JOGOS MORTAIS 2
Darren Lynn Bousman, Saw II, EUA, 2005

Então, Jogos Mortais foi um sucesso e pediu uma continuação. Mais uma oportunidade para isolar alguns personagens num espaço determinado (dessa vez uma casa), mostrar como aparentemente toda humanidade é incrivelmente estúpida quando colocada em situações limite (qualquer balbucio ou "grande idéia" de personagem acaba servindo apenas para criar situações de tensão emocional francamente pífias), e criar mais um intrincado jogo de sobrevivência com uma série de personagens moralmente questionáveis. Sim, aquela velha "lógica" roubada de Se7en que no fundo pode fazer o espectador se identificar mais com o serial killer do que com os que tentam sobreviver simplesmente porque o orquestrador tem um raciocínio mais claro e, pra variar, aquela clássica redução darwinista do que é a evolução da espécie (provavelmente nenhum roteirista de Hollywood jamais entendeu Nietzsche ou Darwin, tamanhas as deformações feitas à teoria deles).

Mérito onde é devido, Jogos Mortais 2 oferece todos os ingredientes de diversão que seu espectador ideal espera ver nele: sangue, inesperadas viradas de roteiro (uma delas trapaceira), um psicopata que explica seu método, situações em que o sadismo do assassino vira o gozo do espectador... Não que só isso já sirva para deslegitimar o filme – ele tem maneiras todas próprias de fazer isso por si mesmo –, mas vale dizer que existe uma lógica muito estranha em filmes "sérios" (em oposição aos trash) que tiram o máximo de entretenimento a partir de situações de tortura, que criam o mito do serial killer justificável, que fingem testar nossa ética mas são no fundo apenas vagabundos exercícios de manipulação e sadismo (seria a série Jogos Mortais a versão "filme de terror" do cinema de Lars Von Trier?). Excitante, não?

Porém a graça toda do filme não está em criar uma história consistente que vá esgotar todas as possibilidades das locações e dos personagens, mas ao contrário em fornecer muitas informações além do necessário, em subutilizar as informações acerca dos personagens (não por acaso, para todos os pontos que ficaram sem nó, há listas e listas de discussão na internet). Mas o pior disso tudo não está na história, mas na montagem. É ela que é capaz daquele flashback final que reconta a história para aqueles que não conseguiram prestar atenção em tudo, é ela que faz com que diversos momentos do filme tenham a cara daqueles prólogos de série tipo "No episódio anterior...", e é ela quem trapaceia com o espectador quando cria a fusão da fábrica de Jigsaw para a casa-prisão (uma fusão cria um paralelismo, que o espectador induz naturalmente como um paralelismo temporal, o que, perceberemos ao fim, não se dá). Por fim, a própria intriga: quando Jigsaw pede ao policial que despiste sua equipe para rumar sozinho até a casa em que seu filho está, temos aqui um caso de cópia explícita da situação de Jack Bauer na primeira temporada de 24 Horas, ignorando o protocolo profissional para salvar a vida de sua família (o próprio roteiro de Darren Lynn Bousman, nos informa o imdb, não foi escrito como uma seqüência a Jogos Mortais, mas a um projeto "muito influenciado" por ele).

Se há algo sociologicamente significante em Jogos Mortais 2 (e no franchise como um todo), é que toda sua iconografia é concorrente com o estado de coisas da sociedade americana em sua relação com a tortura, das fotos vazadas de Abu Ghraib ou do imaginário do que acontece em Guantanamo. "Concorrente" porque não reflete nem abona as ações do estado americano, mas encontra uma maneira prazerosa de fruir com o mesmo tipo de procedimento. Daí a extrema atualidade do filme: ele se parece incrivelmente com um monte de coisas que vivemos: filme como lógica exclusiva de produto de consumo, um jogo criado por um gamemaster inatingível e carismático, a tortura como explicável tanto pela sua função (fazer as pessoas amarem mais a vida, terem uma segunda chance) quanto pelas características dos submetidos a ela (o filme faz com que acreditemos que os personagens, por suas falhas morais, merecem a provação que lhes é imposta de fora; por não amarem a vida não seriam totalmente humanos... como aliás os supostos terroristas presos em Guantanamo). Cabe a Jogos Mortais 2 pelo menos a salutar qualidade de parecer com a época em que foi feito... mesmo que seja a semelhança com o que há de pior nela.

Ruy Gardnier