítico (no ano retrasado foi lançado um livro compilando os principais textos que ele escreveu sobre o cinema dos anos 90 – Kitano e, evidentemente, Lynch estando entre os prediletos). Os Invisíveis é ao mesmo tempo profundamente cotemporâneo e nostálgico. Duas cenas dão precisamente o tom desse movimento duplo. A primeira é ainda no começo, quando Bruno fala com Lisa pela primeira vez e seu telefone sem fio cai no chão. O aparelho não quer mais funcionar e ele é obrigado a desencavar da estante o telefone antigo, cujo trim-trim estridente já povoou o som ambiente de tantos filmes – ele re-hospeda o “toque” antigo no universo sonoro contemporâneo. A função dos vinis que o zelador (Michael Lonsdale, calmo e pitoresco) coleciona é parecida: um certo fetiche pelos suportes antigos, mais manuseáveis e ruidosos. A segunda cena é no final, quando Carole (que vai produzir o seu disco e com quem chega a ter um caso) encontra Bruno arrastando e percussionando diapasões nas cordas de um piano, produzindo diferentes sonoridades que ele grava para depois usar nas músicas. A passividade do microfone, que apenas aguardava pelos sons, é progressivamente substituída por uma pesquisa cada vez mais tátil (ele arrasta o microfone nas superfícies, fricciona objetos para alcançar novos timbres). Reconciliar a praticidade do meio digital com o dispêndio físico no processo de criação artística; re-introduzir o gesto na obra, re-equacionar a tatilidade no cinema. A qualidade cambaleante de Os Invisíveis não está em conseguir ser um filme resoluto, límpido, mas em deixar que Thierry Jousse ponha a nu o seu processo, assim como parte de seu pensamento.

Luiz Carlos Oliveira Jr.