OS IRMÃOS GRIMM
Terry Gilliam, Brothers Grimm, EUA/República Tcheca, 2005

Que Terry Gilliam é um brincalhão, com um humor um tanto quanto peculiar, qualquer um que conheça um pouquinho da história do grupo inglês Monty Python (no qual Gilliam era o único membro norte-americano) já sabia. E mais: qualquer um que acompanha sua (errática) carreira como cineasta depois do fim do grupo, também poderia atestar. Indo da extravagância que quase afundou sua carreira de As Aventuras do Barão Munchausen aos relativos sucessos de O Pescador de Ilusões e Os Doze Macacos, o que nunca muda no cinema de Gilliam é uma paixão por tudo aquilo que mistura realidade e fantasia, pelos limites fluidos entre uns e outros. Não se poderia pensar em ninguém mais adequado, portanto, para trazer para a tela esta “biografia fantasiosa” dos irmãos Grimm, que mistura os contos de fada pelos quais ficaram famosos (e que aparecem o tempo todo na forma de citações, algumas mais, outras menos óbvias) com uma suposta carreira de “caçadores de monstros” que eles teriam exercido.

Projeto gilliano por natureza, artisticamente Os Irmãos Grimm partilha de todos os sucessos e fracassos que marcaram a carreira do cineasta: por um lado, o humor inesperado e irônico, que soa ainda mais anacrônico hoje numa super-produção hollywoodiana do que jamais fora o caso antes – num tempo onde os filmes de “aventura” se levam sempre a sério, sempre querendo superar o anterior como o “mais destruidor”, “o mais emocionante”. Já o prazer de Gilliam vem, mais do que tudo, do low-file, e seus efeitos visuais quase sempre parecem muito com os próprios truques que os irmãos Grimm aplicavam, como vemos na inspirada primeira cena de intervenção dos dois contra uma “bruxa”. Os Irmãos Grimm, em seus sets claramente falsos e reconstituição histórica claramente “de filme”, lembra talvez mais do que a pujança das superproduções que fez em Hollywood, o seu primeiro filme pós-Python, a pequena pérola Os Bandidos do Tempo.

Abunda ainda, no filme, o humor igualmente cáustico de Gilliam, que também parece igualmente anti-Hollywood. Um lado paródico, de quem não leva muito a sério seu relato, de quem vê o cinema como uma indústria de sonho e brincadeira, volta várias vezes no filme, inclusive por um viés metalinguístico que inclui interrupções da trilha sonora pelos personagens ou frases do tipo “nós podemos dar um final feliz” ou “eu precisava saber como era isso (beijar a mocinha) antes que a história terminasse”. Este humor é encarnado no filme especialmente na presença do mais gilliano dos atores, Jonathan Pryce (quem não lembra dele como o quixotesco protagonista de Brazil – o Filme), que tem o descaramento de fazer um vilão francês que, ao morrer, solta a seguinte pérola: “a slice of quiche sure would be nice” (“eu adoraria uma fatia de quiche”); assim como no estupendo personagem de Peter Stormare, o italiano que se deixa levar pelas suas paixões e muda de lado no meio do filme.

Falar da figura de Quixote nos filmes de Gilliam, aliás, chega a ser um lugar-comum que, além de atravessar todos os seus filmes (Robin Williams em O Pescador de Ilusões é o mais óbvio, mas Bruce Willis Os Doze Macacos não passa longe), é o sabido projeto frustrado de sua vida (como aliás fora antes com Orson Welles). Mas não se pode deixar de notar o quixotismo que Jacob Grimm também carrega, contrabalançado pelo irmão, num jogo de personagem são-personagem insano muito bem levado pela dupla Heath Ledger e Matt Damon – e no qual, claro, ao final Gilliam pende a balança para o lado do seu Quixote.

Assistir a Os Irmãos Grimm é, portanto, um prazer a ser dividido por quem aprecie esta propensão ao exagero, ao humor esquisito e sempre inteligente de Gilliam. Significa também estar preparado para acompanhar um diretor que não se importa muito com a história e o ritmo em que ela é contada, que por isso perder algumas vezes as rédeas da narrativa, e que finalmente parece encenar algumas cenas por pura obrigação de dar continuidade à história. Mas, quando ele se diverte de fato, é impossível não se divertir com ele. E ter o prazer de ver um cineasta tão “à moda antiga” enfiado numa Hollywood tão cada vez menos “romântica”.

Eduardo Valente