REINVENTANDO A HISTÓRIA: CINEMA DE GÊNERO, CINEMA POLÍTICO
Low Life de Im Kwon-Taek e
The President's Last Bang de Im Sang-Soo

Haryu insaeng, 2004
Geuddae geusaramdeul, 2005

O texto que abre esta pauta destrincha de forma bastante acurada duas características do cinema coreano recente: a possibilidade da aproximação de seu momento atual (seja no contato com o público, seja na forma de lidar com os seus temas) com um certo cinema norte-americano, e a sua capacidade de realizar com sucesso autênticos laboratórios de misturas de gêneros. Pois é a partir destes dois focos centrais que devemos nos aproximar dos filmes mais recentes de dois importantes nomes do cinema coreano (um veterano e um que ainda dá seus primeiros, mas já destacados, passos): Im Kwon-Taek e Im Sang-Soo. O primeiro, com Low Life, e o segundo com The President’s Last Bang.

Curiosamente, para além destes pontos iniciais, há mais que aproxime os dois filmes, indo do anedótico ao campo mesmo de suas narrativas. Na parte do anedotário, vale mencionar que o filme mais recente de Im Kwon-Taek foi tirado das suas mãos pelos produtores após sua estréia internacional, e remontado direto no negativo. Com isso, a cópia de um possível director’s cut estreou em junho último em Paris com esta peculiaridade: era uma cópia única, que não poderia ser mais duplicada (os produtores tiraram, inclusive, o direito de Im Kwon-Taek de vir a fazer um internegativo). Ou seja: era um filme novo que já nascia "se desfazendo", por assim dizer: cada nova exibição daquela cópia deteriorava mais esta raridade. Im Sang-Soo, por sua vez, também teve problemas de censura, mas no seu caso esta foi política mesmo. Seu filme precisou estrear na Coréia do Sul com uma longa ponta preta no começo, no lugar de uma sequência documental, porque a família do ditador Park Chung-hee não permitiu que o filme tivesse tamanha "conexão com o real" como o documentário aparentemente daria (a ingenuidade do raciocínio, como discutiremos aqui no texto, é considerar o documental mais "real" como absorção espectatorial que a ficção).

Esta idéia da conexão com o real é um ponto de partida fascinante para olharmos para o conjunto que os dois filmes apresentam. Isso porque, se juntarmos um com o outro, eles traçam um incrivelmente completo panorama da história sul-coreana do século XX. De fato, Low Life termina (de maneira um tanto abrupta, aliás) exatamente no momento em que começa The President's Last Bang. É como se um fosse a continuação sócio-histórica precisa do outro. Para além desta coincidência histórica, é muito interessante notar como os dois filmes se lidam de maneira aparentemente oposta com a macro-História – quando na verdade seria mais correto falar em formas complementares de lidar com esta. Em Low Life, Im Kwon-Taek opta por utilizar o caminho do personagem que atravessa décadas de História do país, sendo que nos ligamos sempre à sua micronarrativa, mas ela está constantemente refletindo as mudanças pelas quais o país passa. Já Im Sang-Soo opta pela aproximação direta, uma recriação de um momento-chave da história coreana (no seu caso, mais recente), tendo como protagonistas do seu filme, de fato, os personagens históricos envolvidos. O primeiro opta por uma narrativa que atravessa décadas, o outro condensa a ação em uma noite.

Porém, se a maneira narrativa de se aproximar do subtexto histórico é oposta, o que os dois filmes fazem de forma muito semelhante é transformarem os painéis que traçam em matéria puramente cinematográfica. Seja pela reconstituição em estúdio que Im Kwon-Taek utiliza, seja pela falta de cerimônia na reencenação da História a partir dos cânones do cinema de ação e do cinema cômico que faz Im Sang-Soo, o que nunca muda é que são dois cineastas dando o seu olhar sobre o seu país – não se trata aqui, portanto, nunca, de uma tese sociológica ou de cunho didático. Tanto um como o outro são, antes de tudo, "filmes de cinema" – para usar o termo sganzerliano. E ambos são aquele tipo de cinema raro hoje em dia: o "cinema de autor de gênero".

