O Jardineiro Fiel, independentemente
de não ser essa a versão 100% Meirelles, como ele antevia
antes da filmagem, tem sua personalidade estilística
lá, na dinâmica de câmera e de cortes, derivados do
estilo apresentado em Domésticas e desenvolvido
em Cidade de Deus. Essa dinâmica “fernandomeirelliana”
é a da multiplicidade dos planos e da curta duração
da maioria deles – algo já tratado por Ruy Gardnier
em Contracampo. Meirelles é um cineasta que, para amplificar
o tempo dramático (o período de horas, dias, meses da
ação narrada), encurta o tempo dos enquadramentos. Trabalha
com pequenas e longas elipses, sempre com uma narrativa
acelerada, que vira logo a página porque o relato tem
de avançar.
Essa agilidade pode ser adequada em alguns momentos,
mas não quando se transita pelos espaços públicos quenianos.
Meirelles não faz observação dos espaços, tampouco instala
o olhar nos ambientes. As imagens de “revelação” de
um estado de coisas e do cotidiano daquele universo
social e geográfico são sempre apressadas e não nos
colocam em contato mais direto com a realidade motivadora
de toda a intriga. É um olhar que apenas passeia (rapidamente),
que não pára, que quer logo a imagem a seguinte. Um
olhar de fora que não se mistura; um olhar sempre de
passagem. O Jardineiro Fiel está mais interessado
no movimento da narrativa e pouco atento à percepção
dos lugares.
A câmera em constante movimento e os cortes em grande
quantidade, porém, são opções tão evidenciadas por Meirelles
que colocam ruídos na descrição objetiva. Não estamos em um drama transparente feito
para extrair lágrimas com recursos dramáticos pouco
sutis. O enredo é tão importante quanto a forma, ali
clamando por ser percebida. É difícil apreender a história
apenas, sem perceber as marcas de estilo, que, às vezes
são tão notáveis, tão malabarísticas, que revelam certo
auto-deslumbramento com a habilidade. Meirelles e Cesar
Charlone (fotógrafo do filme) não perdem a oportunidade
de aproveitar planos de efeito plástico, coreografias
de câmera vistosas, um formalismo de composições velozes.
Querem a beleza de uma luz, de um enquadramento, apenas
pela beleza. Em alguns momentos, nada comunicam. Mas
não deixa de ser interessante como o exibicionismo visual-narrativo,
presente em Domésticas e Cidade de Deus,
sobrepõe a personalidade do diretor à produção. É notável
como alguns trechos estão na tela quase para satisfazer
o desejo do cineasta de brincar com a imagem.
Em uma das sequências, quando a câmera sai de um campo
de golpe aparentemente distante da miséria e faz uma
panorâmica para a esquerda, revelando a vizinhança miserável,
temos uma “sacada” que, ao contrário do formalismo autista-brincalhão
de outros momentos, encontra significação. Plano de
síntese dialética, com montagem no plano-sequência.
Pode soar óbvio se descrito, mas, na imagem, tem o efeito
de um descortinamento, sem perder a grandiloquência
estilística. Cineasta do excesso e dos artifícios auto-referenciais,
mesmo quando transita pelo realismo, Meirelles paga
o preço de seu cinema: nem sempre concilia a opção visual-narrativa
com o material, mas voa alto quando encontra o ponto.
Talentoso, sem dúvida, é. Mas nem sempre suas grandes
sequências estão no ponto adequado ou no filme certo.
O Jardineiro Fiel começa pelo meio: o diplomata
inglês Justin Quayle (Ralph Fiennes, irrepreensível)
recebe notícia da morte de sua esposa, Teresa Quayle
(Rachel Weisz, de incrível carisma), uma militante política
de língua solta, que, ao contrário do marido (conciliador),
é adepta da exposição de conflitos. Corte para o começo
da relação, para o desenvolvimento dela, até se chegar
à morte da moça. Surgem duas questões: Teresa pode ter
sido executada pelos alvos de suas denúncias e podia
ter um caso com um colega nativo de militância. Justin
vai investigar a suposta queima de arquivo e o possível
enfeite na testa. Viverá um processo de tomada de consciência
ao contato com o espírito contestador e mobilizador
da esposa morta.
