A maior parte da filmografia
de John Boorman é de filme históricos. São filmes que
tendem a confundir o espectador porque não seguem a
abordagem usual do cinema comercial sobre a História,
nem os caminhos mais habituais do cinema dito de arte
para lidar com tema. A História nos filmes de Boorman
costuma nos chegar a partir de um filtro anti-naturalista
que, geralmente (mas nem sempre), tem um viés mitológico.
Nos últimos vinte anos, Boorman vem centralizando cada
vez mais seus esforços na herança do colonialismo e
as relações do europeu com o Terceiro Mundo. É como
se Boorman estivesse à procura de purgar algum tipo
de pecado original cometido pelo homem branco séculos
atrás, no começo da expansão colonial.
Mais do que qualquer outro filme do cineasta, Em
Minha Terra segue à perfeição tal descrição, o que
pode explicar porque o filme deu errado. Estamos diante
de um destes filmes que o critico australiano Adrian
Martin se refere como filmes centrais secretos,
trabalhos onde, ao lidar de forma mais direta com elementos
que costumam formar o subtexto central de boa parte
da sua obra, o cineasta acaba produzindo um filme esteticamente
mais pobre que o habitual, como se a transformação do
subtexto em texto levasse-o a uma camisa de força criativa.
No papel Em Minha Terra parece, a um fã de Boorman
bastante promissor: logo após a eleição de Mandela,
jornalista americano (Samuel L. Jackson) vai à África
do Sul acompanhar a comissão que investiga crimes cometidos
durante o apartheid. Esta comissão propõe que
aqueles que se dispuserem a confessar, puderem provar
que estavam seguindo ordens e mostrarem remorsos, serão
perdoados – o que, para o jornalista, é só uma forma
de garantir que um bando de brancos racistas escapem
da prisão. O didatismo imposto pelo roteiro pede que
Jackson e Juliette Binoche assumam a ingrata função
de interpretar personagens excessivamente simbólicos,
o que não seria em si um problema, já que Boorman claramente
se interessa pela situação como um ensaio sobre a culpa,
e o grande mérito do filme é justamente tratar do tema
e da herança do apartheid de maneira nunca redutora.
Só que a abordagem do cineasta rapidamente se torna
confusa.
O problema de Em Minha Terra é de tom. O filme
soa ao mesmo tempo bastante convencional e travado dentro
deste formato filme de culpa liberal. Mais naturalista
do que o hábito do cineasta, ao mesmo tempo que muito
didático para existir como drama. O mergulho primitivo
que costuma marcar os melhores trabalhos de Boorman
se esboça, mas nunca se completa. O filme soa estranhamente
desorganizado, perdido entre uma abordagem direta ou
indireta do seu material, entre uma representação às
claras ou simbólica dos sentimentos tortuosos do seu
personagem central. Por exemplo, Brendan Gleeson tem
alguns momentos fortes como um torturador que Jackson
entrevista, mas suas cenas são inseridas sem ordem cronológica
no filme, reduzindo seu impacto e soando simplesmente
confusas, já que Boorman nunca as a apresenta de maneira
a permitir que essas quebras na narrativa possam funcionar
junto ao espectador.
Diz muito sobre a indecisão no centro de Em Minha
Terra que o filme funcione de forma mais potente
nos seus momentos mais diretos (as cenas das confissões
nas comissões tiradas diretamente dos arquivos) e nos
mais indiretos (quando a paisagem sul-africana que Boorman
filma atinge um pouco da força que vemos nos seus melhores
trabalhos). Nessa incerteza, John Boorman termina sucumbindo
à culpa inicial que colocara em perspectiva de forma
muito melhor resolvida em filmes anteriores.
Filipe Furtado
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