Que Terry Gilliam é um brincalhão,
com um humor um tanto quanto peculiar, qualquer um que
conheça um pouquinho da história do grupo inglês Monty
Python (no qual Gilliam era o único membro norte-americano)
já sabia. E mais: qualquer um que acompanha sua (errática)
carreira como cineasta depois do fim do grupo, também
poderia atestar. Indo da extravagância que quase afundou
sua carreira de As Aventuras do Barão Munchausen
aos relativos sucessos de O Pescador de Ilusões
e Os Doze Macacos, o que nunca muda no cinema
de Gilliam é uma paixão por tudo aquilo que mistura
realidade e fantasia, pelos limites fluidos entre uns
e outros. Não se poderia pensar em ninguém mais adequado,
portanto, para trazer para a tela esta “biografia fantasiosa”
dos irmãos Grimm, que mistura os contos de fada pelos
quais ficaram famosos (e que aparecem o tempo todo na
forma de citações, algumas mais, outras menos óbvias)
com uma suposta carreira de “caçadores de monstros”
que eles teriam exercido.
Projeto gilliano por natureza, artisticamente
Os Irmãos Grimm partilha de todos os sucessos
e fracassos que marcaram a carreira do cineasta: por
um lado, o humor inesperado e irônico, que soa ainda
mais anacrônico hoje numa super-produção hollywoodiana
do que jamais fora o caso antes – num tempo onde os
filmes de “aventura” se levam sempre a sério, sempre
querendo superar o anterior como o “mais destruidor”,
“o mais emocionante”. Já o prazer de Gilliam vem, mais
do que tudo, do low-file, e seus efeitos visuais
quase sempre parecem muito com os próprios truques que
os irmãos Grimm aplicavam, como vemos na inspirada primeira
cena de intervenção dos dois contra uma “bruxa”. Os
Irmãos Grimm, em seus sets claramente falsos
e reconstituição histórica claramente “de filme”, lembra
talvez mais do que a pujança das superproduções que
fez em Hollywood, o seu primeiro filme pós-Python, a
pequena pérola Os Bandidos do Tempo.
Abunda ainda, no filme, o humor igualmente cáustico
de Gilliam, que também parece igualmente anti-Hollywood.
Um lado paródico, de quem não leva muito a sério seu
relato, de quem vê o cinema como uma indústria de sonho
e brincadeira, volta várias vezes no filme, inclusive
por um viés metalinguístico que inclui interrupções
da trilha sonora pelos personagens ou frases do tipo
“nós podemos dar um final feliz” ou “eu precisava saber
como era isso (beijar a mocinha) antes que a história
terminasse”. Este humor é encarnado no filme especialmente
na presença do mais gilliano dos atores, Jonathan
Pryce (quem não lembra dele como o quixotesco protagonista
de Brazil – o Filme), que tem o descaramento
de fazer um vilão francês que, ao morrer, solta a seguinte
pérola: “a slice of quiche sure would be nice” (“eu
adoraria uma fatia de quiche”); assim como no estupendo
personagem de Peter Stormare, o italiano que se deixa
levar pelas suas paixões e muda de lado no meio do filme.
Falar da figura de Quixote nos filmes de Gilliam, aliás,
chega a ser um lugar-comum que, além de atravessar todos
os seus filmes (Robin Williams em O Pescador de Ilusões
é o mais óbvio, mas Bruce Willis Os Doze Macacos
não passa longe), é o sabido projeto frustrado de sua
vida (como aliás fora antes com Orson Welles). Mas não
se pode deixar de notar o quixotismo que Jacob Grimm
também carrega, contrabalançado pelo irmão, num jogo
de personagem são-personagem insano muito bem levado
pela dupla Heath Ledger e Matt Damon – e no qual, claro,
ao final Gilliam pende a balança para o lado do seu
Quixote.
Assistir a Os Irmãos Grimm é, portanto, um prazer
a ser dividido por quem aprecie esta propensão ao exagero,
ao humor esquisito e sempre inteligente de Gilliam.
Significa também estar preparado para acompanhar um
diretor que não se importa muito com a história e o
ritmo em que ela é contada, que por isso perder algumas
vezes as rédeas da narrativa, e que finalmente parece
encenar algumas cenas por pura obrigação de dar continuidade
à história. Mas, quando ele se diverte de fato, é impossível
não se divertir com ele. E ter o prazer de ver um cineasta
tão “à moda antiga” enfiado numa Hollywood tão cada
vez menos “romântica”.
Eduardo Valente
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