A ÚLTIMA TRANSA DO PRESIDENTE
Im Sang-soo, Geuddae geusaramdeul, Coréia do Sul, 2004

Para quem desconfia da força política do filme de Im Sang-soo, é só imaginar se teria algum impacto assistir a um filme com o ex-presidente do seu país rodeado de uísque 12 anos e meninas 18. E mais: sendo vítima de uma trama, armada pelo próprio chefe de segurança nacional, filmada como a mais pura e genuína matéria de cinema de gênero. Não resta dúvida de que se trata de um filme que curto-circuita o íntimo e o político com coragem e eficácia sem pares abundantes no cinema contemporâneo. A Última Transa do Presidente é direto como o cinema coreano vem se provando saber ser. Não existem atalhos nem desvios facilitadores na Coréia: o assunto – seja ele a relação homem-mulher ou a história recente do país – deve ser encarado de frente, sem meias-palavras. O que não é falado no diálogo é porque ninguém quis falar mesmo, pois os atores coreanos não possuem papas na língua. Ao transitar do sexo (tônica dominante de seus filmes anteriores) para a política – mudança nem tão grande assim, no fim das contas –, Im parece dar ao cinema coreano uma alfinetada. Na era dos épicos na linha A Irmandade da Guerra (maior bilheteria da história da Coréia, cf. “Um conto de cinema: a hora e a vez da indústria cinematográfica coreana”, na atual edição de Contracampo), que dissolvem a consciência histórica na pirotecnia e no melodrama, Im Sang-soo responde com um filme sombrio, violento (de forma mais seca e menos espetacular que o filme de Kang Je-gyu) e calcado, sobretudo, nas minúcias burocráticas da reação em cadeia que se segue ao assassinato do presidente. O que poderia parecer o clímax do filme ocorre na verdade ainda na primeira metade, e no restante impera uma frieza de quem acompanha a máquina estatal entrando em parafuso, mas tentando abafar o furacão enquanto simplesmente não consegue entender – ou finge não entender – que diabos aconteceu para que o presidente aparecesse morto com tiros à queima-roupa. 

O personagem-chave do filme é Kim Jae-gyu (Baek Yoon-shik, que também é ator do aloprado Save the Green Planet), chefe de inteligência (leia-se caçador de comunistas), o próprio maquinador da ação. Im o trata como vilão ambíguo, porque cheio de expressões codificadas pelo cinema de ação, mas ao mesmo tempo inescrutável em suas intenções – mudar os rumos da política na Coréia? apenas provar até que extensão uma ação individual pode repercutir no destino da nação? –: Kim muitas vezes se mostra uma cobaia da História, alguém que se sacrifica para provar uma tese historiográfica. De mais a mais, não há herói no filme, então não pode haver vilão na acepção convencional do termo. Do começo do filme em diante, passando pelo momento em que ele convence a equipe da KCIA a aderir ao golpe, Kim age sempre de forma tão transparente que obscura. O plano tour de force que sai da sala em que jazem os corpos – ensangüentados – do presidente e dois ministros e passeia por toda a mansão, até chegar no quintal e filmar pela janela o que se passa na cozinha lotada de funcionários, perfaz o movimento do filme: sair do privado e atingir a dimensão coletiva. Não seria esse movimento de câmera a tradução perspicaz do que é uma manobra política? Da cúpula em direção à praça. Da devassidão do processo à embalagem dos resultados.

A grande maioria do público de cinema, e essa é uma constatação que já vem de longa data, só consegue enxergar a política sob o ângulo do escândalo jornalístico. Im Sang-soo parte, contudo, do fato consumado para nos colocar diante de uma estrutura de ficção muito forte, mas sem os vícios maniqueístas nem a “indignação” do thriller político convencional. O suicídio político da ditadura coreana é aqui acondicionado a um dispositivo que quase não varia seu ritmo ao longo do filme – um registro até cínico diante de toda a avalanche histórica a caminho. Im acredita no surrealismo inerente àquele episódio, então não precisa exagerar no tom ou economizar na ousadia. O humor é trazido à tona quando ele bem entende. A Última Transa do Presidente está longe das bulas de uma certa ficção de esquerda que faz a mesma coisa há cinqüenta anos, sem nunca ter provocado uma única reação política no público.

A segunda metade do filme pode até perder um pouco do punch inicial, mas nivela Im Sang-soo por cima no que diz respeito à construção de atmosfera e integração dos significados à trama, sem forçar a barra para dar conta do panorama político de então (como vemos acontecer em tantos filmes de temática parecida). Não é preciso conhecer a história da Coréia do Sul para perceber que a morte de Park Chung-hee estava longe de acenar para o fim da ditadura: A Última Transa do Presidente faz de sua jornada noturna o ritual de transição para um novo governo opressor. É uma pena que a censura coreana tenha cortado (com a desculpa de que confundiria o espectador quanto ao que é “real” e o que é “ficção”) as imagens de arquivo que pontuariam o início e o fim do filme, mostrando, respectivamente, manifestações contra o governo e cenas do funeral do presidente assassinado. Mas o final, mesmo assim, não perde em contundência: uma voz feminina, parecendo uma professora de História de escola primária, narra em off o que aconteceu a cada um dos personagens. Im Sang-soo propõe um capítulo bastante difícil de assimilar, e escolhe uma metodologia em nada ortodoxa.

Luiz Carlos Oliveira Jr.