As primeiras cenas não deixam
dúvidas de que se trata do novo filme dos irmãos Dardenne:
a filmagem no ritmo da respiração das personagens, a
entrada em cena no meio de uma ação maior que tem início
antes do plano (e, neste caso, antes do filme) começar,
a vida comum do dia a dia de personagens das classes
mais baixas, lidando com questões pessoais. No entanto,
é tolo recomeçar com a discussão sobre o “estilo Dardenne”
se sobrepujar aos seus filmes, porque isso já foi até
motivo de artigo aqui na revista. O caso é se perceber,
como o júri em Cannes teve a sabedoria de perceber que,
não importando que Rosetta já tivesse vencido
uma Palma de Ouro, L’Enfant é um outro filme,
tão grandioso quanto. As semelhanças de estilo importam
menos do que a semelhança do olhar para o mundo e seus
personagens, este sim fonte de infinita fascinação.
Deve-se notar que há sutis, porém importantíssimas,
diferenças neste L’Enfant. A primeira se revela
discretamente ainda na primeira parte de sua narrativa:
ao contrário do que acontecia nos seus outros filmes,
os Dardenne se permitem aqui uma inesperada troca de
protagonista no filme. Num primeiro momento, pensamos
que esta será a história de uma mãe solteira com o seu
bebê – no entanto, logo surge o pai, e este filme é
a história dele. Pode-se questionar, aliás, quem é a
criança do título, pois se há um bebê em cena, há também
um casal praticamente pós-adolescente, onde as ações
e reações os jogam constantemente do mundo dos adultos
(forçados) para um universo ainda eminentemente infantil,
especialmente no que se refere à maturidade para lidar
com as coisas do mundo. São, ao fim e ao cabo, todos
crianças neste filme.
Como crianças que são, o trabalho, que era foco central
dos três filmes anteriores dos irmãos, aqui ganha ares
de travessura ilegal: Bruno (o protagonista) não trabalha
– vive de pequenos roubos e de revender as mercadorias
roubadas por seus comparsas, estes sim autênticas crianças.
Os Dardenne descrevem a rotina deste “trabalho” com
o mesmo detalhismo com que acompanhavam a rotina do
marceneiro em O Filho, mas aqui o trabalho não
é o tema central. E isso implica inclusive numa alteração
da escala usada na filmagem, que já não acompanha Bruno
quase dentro da sua nuca: há em L’Enfant uma maior distância
entre a câmera e seus objetos, tanto assim que os Dardenne
se permitem encenar uma autêntica sequência de perseguição
digna de um filme de ação.
Pode-se dizer que a principal preocupação dos irmãos
neste novo filme é a transformação do ser humano em
objeto, por conta de sua presença numa micro-cadeia
econômica. Essencialmente, este tema está presentificado
na figura do bebê, que não por acaso nunca é mais do
que um corpo que chora (não há no filme todo a individualização
daquela criança). E que depois se transforma em mercadoria:
trocado por um envelope cheio de dinheiro, depois retrocado
por uma bolsa. Nas duas cenas, a encenação é magistral:
um objeto “torna-se” outro, com um indivíduo tornado
equivalente a um monte de notas de dinheiro. Não se
poderia ser mais claro.
No entanto, não é só o bebê que vira um objeto: Bruno,
no auge de sua marginalização dentro da narrativa, enrola-se
para dormir dentro de uma caixa de papelão, e se torna
ele mesmo um “pacote”, uma coisa. Além deste momento,
o filme realiza mais um movimento que deixa claro o
seu tema: a humanização de objetos. Assim como a criança
e Bruno passam por um estágio de objetificação, também
o carrinho de bebê, e posteriormente a moto, passam
a significar personagens, passam a ser “histórias de
vida” que os personagens carregam com eles. São, de
fato, tornados seres, num movimento intercambiável de
constante adaptação ao ambiente e aos fatos.
Trata-se, antes de tudo, de um cinema dos mínimos gestos
que significam muito. Desde o começo, “pressentimos”
toda a relação do jovem casal, até o trajeto que os
levou ao bebê, não por uma recapitulação de sua história
(seja em palavras ou em flashbacks) e sim através
de cada pequeno movimento do corpo deles em relação
ao outro. Esta história do mundo que se inscreve nos
corpos (vivos ou não) talvez seja o principal tema “oculto”
na obra dos cineastas: assim como os pés de Bruno no
muro que ele “pisa”, todas as ações humanas deixam marcas
no mundo.
Ao seguirmos Bruno em cada passo do seu trajeto, somos
obrigados a nos identificar com cada um dos seus atos,
mesmo se não concordamos com eles. Para isso, há uma
questão essencial na mise-en-scène da troca do
bebê, que é o tempo. Este tempo é o que separa o cinema
moral dos irmãos de um cinema moralista. Bruno passa,
nos seus olhos, toda a angústia daquela ação, tornada
ainda maior no uso do som off do “outro lado”,
que nunca nos é mostrado. É ali, ao longo daquele tempo,
que qualquer interpretação simplista do personagem (“ele
é um filho da puta”, ou “o mundo o obrigou a isso”)
cai por terra. Bruno percebe que seus atos são escolhas
suas, mas aquele tempo o faz tomar consciência (a perda
da capacidade de ser criança?) que os atos possuem efeitos,
e portanto implicam em responsabilidades. Em se tratando
dos Dardenne, sabemos que este tema não aparece no filme
como uma lição passada para o personagem, nem como um
exemplo/modelo para o espectador, até porque é difícil
afirmar que Bruno “aprende” algo: ele recupera o bebê
não porque é o “certo” a fazer, mas sim porque quer
evitar a cadeia; da mesma forma, se entrega à polícia
não porque “deveria”, e sim porque lá poderá ter comida,
casa, proteção, e a possibilidade de ter Sonia de volta.
O fato é que, por trás desta narrativa está, no fundo,
o mesmo dilema moral (porque os dilemas sempre são morais
no cinema dos Dardenne) de O Filho: há atos totalmente
imperdoáveis, ou toda ação humana pode ser compreendida
dentro de seu contexto, sempre individual e não-categorizável?
A resposta, como sempre no cinema dos irmãos, aponta
para o caminho da compreensão – menos porque os personagens
o tornem realidade do que pela soma daquilo que acompanhamos
e sentimos. E o plano final, como já era o caso em Rosetta
ou O Filho, apresenta a catarse completa deste
que é um cinema humano, antes de tudo.
Eduardo Valente
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