Para quem desconfia da força
política do filme de Im Sang-soo, é só imaginar se teria
algum impacto assistir a um filme com o ex-presidente
do seu país rodeado de uísque 12 anos e meninas 18.
E mais: sendo vítima de uma trama, armada pelo próprio
chefe de segurança nacional, filmada como a mais pura
e genuína matéria de cinema de gênero. Não resta dúvida
de que se trata de um filme que curto-circuita o íntimo
e o político com coragem e eficácia sem pares abundantes
no cinema contemporâneo. A Última Transa do Presidente
é direto como o cinema coreano vem se provando saber
ser. Não existem atalhos nem desvios facilitadores na
Coréia: o assunto – seja ele a relação homem-mulher
ou a história recente do país – deve ser encarado de
frente, sem meias-palavras. O que não é falado no diálogo
é porque ninguém quis falar mesmo, pois os atores coreanos
não possuem papas na língua. Ao transitar do sexo (tônica
dominante de seus filmes anteriores) para a política
– mudança nem tão grande assim, no fim das contas –,
Im parece dar ao cinema coreano uma alfinetada. Na era
dos épicos na linha A Irmandade da Guerra (maior
bilheteria da história da Coréia, cf. “Um conto de cinema:
a hora e a vez da indústria cinematográfica coreana”,
na atual edição de Contracampo), que dissolvem a consciência
histórica na pirotecnia e no melodrama, Im Sang-soo
responde com um filme sombrio, violento (de forma mais
seca e menos espetacular que o filme de Kang Je-gyu)
e calcado, sobretudo, nas minúcias burocráticas da reação
em cadeia que se segue ao assassinato do presidente.
O que poderia parecer o clímax do filme ocorre na verdade
ainda na primeira metade, e no restante impera uma frieza
de quem acompanha a máquina estatal entrando em parafuso,
mas tentando abafar o furacão enquanto simplesmente
não consegue entender – ou finge não entender – que
diabos aconteceu para que o presidente aparecesse morto
com tiros à queima-roupa.
O personagem-chave do filme é Kim Jae-gyu (Baek Yoon-shik,
que também é ator do aloprado Save the Green Planet),
chefe de inteligência (leia-se caçador de comunistas),
o próprio maquinador da ação. Im o trata como vilão
ambíguo, porque cheio de expressões codificadas pelo
cinema de ação, mas ao mesmo tempo inescrutável em suas
intenções – mudar os rumos da política na Coréia? apenas
provar até que extensão uma ação individual pode repercutir
no destino da nação? –: Kim muitas vezes se mostra uma
cobaia da História, alguém que se sacrifica para provar
uma tese historiográfica. De mais a mais, não há herói
no filme, então não pode haver vilão na acepção convencional
do termo. Do começo do filme em diante, passando pelo
momento em que ele convence a equipe da KCIA a aderir
ao golpe, Kim age sempre de forma tão transparente que
obscura. O plano tour de force que sai da sala
em que jazem os corpos – ensangüentados – do presidente
e dois ministros e passeia por toda a mansão, até chegar
no quintal e filmar pela janela o que se passa na cozinha
lotada de funcionários, perfaz o movimento do filme:
sair do privado e atingir a dimensão coletiva. Não seria
esse movimento de câmera a tradução perspicaz do que
é uma manobra política? Da cúpula em direção à praça.
Da devassidão do processo à embalagem dos resultados.
A grande maioria do público de cinema, e essa é uma
constatação que já vem de longa data, só consegue enxergar
a política sob o ângulo do escândalo jornalístico. Im
Sang-soo parte, contudo, do fato consumado para nos
colocar diante de uma estrutura de ficção muito forte,
mas sem os vícios maniqueístas nem a “indignação” do
thriller político convencional. O suicídio político
da ditadura coreana é aqui acondicionado a um dispositivo
que quase não varia seu ritmo ao longo do filme – um
registro até cínico diante de toda a avalanche histórica
a caminho. Im acredita no surrealismo inerente àquele
episódio, então não precisa exagerar no tom ou economizar
na ousadia. O humor é trazido à tona quando ele bem
entende. A Última Transa do Presidente está longe
das bulas de uma certa ficção de esquerda que faz a
mesma coisa há cinqüenta anos, sem nunca ter provocado
uma única reação política no público.
A segunda metade do filme pode até perder um pouco do
punch inicial, mas nivela Im Sang-soo por cima
no que diz respeito à construção de atmosfera e integração
dos significados à trama, sem forçar a barra para dar
conta do panorama político de então (como vemos acontecer
em tantos filmes de temática parecida). Não é preciso
conhecer a história da Coréia do Sul para perceber que
a morte de Park Chung-hee estava longe de acenar para
o fim da ditadura: A Última Transa do Presidente
faz de sua jornada noturna o ritual de transição
para um novo governo opressor. É uma pena que a censura
coreana tenha cortado (com a desculpa de que confundiria
o espectador quanto ao que é “real” e o que é “ficção”)
as imagens de arquivo que pontuariam o início e o fim
do filme, mostrando, respectivamente, manifestações
contra o governo e cenas do funeral do presidente assassinado.
Mas o final, mesmo assim, não perde em contundência:
uma voz feminina, parecendo uma professora de História
de escola primária, narra em off o que aconteceu
a cada um dos personagens. Im Sang-soo propõe um capítulo
bastante difícil de assimilar, e escolhe uma metodologia
em nada ortodoxa.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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