No caso de Im Kwon-Taek a mistura dos gêneros se dá no campo que une o melodrama ao cinema de gângster. Tratam-se, como se pode ver, de gêneros muito ligados a um cinema clássico, e não é por acaso que o cinema de Im Kwon-Taek, aqui, remete constantemente ao melhor do cinema americano pré-anos 60. No entanto, e isso é muito curioso de notar, a matriz que ele utiliza de aproximação temática com este manancial do cinema é muito próxima de um Martin Scorsese – um cineasta posterior, moderno. De fato, a descrição mais acurada de Low Life seria a de um filme onde o Martin Scorsese de New York, New York conta a história de Cassino.

Estão ali as referências constantes ao melodrama clássico, ao cinema hollywoodiano (a notar a profusão de cartazes de cinema que aparecem no filme, que tem ainda cenas que se passam dentro de um cinema), mas ao mesmo tempo está ali o desejo de traçar um micro-painel do país, tanto na perspectiva histórica quanto sócio-econômica, a partir de uma história de um criminoso e sua mudança de estatutos que acompanha o seu entorno (como em Casino, ele se auto-legitima ao passar de chefe de gangue de rua para homem de negócios). Assim como o cinema de Scorsese, Im Kwon-Taek também encena suas cenas de violência com um impressionante potencial físico, e também trabalha com uma estrutura elíptica de incrível domínio do tempo cinematográfico-narrativo.

Se Low Life termina historicamente onde começa The President`s Last Bang, talvez o mesmo possa se dizer da relação que estabelecem com o cinema de gêneros americanos. O filme de Im Sang-Soo deixa de lado o classicismo e vai mesmo pelo cinema de ação hiperativo, misturando-o com o deboche cômico auto-reflexivo. De fato, The president’s Last Bang é como se o Steven Soderbergh de Onze (e Doze) Homens e um Segredo usasse o mesmo domínio de linguagem e ritmo para filmar o assassinato de Kennedy. Por mais desorientadora que possa soar esta afirmação, é mesmo a que melhor permite pensar no que faz com a História o filme de Im Sang-Soo. O subtexto político desta aproximação é óbvio: ao quase "chanchadizar" um dos momentos-chave da História sul-coreana recente, o que o diretor faz é nos dizer que os homens do Poder são tão ridículos quanto qualquer ser humano, e que seus motivos e ações podem ser tão mesquinhas e minúsculas quanto – apenas, elas calham de influenciar a vida de todo um país.

Nas mãos de um cineasta menos hábil, este conceito poderia resultar numa sátira chanchadesca de uma ou duas boas piadas, uma bela "sacada", mas quase nenhum interesse cinematográfico. Só que o pulo do gato do diretor é justamente o de montar este autêntico petardo político-satírico como um filme de ação impecável. Ou seja: para cada piada completamente desconcertante (a cena do banheiro impressiona, neste sentido) há uma cuidadosíssima construção da trama policial conspiratória, um detalhamento rigoroso de personagens e da relação entre eles, feita cena a cena. Mais do que isso, há um domínio do espaço de fazer inveja em alguns dos melhores cineastas de ação (sejam os americanos, sejam os de Hong Kong).

Se os dois pontos de contato entre os filmes (histórico e de relação com o cinema de gêneros) são importantes de serem detalhados, é da mistura dos dois que sai o grande triunfo destes dois filmes admiráveis – e, possivelmente, sua relação mais direta com o cinema americano. Se o cinema de Hollywood sempre conseguiu algo de impressionante no seu circuito direto com o público e com a história do país, foi o fato de tornar o espaço simbólico da construção mitológica-cinematográfica igual em importância e permanência ao espaço da História. Ficção e realidade dialogam o tempo todo, e no jogo de forças entre as duas, nenhuma é mais importante, premente em relação à outra. Tornar a História do país a sua récita é tão natural quanto recriá-la como narrativa inventiva e viva. Não se separa, desta forma, o cinema do país, e ao tornarem-se um só, o cinema sai desta operação como parte essencial da construção de um imaginário nacional. Vendo os recentes filmes de Im Kwon-Taek e Im Sang-Soo é difícil evitar a admiração por assistir o cinema de um país conseguir se tornar tão claramente parte intrínseca da auto-reflexão deste. Admiração, talvez seja pouco – dá é inveja mesmo.


Eduardo Valente