PARALELAS E TRANSVERSAIS
A Marca do Terrir, de Ivan Cardoso
Um Lobisomem na Amazônia, de Ivan Cardoso


A Marca do Terrir, Brasil, 2005
Um Lobisomem na Amazônia, Brasil, 2005


Zero em comportamento

Ivan Cardoso apresentou no Festival do Rio de 2005 dois novos longas-metragens. Um deles foi A Marca do Terrir, espécie de cine-coletânea autobiográfica parcial, apresentando trechos restaurados de seus antigos filmes em Super-8, filmados nos anos 60 e 70; o outro foi Um Lobisomem Na Amazônia, produzido por Diler Trindade e protagonizado por estrelas da televisão.

O cinema é múltiplo, não é um só – não há regra determinada; cada filme define suas próprias regras, seja a partir de filmes anteriores (no caso do cinema de gênero, por exemplo), seja dentro do esquema novo que criar (em casos únicos do tal cinema de invenção). E é curioso notar que os cinemas que Ivan Cardoso se propõe a fazer têm espaços problemáticos nos dias de hoje – incomoda a muitos nas platéias o tom gozador na apreensão dos gêneros, característico dos seus filmes, tanto em super-8 como em 35mm e Dolby Stereo; parece malfeito. É justamente este o ponto: seus filmes de horror querem divertir não pelo medo mas pelo humor, e esse modo de provocar o interesse do público apresenta algumas evidências de cópia malfeita, coisa que, como se sabe, não está na moda atualmente. E este aspecto é evidente em ambos os filmes, cada um a seu modo.

Mas não é preciso ainda falar das flores? E não é bem conhecida a conversa sobre as flores do lodo? Pois o problema sempre se tratou de compreender o lodo e enxergar onde está a flor – com o perdão das metáforas óbvias.

Ao longo de um festival de cinema que apresenta tantas estréias nacionais como este do Rio, há sempre uma certa expectativa de descobrir os mais fortes sinais de vida, ou de arte; descobrir onde estão as tais flores, enfim - seja em espaços, estruturas e esquemas nobres ou plebeus.

No meio de tanta pose, Ivan Cardoso se divertiu e nos divertiu no lodaçal, ele que é o discípulo mais explícito da tradição chanchadesca.

Da beleza e da melancolia em se olhar para o passado:

A Marca do Terrir é um filme que não é exatamente um filme – talvez seja melhor defini-lo como um panorama, feito de apresentação, encerramento e, no meio disso, vários pequenos filmes que se sucedem. Trata-se, como já disse, de uma cine-coletânea-autobiografia parcial de Ivan Cardoso, feita a partir da sua produção de filmes de todo tipo em Super-8: curtas, longas, documentários, ficções e materiais de arquivo, produzidos nas décadas de 60 e 70. Além de mostrar boa parte do elenco bem conhecido da turma mais próxima da cultura dita marginal ou udigrudi do período (Sganzerla, Torquato Neto, Mojica, Caetano Veloso, Wally Salomão e vários outros), A Marca do Terrir tem a curiosidade de ser um filme de um realizador que fala sobre si na terceira pessoa e toma para si a tarefa de apresentar e defender sua produção, seja através de um longo elogio feito por Haroldo de Campos, seja por sua própria fala, já no final. O aspecto descaradamente egóico torna tudo mais divertido, no seu tom entre confessional e auto-mitificador.

Como já disse o sábio amigo Remier Lion, depois de uns trinta anos qualquer filme fica bom. E os super-8 de Ivan Cardoso agora podem ser vistos com o melhor som possível para os dias de hoje, em salas de cinema, registrando imagens muito bonitas em película. Alguns deles não são exibidos de forma plenamente compreensível – mas esta reunião possível dos filmecos vale a viagem. É surpreendente, por exemplo, o curta Nem Freud Explica, em que dois garotos de rua tentam se masturbar para a câmera em frente à praia, vestidos com paletozinhos, e, crianças que ainda são, não conseguem se estimular nem um pouco; de certo modo, o clima de uma época parece vir à tona – com meninos de rua punheteiros e broxas. São muito bonitas as imagens de Surucucu Neville, o making of feito por Ivan do filme Surucucu Catiripapo, de Neville d’Almeida (filme que está até hoje desaparecido, vale notar), com as atrizes em cenas à flor da pele. Os trechos apresentados do longa Nosferatu no Brasil mostram o vampiro ultra-melancólico, interpretado por Torquato Neto, em seqüências contínuas de ataque a jovens indefesas.

