Blind date
Nada de acrobacias visuais ou miríades narrativas no
primeiro longa-metragem de Thierry Jousse. Ex-editor
da Cahiers du Cinéma, Jousse não faz de Os Invisíveis
a vertigem de uma quimera cinéfila nutrida por anos
e anos de atividade crítica. Embora vez ou outra o filme
esbarre em um certo enclausuramento teórico da imagem,
no geral sobressai um projeto que apenas recolhe fragmentos
e busca alguns arranjos a partir deles. O que o filme
representa para Jousse está inscrito no protagonista
do filme, Bruno (Laurent Lucas), que compõe música eletrônica
e tem o hábito de apontar seu gravador para qualquer
lugar de onde possa sair som. Ele representa a própria
jornada tateante do diretor: pesquisar os timbres, aceitar
sons de qualquer natureza (um portão de ferro rangendo,
uma vez feminina “umedecida”, um telefone tocando, o
tráfego na rua), samplear o mundo – e o cinema – para
traduzi-lo em música num momento posterior. Da mesma
forma que Bruno vai para o estúdio arregimentar a bagunça
sonora que ele captou e produzir uma faixa (que pode
crescer ou decrescer indefinidamente, mas que no fundo
deve ocupar um espaço limitado), Jousse adentra o set
para colocar, em não mais que 85 minutos, alguma pista,
algum traço sobre a massa efusiva que povoa seu imaginário
cinefágico. Os Invisíveis possui essa característica
– em nada desinteressante – de ser um traçado tremido
que às vezes escapa a si próprio, perde de vista seu
objetivo. Por exemplo: a aparição de Sr. William no
meio do filme, figura explicitamente lynchiana (mais
uma tirada de chapéu do que uma sacada maneirista),
é uma espécie de sample narrativo: um registro
encontrado em algum outro ponto fora do sistema e que
é incluído com a arbitrariedade de uma das jam sessions
que Bruno realiza com seu amigo guitarrista.
O roteiro do filme também não nega uma parcela de “filosofia
da composição”. A invisibilidade vem de uma rede que
interconecta linhas telefônicas, forma arqueológica
das salas de chat da internet que permite que
Bruno chegue até Lisa, a mulher com quem ele passa a
manter encontros às escuras num quarto de hotel. Lisa
estabelece as regras: luzes completamente apagadas,
sem revelar os rostos, sem criar qualquer tipo de vínculo,
sem cigarro após o sexo. Corpo sem imagem: apenas voz
e tato, som e textura. Bruno leva sempre um gravador
com o qual registra as conversas fugidias, os gemidos,
as respirações ofegantes, as exalações sonoras dos corpos
– tudo que depois será usado na suas composições.
Neste momento, o filme se torna realmente instigante
e misterioso. A uma sociedade com os olhos cansados
pelo bombardeamento visual, Jousse oferece uma nova
partilha da atenção: escutar melhor o mundo, fazer o
blackout da imagem para se livrar da transparência
excessiva e retomar a força (não desacompanhada do pânico
intrínseco ao sentimento de perda) do desejo cego, da
vontade de ir atrás da mulher (musa) inalcançável –
o que conduz a um outro voyeurismo, dessa vez sonoro.
Blow Out, de Brian De Palma, mostrava a junção,
com rigor quase semiótico, dessas duas camadas aqui
descoladas: o material sonoro bruto, em toda sua riqueza
evocativa, e as imagens que a ele se acoplam. A seqüência
em que Bruno acorda e vê o rosto de Lisa, já pela manhã,
tem tudo para ser um sonho, apenas a imagem que ele
gostaria de encontrar. Idealização (Bruno não é decididamente
um romântico, mas...)? Cura de uma angústia? A imaginação
(a de Bruno, a nossa) se vê inflada pela ambiência sonora
que preenche a penumbra no quarto do hotel. A imagem
do outro é o limite ou a expansão do desejo?
A seqüência que pontua o fim da melhor parte de Os
Invisíveis é quando Bruno acorda, põe os headphones
e acompanha os sons de Lisa indo embora enquanto perfaz
o trajeto dela com o olhar a partir do que ouve. A presença
sonora é tão forte que quase vemos um fantasma se locomover
pelos espaços vazios. E Lisa de fato some do filme.
Por mais que Bruno passe a procurá-la freneticamente,
ela permanece como a nota inatingível (eterno ponto
de fuga do ofício dos músicos), o timbre indefinido
que o obceca. É quando ocorrem os desvios narrativos
(a visita ao Sr. William, a tentativa de entrar na boate,
o encontro com a outra mulher que conhece pelo telefone)
que fazem o filme perder o rumo, o ritmo e mesmo o ponto
de contato com sua questão teórica relevante. As seqüências
finais do filme, se não “justificam os meios”, ao menos
esclarecem as intenções. Bruno chega a ver a mulher
que estava naquela manhã ao seu lado na cama, a Lisa
que tanto procura, mas não vai até ela (talvez porque
a imagem de mãe, que é o que ela interpreta naquele
momento, não fosse bem o papel que ele escolhera para
ela). A Bruno coube ir para o estúdio e transformar
em obra uma experiência vivida. Uma fonte de inspiração,
uma experiência e seu registro: processo que vale tanto
para Bruno quanto para o filme.
Thierry Jousse fez um filme de atmosferas ambíguas,
de trilhos facilmente desviáveis pelo inusitado, de
perambulações insones por paisagens de néon. Existe
um clima um tanto nineties no filme, um tributo
à década em que Jousse exerceu com mais empenho e destaque
sua profissão de crítico (no ano retrasado foi lançado
um livro compilando os principais textos que ele escreveu
sobre o cinema dos anos 90 – Kitano e, evidentemente,
Lynch estando entre os prediletos). Os Invisíveis
é ao mesmo tempo profundamente cotemporâneo e nostálgico.
Duas cenas dão precisamente o tom desse movimento duplo.
A primeira é ainda no começo, quando Bruno fala com
Lisa pela primeira vez e seu telefone sem fio cai no
chão. O aparelho não quer mais funcionar e ele é obrigado
a desencavar da estante o telefone antigo, cujo trim-trim
estridente já povoou o som ambiente de tantos filmes
– ele re-hospeda o “toque” antigo no universo sonoro
contemporâneo. A função dos vinis que o zelador (Michael
Lonsdale, calmo e pitoresco) coleciona é parecida: um
certo fetiche pelos suportes antigos, mais manuseáveis
e ruidosos. A segunda cena é no final, quando Carole
(que vai produzir o seu disco e com quem chega a ter
um caso) encontra Bruno arrastando e percussionando
diapasões nas cordas de um piano, produzindo diferentes
sonoridades que ele grava para depois usar nas músicas.
A passividade do microfone, que apenas aguardava pelos
sons, é progressivamente substituída por uma pesquisa
cada vez mais tátil (ele arrasta o microfone nas superfícies,
fricciona objetos para alcançar novos timbres). Reconciliar
a praticidade do meio digital com o dispêndio físico
no processo de criação artística; re-introduzir o gesto
na obra, re-equacionar a tatilidade no cinema. A qualidade
cambaleante de Os Invisíveis não está em conseguir
ser um filme resoluto, límpido, mas em deixar que Thierry
Jousse ponha a nu o seu processo, assim como parte de
seu pensamento.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
|