Ela agia em nome de transformações e comprou briga contra
poderes econômicos. Envolveu-se nos problemas locais
e pagou com a vida por essa opção. Ele fazia vista grossa.
Queria manter distância de questões quenianas. Se não
pode resolver todos os problemas, acha Justin, é melhor
nem colocar a mão no vespeiro. Teresa não acreditava
que, na impossibilidade da solução total, o caminho
é a passividade. O filme tratará, sobretudo, da reação
dele à banalização da vida na utilização dos quenianos
como cobaias de fabricantes de remédio. Ele passa a
agir em vez de conciliar. A alienação de Justin está
na dramaturgia. Sabemos sempre mais que esse personagem,
por isso, quando ele se conscientiza “na marra”, apenas
chega ao nível de nossas informações para, depois, avançar
conosco em novas descobertas (confirmação de desconfianças
já plantadas pelo filme). Sua tomada de partido, substituindo
a cômoda política conciliatória pela do confronto, também
terá um preço. Mobilização e responsabilidade. A transformação
do personagem o coloca em um impasse, em um beco sem
saída, tendo de se sacrificar pelo bem da comunidade
– uma das bases do heroí trágico e mártir.
Justin é o avesso de Buscapé: diante da injustiça, ele
age e se sacrifica. Já o fotógrafo aprendiz de Cidade
de Deus, ao ter a chance de contribuir com sua parte
para a justiça, prefere a solução menos complicada para
ele. Há uma diferença, claro: Buscapé mora no próprio
meio desgradado, ao passo que Justin, como ele mesmo
diz, não tem casa fixa. Sua residência era a esposa.
O amor como raiz, não os lugares geopolíticos. Essa
nova configuração de raiz-lar retoma um ideal de pertencimento
a todos os lugares, com a consequente responsabilidade
política por todas as questões da humanidade. Se antes
o personagem não queria se envolver com os problemas
quenianos por não serem dele, do país dele e da alçada
de possibilidades de solução à sua disposição, mais
tarde ele tomará as dores do povo, porque, afinal, aquele
povo pertence a um povo anterior, a humanidade. E uma
ética política de relações com o homem não pode se limitar
a delimitações de fronteiras e de Estados. O Jardineiro
Fiel incorpora essa globalização da ação transformadora
na conscientização do personagem. Justin age porque
tem a liberdade de não ser dali – ao contrário de Buscapé
- e isso dá-lhe a obrigação moral de um lugar desconhecido
ser também o seu lugar.
Essa conscientização, maior que a denúncia (contra a
indústria farmacêutica), não é emocional. Meirelles
estabelece um processo racional (e não sensorial). Oferta
entendimento e compreensão, não captura por emoções
intensas. Nem as perseguições de carro, a iminência
do perigo em todo canto, a intriga com algum mistério,
a interrupção e a lembrança de um laço amoroso, nada
disso é para emocionar. O Jardineiro Fiel é até
brando em sua carga dramática e grandiloquente em seu
exibicionismo de estilo. Essa característica pode ser
entendida como uma prova ainda circunstancial de uma
incrível habilidade do diretor brasileiro para impor
seu olhar nessa produção de encomenda.
Ele pode filmar em inglês, com capital britânico e paisagens
do Quênia. A articulação das imagens, porém, tem sua
característica. Não adianta especular sobre qual o percentual
de autoralidade de Fernando Meirelles em O Jardineiro
Fiel; O Jardineiro Fiel, na tela, é filme
de Meirelles. Essa não é opinião corrente, mas, até
o momento na avaliação desse crítico, talvez seja seu
melhor filme.
Cléber Eduardo
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