Mas, mais do que um apontamento das suas melhores partes, A Marca do Terrir provocou-me um sentimento próprio ao longo de toda sua apresentação, certamente relacionado, a seu modo, à frase espirituosa do Remier sobre os filmes ficarem bons depois de ficarem antigos – mas não só isso. O cinema de A Marca do Terrir é avacalhado e esculhambado, e isso é muito bom – isso dá força a este filme. Não é apenas o retrato do passado que o torna um filme emocionante, mas sobretudo o bem-vindo incômodo que a encantadora liberdade criativa e visual dessa reunião de filmes em Super-8 provoca quando aparece em contraponto a um cinema de bom acabamento, defendido na prática e na palavra pelo sistema estabelecido na maior parte das produções brasileiras. Seja quase-filme, supra-filme, auto-filme ou multifilme, apresenta aquilo que Ivan Cardoso tem de melhor, essa vontade de fazer cinema num certo tom que misture a transgressão (neste filme bem mais do que em outros) e a gozação.Com toda a sua egolatria e auto-mitificação – e também por causa disto – A Marca do Terrir se faz divertido e incrivelmente bonito em meio ao visual tosco e charmoso do Super-8, às narrativas confusas e às atuações... marcantes, às atuações marcantes. Uma parte do seu todo consegue transmitir um clima jovem, de vontade do risco, enquanto a outra parte traz um tom de revisão que não tem como não soar melancólica nos dias de hoje, nesta época de produções que tanto temem correr riscos.

Por esta e por outras razões, A Marca do Terrir é revitalizante. Com certeza é um filme que pode instigar a qualquer um, mas não escapei de imaginar que ele precisa ser bastante visto pelo nosso mundaréu de gente jovem que pretende trabalhar com cinema (mais do que vários clássicos por aí). Poderia ser mostrado para os alunos do primeiro período das novas turmas de escolas de cinema – sobretudo porque A Marca do Terrir e o que essas turmas irão produzir têm mais semelhanças entre si do que com O Encouraçado Potemkin (curiosamente, também exibido no Festival do Rio).

The vampire of Cineland

Enquanto A Marca do Terrir teve exibições discretas em salas menores (sua sessão na sala 3 do Espaço Unibanco ficou longe da lotação, ao contrário dos muitos filmes exibidos no Odeon), o novo filme produzido por Diler Trindade gerou um divertido evento no início da madrugada de um fim de semana do festival, coisa que se fazia notar desde a chegada ao cinema: na porta do Odeon, duas belas amazonas, com seus trajes selvagens, recepcionavam os espectadores. O tal do terrir saía da tela, no melhor estilo dos produtores dos filme B a cujas atmosferas Um Lobisomem na Amazônia remete – mais para William Castle do que para Roger Corman. Em dois momentos da sessão (um na platéia, outro no balcão), um lobisomem semelhante ao das telas invadiu a sala e, em cada um deles, raptou uma jovem sentada numa cadeira, junto a outros espectadores. Na tela, três lindas moças (Danielle Winits, Djin Sganzerla e Karina Bacchi) e dois rapazes bobocas resolvem ir à Amazônia para experimentar o chá do Santo Daime, tendo a ajuda de um guia (Evandro Mesquita). Enquanto isso, um cientista maluco (Paul Naschy) faz experiências criminosas, auxiliado por seu servo animalesco (Guará Rodrigues) e por uma raça de Amazonas. E, ao mesmo tempo, um lobisomem mata diversas pessoas na região, provocando uma investigação conduzida por um delegado (Tony Tornado) e um biólogo (Nuno Leal Maia).

Os atores sabem dar o tom do filme. Se os jovens cumprem bem o papel tradicional do grupo de ingênuos, com lindas garotas e rapazes bobocas, e Paul Naschy demonstra com competência como levar a sério um personagem absurdo, típico do cinema com que Um Lobisomem na Amazônia se relaciona parodicamente, as performances dos outros – sobretudo Nuno Leal Maia – fazem aparecer no filme algumas características raras nos dias de hoje, alguns tons que soam dissonantes atualmente. É o tom do humor chanchadesco, paródico, sendo bem realizado por atores de talento - é como um Matar ou Correr (de Carlos Manga, com Oscarito, Otelo e Lewgoy) do gênero terrir de Cardoso. É necessário o elogio: Evandro Mesquita, Guará, Tornado e Leal Maia têm momentos realmente iluminados – além da participação fugaz e inesquecível de Sidney Magal, a que nenhuma descrição faria jus. Uns poucos momentos confusos, uns vários personagens desvairados e umas tantas situações mal-resolvidas não tiram o brilho dessa diversão. Num panorama de muita caretice, o desrespeito desse filme às convenções do bom acabamento é muito bem-vindo.

***

E foi assim os dois filmes que Ivan Cardoso apresentou no Festival do Rio de 2005 acabaram sendo os mais interessantes longas brasileiros de ficção desse mesmo Festival, com seus Super-8 remontados e ampliados e com suas Amazonas de porta de cinema.


Daniel Caetano