O JARDINEIRO FIEL
Fernando Meirelles, The constant gardener, Inglaterra, 2005

O Jardineiro Fiel, independentemente de não ser essa a versão 100% Meirelles, como ele antevia antes da filmagem, tem sua personalidade estilística lá, na dinâmica de câmera e de cortes, derivados do estilo apresentado em Domésticas e desenvolvido em Cidade de Deus. Essa dinâmica “fernandomeirelliana” é a da multiplicidade dos planos e da curta duração da maioria deles – algo já tratado por Ruy Gardnier em Contracampo. Meirelles é um cineasta que, para amplificar o tempo dramático (o período de horas, dias, meses da ação narrada), encurta o tempo dos enquadramentos. Trabalha com pequenas e longas elipses, sempre com uma narrativa acelerada, que vira logo a página porque o relato tem de avançar.

Essa agilidade pode ser adequada em alguns momentos, mas não quando se transita pelos espaços públicos quenianos. Meirelles não faz observação dos espaços, tampouco instala o olhar nos ambientes. As imagens de “revelação” de um estado de coisas e do cotidiano daquele universo social e geográfico são sempre apressadas e não nos colocam em contato mais direto com a realidade motivadora de toda a intriga. É um olhar que apenas passeia (rapidamente), que não pára, que quer logo a imagem a seguinte. Um olhar de fora que não se mistura; um olhar sempre de passagem. O Jardineiro Fiel está mais interessado no movimento da narrativa e pouco atento à percepção dos lugares.

A câmera em constante movimento e os cortes em grande quantidade, porém, são opções tão evidenciadas por Meirelles que colocam ruídos na descrição objetiva.  Não estamos em um drama transparente feito para extrair lágrimas com recursos dramáticos pouco sutis. O enredo é tão importante quanto a forma, ali clamando por ser percebida. É difícil apreender a história apenas, sem perceber as marcas de estilo, que, às vezes são tão notáveis, tão malabarísticas, que revelam certo auto-deslumbramento com a habilidade. Meirelles e Cesar Charlone (fotógrafo do filme) não perdem a oportunidade de aproveitar planos de efeito plástico, coreografias de câmera vistosas, um formalismo de composições velozes. Querem a beleza de uma luz, de um enquadramento, apenas pela beleza. Em alguns momentos, nada comunicam. Mas não deixa de ser interessante como o exibicionismo visual-narrativo, presente em Domésticas e Cidade de Deus, sobrepõe a personalidade do diretor à produção. É notável como alguns trechos estão na tela quase para satisfazer o desejo do cineasta de brincar com a imagem.

Em uma das sequências, quando a câmera sai de um campo de golpe aparentemente distante da miséria e faz uma panorâmica para a esquerda, revelando a vizinhança miserável, temos uma “sacada” que, ao contrário do formalismo autista-brincalhão de outros momentos, encontra significação. Plano de síntese dialética, com montagem no plano-sequência. Pode soar óbvio se descrito, mas, na imagem, tem o efeito de um descortinamento, sem perder a grandiloquência estilística. Cineasta do excesso e dos artifícios auto-referenciais, mesmo quando transita pelo realismo, Meirelles paga o preço de seu cinema: nem sempre concilia a opção visual-narrativa com o material, mas voa alto quando encontra o ponto. Talentoso, sem dúvida, é. Mas nem sempre suas grandes sequências estão no ponto adequado ou no filme certo. 

O Jardineiro Fiel começa pelo meio: o diplomata inglês Justin Quayle (Ralph Fiennes, irrepreensível) recebe notícia da morte de sua esposa, Teresa Quayle (Rachel Weisz, de incrível carisma), uma militante política de língua solta, que, ao contrário do marido (conciliador), é adepta da exposição de conflitos. Corte para o começo da relação, para o desenvolvimento dela, até se chegar à morte da moça. Surgem duas questões: Teresa pode ter sido executada pelos alvos de suas denúncias e podia ter um caso com um colega nativo de militância. Justin vai investigar a suposta queima de arquivo e o possível enfeite na testa. Viverá um processo de tomada de consciência ao contato com o espírito contestador e mobilizador da esposa morta.

Ela agia em nome de transformações e comprou briga contra poderes econômicos. Envolveu-se nos problemas locais e pagou com a vida por essa opção. Ele fazia vista grossa. Queria manter distância de questões quenianas. Se não pode resolver todos os problemas, acha Justin, é melhor nem colocar a mão no vespeiro. Teresa não acreditava que, na impossibilidade da solução total, o caminho é a passividade. O filme tratará, sobretudo, da reação dele à banalização da vida na utilização dos quenianos como cobaias de fabricantes de remédio. Ele passa a agir em vez de conciliar. A alienação de Justin está na dramaturgia. Sabemos sempre mais que esse personagem, por isso, quando ele se conscientiza “na marra”, apenas chega ao nível de nossas informações para, depois, avançar conosco em novas descobertas (confirmação de desconfianças já plantadas pelo filme). Sua tomada de partido, substituindo a cômoda política conciliatória pela do confronto, também terá um preço. Mobilização e responsabilidade. A transformação do personagem o coloca em um impasse, em um beco sem saída, tendo de se sacrificar pelo bem da comunidade – uma das bases do heroí trágico e mártir.

Justin é o avesso de Buscapé: diante da injustiça, ele age e se sacrifica. Já o fotógrafo aprendiz de Cidade de Deus, ao ter a chance de contribuir com sua parte para a justiça, prefere a solução menos complicada para ele. Há uma diferença, claro: Buscapé mora no próprio meio desgradado, ao passo que Justin, como ele mesmo diz, não tem casa fixa. Sua residência era a esposa. O amor como raiz, não os lugares geopolíticos. Essa nova configuração de raiz-lar retoma um ideal de pertencimento a todos os lugares, com a consequente responsabilidade política por todas as questões da humanidade. Se antes o personagem não queria se envolver com os problemas quenianos por não serem dele, do país dele e da alçada de possibilidades de solução à sua disposição, mais tarde ele tomará as dores do povo, porque, afinal, aquele povo pertence a um povo anterior, a humanidade. E uma ética política de relações com o homem não pode se limitar a delimitações de fronteiras e de Estados. O Jardineiro Fiel incorpora essa globalização da ação transformadora na conscientização do personagem. Justin age porque tem a liberdade de não ser dali – ao contrário de Buscapé - e isso dá-lhe a obrigação moral de um lugar desconhecido ser também o seu lugar. 

Essa conscientização, maior que a denúncia (contra a indústria farmacêutica), não é emocional. Meirelles estabelece um processo racional (e não sensorial). Oferta entendimento e compreensão, não captura por emoções intensas. Nem as perseguições de carro, a iminência do perigo em todo canto, a intriga com algum mistério, a interrupção e a lembrança de um laço amoroso, nada disso é para emocionar. O Jardineiro Fiel é até brando em sua carga dramática e grandiloquente em seu exibicionismo de estilo. Essa característica pode ser entendida como uma prova ainda circunstancial de uma incrível habilidade do diretor brasileiro para impor seu olhar nessa produção de encomenda.

Ele pode filmar em inglês, com capital britânico e paisagens do Quênia. A articulação das imagens, porém, tem sua característica. Não adianta especular sobre qual o percentual de autoralidade de Fernando Meirelles em O Jardineiro Fiel; O Jardineiro Fiel, na tela, é filme de Meirelles. Essa não é opinião corrente, mas, até o momento na avaliação desse crítico, talvez seja seu melhor filme.

Cléber Eduardo