L'ENFANT
Jean-Pierre e Luc Dardenne, L'enfant, Bélgica/França, 2005

As primeiras cenas não deixam dúvidas de que se trata do novo filme dos irmãos Dardenne: a filmagem no ritmo da respiração das personagens, a entrada em cena no meio de uma ação maior que tem início antes do plano (e, neste caso, antes do filme) começar, a vida comum do dia a dia de personagens das classes mais baixas, lidando com questões pessoais. No entanto, é tolo recomeçar com a discussão sobre o “estilo Dardenne” se sobrepujar aos seus filmes, porque isso já foi até motivo de artigo aqui na revista. O caso é se perceber, como o júri em Cannes teve a sabedoria de perceber que, não importando que Rosetta já tivesse vencido uma Palma de Ouro, L’Enfant é um outro filme, tão grandioso quanto. As semelhanças de estilo importam menos do que a semelhança do olhar para o mundo e seus personagens, este sim fonte de infinita fascinação.

Deve-se notar que há sutis, porém importantíssimas, diferenças neste L’Enfant. A primeira se revela discretamente ainda na primeira parte de sua narrativa: ao contrário do que acontecia nos seus outros filmes, os Dardenne se permitem aqui uma inesperada troca de protagonista no filme. Num primeiro momento, pensamos que esta será a história de uma mãe solteira com o seu bebê – no entanto, logo surge o pai, e este filme é a história dele. Pode-se questionar, aliás, quem é a criança do título, pois se há um bebê em cena, há também um casal praticamente pós-adolescente, onde as ações e reações os jogam constantemente do mundo dos adultos (forçados) para um universo ainda eminentemente infantil, especialmente no que se refere à maturidade para lidar com as coisas do mundo. São, ao fim e ao cabo, todos crianças neste filme.

Como crianças que são, o trabalho, que era foco central dos três filmes anteriores dos irmãos, aqui ganha ares de travessura ilegal: Bruno (o protagonista) não trabalha – vive de pequenos roubos e de revender as mercadorias roubadas por seus comparsas, estes sim autênticas crianças. Os Dardenne descrevem a rotina deste “trabalho” com o mesmo detalhismo com que acompanhavam a rotina do marceneiro em O Filho, mas aqui o trabalho não é o tema central. E isso implica inclusive numa alteração da escala usada na filmagem, que já não acompanha Bruno quase dentro da sua nuca: há em L’Enfant uma maior distância entre a câmera e seus objetos, tanto assim que os Dardenne se permitem encenar uma autêntica sequência de perseguição digna de um filme de ação.

Pode-se dizer que a principal preocupação dos irmãos neste novo filme é a transformação do ser humano em objeto, por conta de sua presença numa micro-cadeia econômica. Essencialmente, este tema está presentificado na figura do bebê, que não por acaso nunca é mais do que um corpo que chora (não há no filme todo a individualização daquela criança). E que depois se transforma em mercadoria: trocado por um envelope cheio de dinheiro, depois retrocado por uma bolsa. Nas duas cenas, a encenação é magistral: um objeto “torna-se” outro, com um indivíduo tornado equivalente a um monte de notas de dinheiro. Não se poderia ser mais claro.

No entanto, não é só o bebê que vira um objeto: Bruno, no auge de sua marginalização dentro da narrativa, enrola-se para dormir dentro de uma caixa de papelão, e se torna ele mesmo um “pacote”, uma coisa. Além deste momento, o filme realiza mais um movimento que deixa claro o seu tema: a humanização de objetos. Assim como a criança e Bruno passam por um estágio de objetificação, também o carrinho de bebê, e posteriormente a moto, passam a significar personagens, passam a ser “histórias de vida” que os personagens carregam com eles. São, de fato, tornados seres, num movimento intercambiável de constante adaptação ao ambiente e aos fatos.

Trata-se, antes de tudo, de um cinema dos mínimos gestos que significam muito. Desde o começo, “pressentimos” toda a relação do jovem casal, até o trajeto que os levou ao bebê, não por uma recapitulação de sua história (seja em palavras ou em flashbacks) e sim através de cada pequeno movimento do corpo deles em relação ao outro. Esta história do mundo que se inscreve nos corpos (vivos ou não) talvez seja o principal tema “oculto” na obra dos cineastas: assim como os pés de Bruno no muro que ele “pisa”, todas as ações humanas deixam marcas no mundo.

Ao seguirmos Bruno em cada passo do seu trajeto, somos obrigados a nos identificar com cada um dos seus atos, mesmo se não concordamos com eles. Para isso, há uma questão essencial na mise-en-scène da troca do bebê, que é o tempo. Este tempo é o que separa o cinema moral dos irmãos de um cinema moralista. Bruno passa, nos seus olhos, toda a angústia daquela ação, tornada ainda maior no uso do som off do “outro lado”, que nunca nos é mostrado. É ali, ao longo daquele tempo, que qualquer interpretação simplista do personagem (“ele é um filho da puta”, ou “o mundo o obrigou a isso”) cai por terra. Bruno percebe que seus atos são escolhas suas, mas aquele tempo o faz tomar consciência (a perda da capacidade de ser criança?) que os atos possuem efeitos, e portanto implicam em responsabilidades. Em se tratando dos Dardenne, sabemos que este tema não aparece no filme como uma lição passada para o personagem, nem como um exemplo/modelo para o espectador, até porque é difícil afirmar que Bruno “aprende” algo: ele recupera o bebê não porque é o “certo” a fazer, mas sim porque quer evitar a cadeia; da mesma forma, se entrega à polícia não porque “deveria”, e sim porque lá poderá ter comida, casa, proteção, e a possibilidade de ter Sonia de volta.

O fato é que, por trás desta narrativa está, no fundo, o mesmo dilema moral (porque os dilemas sempre são morais no cinema dos Dardenne) de O Filho: há atos totalmente imperdoáveis, ou toda ação humana pode ser compreendida dentro de seu contexto, sempre individual e não-categorizável? A resposta, como sempre no cinema dos irmãos, aponta para o caminho da compreensão – menos porque os personagens o tornem realidade do que pela soma daquilo que acompanhamos e sentimos. E o plano final, como já era o caso em Rosetta ou O Filho, apresenta a catarse completa deste que é um cinema humano, antes de tudo.

Eduardo Valente