Então,
Jogos Mortais foi um sucesso e pediu uma continuação.
Mais uma oportunidade para isolar alguns personagens
num espaço determinado (dessa vez uma casa),
mostrar como aparentemente toda humanidade é
incrivelmente estúpida quando colocada em situações
limite (qualquer balbucio ou "grande idéia"
de personagem acaba servindo apenas para criar situações
de tensão emocional francamente pífias),
e criar mais um intrincado jogo de sobrevivência
com uma série de personagens moralmente questionáveis.
Sim, aquela velha "lógica" roubada
de Se7en que no fundo pode fazer o espectador
se identificar mais com o serial killer do que
com os que tentam sobreviver simplesmente porque o orquestrador
tem um raciocínio mais claro e, pra variar, aquela
clássica redução darwinista do
que é a evolução da espécie
(provavelmente nenhum roteirista de Hollywood jamais
entendeu Nietzsche ou Darwin, tamanhas as deformações
feitas à teoria deles).
Mérito onde é devido, Jogos Mortais
2 oferece todos os ingredientes de diversão
que seu espectador ideal espera ver nele: sangue, inesperadas
viradas de roteiro (uma delas trapaceira), um psicopata
que explica seu método, situações
em que o sadismo do assassino vira o gozo do espectador...
Não que só isso já sirva para deslegitimar
o filme ele tem maneiras todas próprias
de fazer isso por si mesmo , mas vale dizer que
existe uma lógica muito estranha em filmes "sérios"
(em oposição aos trash) que tiram
o máximo de entretenimento a partir de situações
de tortura, que criam o mito do serial killer
justificável, que fingem testar nossa ética
mas são no fundo apenas vagabundos exercícios
de manipulação e sadismo (seria a série
Jogos Mortais a versão "filme de
terror" do cinema de Lars Von Trier?). Excitante,
não?
Porém a graça toda do filme não
está em criar uma história consistente
que vá esgotar todas as possibilidades das locações
e dos personagens, mas ao contrário em fornecer
muitas informações além do necessário,
em subutilizar as informações acerca dos
personagens (não por acaso, para todos os pontos
que ficaram sem nó, há listas e listas
de discussão na internet). Mas o pior disso tudo
não está na história, mas na montagem.
É ela que é capaz daquele flashback
final que reconta a história para aqueles que
não conseguiram prestar atenção
em tudo, é ela que faz com que diversos momentos
do filme tenham a cara daqueles prólogos de série
tipo "No episódio anterior...", e é
ela quem trapaceia com o espectador quando cria a fusão
da fábrica de Jigsaw para a casa-prisão
(uma fusão cria um paralelismo, que o espectador
induz naturalmente como um paralelismo temporal, o que,
perceberemos ao fim, não se dá). Por fim,
a própria intriga: quando Jigsaw pede ao policial
que despiste sua equipe para rumar sozinho até
a casa em que seu filho está, temos aqui um caso
de cópia explícita da situação
de Jack Bauer na primeira temporada de 24 Horas,
ignorando o protocolo profissional para salvar a vida
de sua família (o próprio roteiro de Darren
Lynn Bousman, nos informa o imdb, não foi escrito
como uma seqüência a Jogos Mortais,
mas a um projeto "muito influenciado" por
ele).
Se há algo sociologicamente significante em Jogos
Mortais 2 (e no franchise como um todo),
é que toda sua iconografia é concorrente
com o estado de coisas da sociedade americana em sua
relação com a tortura, das fotos vazadas
de Abu Ghraib ou do imaginário do que acontece
em Guantanamo. "Concorrente" porque não
reflete nem abona as ações do estado
americano, mas encontra uma maneira prazerosa de fruir
com o mesmo tipo de procedimento. Daí a extrema
atualidade do filme: ele se parece incrivelmente com
um monte de coisas que vivemos: filme como lógica
exclusiva de produto de consumo, um jogo criado por
um gamemaster inatingível e carismático,
a tortura como explicável tanto pela sua função
(fazer as pessoas amarem mais a vida, terem uma segunda
chance) quanto pelas características dos submetidos
a ela (o filme faz com que acreditemos que os personagens,
por suas falhas morais, merecem a provação
que lhes é imposta de fora; por não amarem
a vida não seriam totalmente humanos... como
aliás os supostos terroristas presos em Guantanamo).
Cabe a Jogos Mortais 2 pelo menos a salutar qualidade
de parecer com a época em que foi feito... mesmo
que seja a semelhança com o que há de
pior nela.
Ruy Gardnier
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