Dias no campo
Como rapidamente se percebe, o que melhor une os filmes
da trilogia que Last Days fecha (depois de Gerry
e Elefante) é o próprio mergulho conceitual
de Gus Van Sant. Nos três casos, vemos o investimento
no dispositivo em detrimento mesmo da narrativa: a mise
en scène se concentra nas superfícies e abre o filme
para um fluxo sensório-temporal, enquanto a curva ficcional
se acha cada vez mais fechada, constritamente minimalista.
Passeando pelo mato, vagando pela casa, Blake (o Kurt
Cobain reinventado – e não apenas mimetizado – por Michael
Pitt) é menos um personagem do que um conceito. Ele
está em completo desligamento com o mundo, não se comunica
com ninguém – muito menos com os espectadores do filme.
Se em Elefante a câmera chegava adiantada em
relação ao evento culminante, e a montagem tentava adiá-lo
o máximo possível, voltando no tempo toda vez que se
ouvia o primeiro clique destravando a arma, em Last
Days foi o contrário: Gus Van Sant chegou atrasado,
quando já não havia mais personagem nem ação nem palavras,
e só o que ele conseguiu filmar foi um fantasma que
se esquiva das pessoas enquanto resmunga frases incompletas.
O jogo mudou: as peças não estão mais lá, se oferecendo
em toda sua clareza traiçoeira, para que as rearticulemos.
Last Days é um filme post morten, não
tem mais nada a montar. O que fazer com um conjunto
de acordes, ruídos, burburinhos e deslocamentos espectrais?
Essa é a questão que a mise en scène coloca e
que a montagem se esforça em não responder diretamente.
Tudo é estratégico e pede imersão: fazer o filme falar
por meio de situações aleatórias e personagens secundários,
usar o som como um complexo significante privilegiado,
transformar a narrativa em um disco arranhado que demora
a avançar para o sulco seguinte, unir por ligantes abstratos
um espaço que se oferece em toda sua fisicalidade.
Na locação campestre de Last Days, há uma casa
e um grupo de pessoas, mas não há família – nem mesmo
disfuncional (como era em Drugstore Cowboy).
Na verdade, não há nada que faça daquele espaço domiciliar
algo diferente do que está do lado de fora (o frio é
o mesmo, a privacidade é praticamente nula, o conforto
é inexistente). A casa se abre, fendida por todos os
lados, como a continuação de um quintal que nada mais
é do que o mundo inteiro. Romper as barreiras entre
público e privado: eis uma conhecida promessa da contemporaneidade.
Os novos objetos televisuais não fizeram com que o trabalho
de um artista pop se tornasse menos interessante do
que a maneira como ele acorda, mija e come seus cereais?
Blake é decalcado de uma iconofilia diluída na circulação
dos signos de massa e na estetização do ordinário –
ele bem poderia estar em uma serigrafia warholiana.
Para a celebridade degenerativa que ele se tornou, nada
de lar doce lar. Cristo abandonado pelos apóstolos,
ídolo traído pelos próprios seguidores, Blake se entrega
a um calvário que se desenrola e se restitui em ritmo
lânguido, quase torporoso. Toda vez que Van Sant está
próximo de filmar alguma coisa concreta, ocorre um esvoaçamento
do filme, uma perda de gravidade que o devolve à rarefação
narrativa. Nesse sentido, é incrível que seja no interior
do plano fixo alongado, antiga ferramenta na busca de
uma certa concreção, que Last Days se volatilize
mais radicalmente. Justamente quando a câmera não se
mexe, o corpo de Michael Pitt permanece mais tempo em
quadro e a continuidade é mantida, Blake começa a evaporar
e se abstrai da cena, como um viajante interdimensional
que não sai do lugar. É como no plano em que o vendedor
de páginas amarelas fala sobre a renovação de um anúncio
enquanto Blake aos poucos parece se afundar no sofá
e simplesmente sumir em si mesmo, sua permanência física
sendo inversamente proporcional à duração do plano.
Mais para o final do filme, numa cena arrepiante, ele
canta e toca ao violão aquela balada triste e visceral,
que fala do “longo caminho que vai da morte ao nascimento”.
Nesse plano-seqüência de uma fixidez e um retraimento
formal inacreditáveis, Blake desaparece por trás de
seu corpo mesmo, de sua imagem mesma – terá sido a primeira
vez que foi mostrado um corpo se tornando clichê dentro
de um único plano de cinema?
Elefante foi facilmente examinado na junção entre
documentário e ficção, filme-conceito e peça musical.
Mas o que dizer de Last Days? Registro lacônico
ou sonho acachapante? Biografia ou digressão poética?
Tentar ser os personagens de seus filmes é um
desejo já declarado por Van Sant. Estaríamos então diante
de uma autobiografia em terceira pessoa, um registro
intimista que estabelece a exterioridade como premissa?
O fato é que mais até do que Gerry e Elefante,
Last Days é uma arte da epiderme em que tudo
é interioridade – uma obra ainda mais bressoniana,
portanto. Se o filme é a parábola de um “nirvana” inacessível,
Blake não pode ser o herói sacrificado, mas antes o
próprio mito ausente (ele é dono de uma história que
já não lhe pertence), o ponto cego da ficção. Aí se
encontra o traço mais intangível deste filme de Van
Sant: como filmar um personagem que se furta à narrativa?
O resultado é que Last Days está destituído do
poder de sedução de Elefante: o material agora
exige que se substitua o movimento fluido e voluptuoso
dos corredores da escola pela marcha zumbi de um morto-vivo.
O que tornava o massacre um evento tão imprevisto e
brutal em Elefante – e aumentava seu suspense
– era a beleza inevitável daquele balé de corpos que
o precedia. Last Days, fruto de uma narrativa
muito mais deflacionada, e de uma estratégia visual
sem sobressaltos, não oferece conforto – tampouco suspense
– ao longo do retardamento do acontecimento que o título
promete. Chega a haver um tédio compartilhado, um entorpecimento
sóbrio, uma letargia obscura, porém calma. Entre Gerry
e Last Days, Van Sant fez o seguinte percurso:
quanto mais violento o tema, mais serena a forma. Nenhuma
inquietação abala o lentíssimo travelling que
se distancia da casa, deixando Blake a sós com as guitarras
nas quais se manifesta todo o furor negado pela mise
en scène.
Já existia em Gerry e Elefante (ou mesmo
antes, em Garotos de Programa e Gênio Indomável)
uma vontade de mitologia que Last Days potencializa:
a psicologia é apagada pela simples passagem de forças,
o figurino patenteia os personagens (a bota e o casaco
de couro de River Phoenix, a estrela no peito de Casey
Affleck, a camiseta amarela de John Robinson, o vestido
e o pijama de Blake-Cobain), o universo jovem adquire
autonomia (os adultos sendo mostrados ou como vultos
ou como figuras dissonantes). O jovem como mito nunca
esteve longe do projeto de Gus Van Sant: nada de estranho
em ele acorrer a um ícone da cultura pop. E sendo Last
Days um filme posado, a opção de seu realizador
se mostra tão mais vigorosa, pois a inserção de signos
que marcaram a carreira de Kurt Cobain no clima bucólico
do filme é um gesto arriscado de deslocamento que, de
uma hora para outra, transforma uma iconografia que
nove a cada dez espectadores julgavam conhecer (alguns
até de muito perto) em algo totalmente estrangeiro.
Risco maior, entretanto, é o da distribuição desigual
de sua emoção, cujos ápices se concentram em três ou
quatro planos de acúmulo, o resto do filme se dividindo
entre sideração e mutismo.
Talvez a obra de Gus Van Sant esteja agora diante de
uma incógnita ainda maior que o término de sua trilogia
beatnik em 1993, quando o diretor – então figura
de proa da onda indie que o cinema americano
revelara nos anos 80 – se preparava para rodar seu primeiro
filme de estúdio enquanto assistia ao fracasso de bilheteria
de Até as Vaqueiras Ficam Tristes (filme com
vários pontos de interesse, mas compreensivelmente mal
recebido). Last Days é possivelmente a obra-prima
mais lírica e menos “substancial” dessa nova trilogia,
um puro trajeto de virtualização e efemeridade. A imagem
busca se despir de toda origem, sair da matéria e ressuscitar
como virtualidade. E já não era esse o percurso afirmado
no final de Elefante, com as nuvens passando
indefinidamente, cada nuvem contendo virtualmente a
tempestade num fluxo que podemos pressupor interminável?
Last Days parte de um corpo morto (virar um mito
em vida já é de certa forma morrer para o mundo) e faz
a difícil exegese do seu duplo virtual, que preexiste
ao filme e dele sai clarificado. O processo demanda
também o refinamento do estilo: as clássicas nuvens
passantes de Gus Van Sant são aqui evocadas com a sutileza
de um reflexo no vidro do carro em movimento. Qual será
seu próximo passo? Fazer um filme sem peso nenhum? Então
toda a beleza que ele mostrar terá novamente de pesar
toneladas.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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