A arte e o mundo (traços de um desconhecido)
O cinema, na maioria das vezes, não é
tratado como elemento na cadeia da história da
arte, não é muito conectado com as questões
que movem os que trabalham mais com o campo plástico
e de representatividade imagética. No entanto,
apesar de extremamente multifacetada e maleável,
a forma cinematográfica está sim ligada
às formas de expressão humana que a precederam.
E sua conexão complicada com a técnica
e a ciência não a afasta disso, muito pelo
contrário, a faz mergulhar irremediavelmente
na história de precedentes arqueológicos
insuspeitos, para os quais a arte era um ofício
de investigação do mundo, por um lado,
e utilitário, por outro. Tendo isso em mente,
torna-se no mínimo curiosa a abordagem mais corrente
da cultura fílmica mundial. A divisão
entre cinema comercial e cinema de arte, entre cinema
ficcional e cinema documentário, entre cinema
e vídeo, entre cinema desenvolvido e cinema subdesenvolvido,
entre cinema ocidental e cinema oriental. Costumamos
atribuir características expressivas a cada uma
destas "classificações" e nos
relacionarmos com os filmes de acordo com a roupagem
que parece mais lhes convir. Mas talvez deixemos, com
isso, de enxergar outros tipos de conexões entre
eles e o mundo do qual derivam... E a consciência
do caráter de representatividade que o filme
carrega também parece ser extremamente pré-direcionada
e não suficientemente alargada, em todas as suas
implicações – significantes, circunstanciais,
relativas à natureza do meio e ao contato com
um público específico.
Os cinemas dos países asiáticos, apresentados
com vigor ao mundo ocidental em festivais, na janelinha
que abrem para culturas um tanto desconhecidas da nossa
educação eurocêntrica, freqüentemente
causam-nos algo entre fascínio e incompreensão,
entre adesão e distanciamento. Reverenciados
como "belos" e "sensíveis",
categorias privilegiadas no nosso entendimento de objeto
artístico, eles raramente conseguem se livrar
satisfatoriamente da sombra da curiosidade antropológica,
da atração pelo exotismo e de serem pesadamente
referendados a um entendimento prévio do uso
do meio cinematográfico. E como as relações
interculturais são um terreno minado e perigoso,
em suas economias de trocas e influências, buscar
entender como objetos oriundos de culturas desconhecidas,
que constituem em certa medida artigos transnacionais,
constroem seus processos de significação
e representação e sua relação
com o mundo é entrar num labirinto arriscado,
sem respostas garantidas, mas com a possibilidade de
criar mosaicos fascinantes. Especialmente se derrubarmos
a compartimentalização do nosso olhar,
que enquadra o mundo e o cinema e prescreve nossas relações
com eles. Dito isto, a aventura de percorrer de forma
investigativa e lúdica o que já se conhece
e o que ainda não se conhece ganha novos contornos,
talvez mais estimulantes.
Dos filmes orientais que chegam até nós,
os coreanos são uma novidade mais recente e à
primeira vista apresentam particularidades marcantes,
especialmente no tocante às questões de
representação. Um traço bastante
recorrente é uma certa abstração
narrativa em favor de simbolismos estilizados, desenhados
quase grosseiramente, nos quais os personagens são
peças funcionais retratadas com extremo realismo.
Disto resulta um naturalismo um tanto cru, quem sabe
menos relacionado com o nosso ilusionismo cinematográfico
e mais afeito a estruturas arquetípicas que entoam
narrativas ilustrativas sobre os homens, para os homens.
A naturalidade e espontaneidade do sexo e da violência,
assim como de gestos cotidianos simples, tampouco ecoa
expedientes do neo-realismo ou de outros cinemas modernos
que conhecemos.
Assistindo a um filme como Uma mulher coreana,
de Im Sang-Soo, essas características se evidenciam.
Como um ritual de representação do cotidiano,
observamos o desfile de diversas atividades corriqueiras
dos personagens. Não há um trabalho de
identificação público-personagem
nem um aprofundamento psicológico. Não
há nem mesmo dramatização narrativa.
O que o curso do filme parece querer provocar são
efeitos. Efeitos oriundos da exposição
àquelas imagens. Daí a "ilustração"
ser o caráter predominante. A um limite, todos
os feitos parecem estar simbolizando sensações
e sentimentos, quando não apenas reproduzindo-os.
Vemos o relacionamento de Sooin, filho adotivo, com
seus pais, vemos o flerte de sua mãe, Ho-jeong,
com o vizinho jovem e o caso de seu pai, Young-jak,
com a fotógrafa. Vemos diversas cenas de sexo,
algumas mais satisfatórias do que outras, vemos
Sooin questionar a mãe sobre ela ter-lhe revelado
sua condição de adotado, assim como sua
relação muito próxima e afetuosa.
E, em meio a coisas como escovar os dentes, tomar banho,
dançar, andar de bicicleta, trabalhar, gozar
e se irritar, temos a morte. O corpo com dias contados
do pai de Young-jak, os esqueletos dos que sofreram
torturados com a ditadura. E, também, o ponto
culminante deste "tracejo" de pessoas, desejos
e pulsões, encharcados de um batimento cardíaco
que parece soar como um metrônomo surdo, temos
a cena do "assassinato" de Sooin.
De um realismo quase absurdo, o grande choque que o
acontecimento traz é majoritariamente por sua
falta de encaminhamento prévio e por se dar de
forma tão súbita quanto violenta. Acompanhamos
ao som de uma música de compasso animado, aquele
estranho bêbado subir um prédio inacabado,
carregando o menino – descontraído, chupando
um pirulito – como uma trouxa. Ao chegar no topo, Sooin
pergunta: "o senhor não vai me jogar, né?!".
E mal terminada a frase, o vemos sendo atirado prédio
abaixo. Ficamos com o homem que chora e grita desesperadamente
no lado esquerdo do quadro, enquanto um tilt
revela o corpo ensangüentado da criança
lá embaixo. Havíamos presenciado sua encantadora
espontaneidade infantil e sua envolvente relação
carinhosa com a mãe... Mas não há
drama; e a estupefação é tanta
que quase não acreditamos que o filme irá
reconhecer tal fato. Um pouco como se ele pudesse eliminar,
cuspir fora, estes planos, como quem sacode a cabeça
para espantar um devaneio indesejado. Mas, em seguida,
vemos Ho-jeong no hospital indo ver o corpo do filho.
E, ao levantar o lençol que o cobre, sua reação
imediata é vomitar. Como talvez qualquer um de
nós fizesse. Mas como dificilmente vemos tal
situação representada. Pois que além
de ser representativa, esta é uma imagem visceral.
E, por outro lado, além de existir narrativamente,
ela constitui uma abstração.
Abstrata como uma caricatura, que isola e exalta traços
proeminentes e na qual o importante é reconhecer
e, não, entender; e visceral com a intensidade
de comportamentos humanos movidos a funções
orgânicas, que se manifestam sem pedir licença,
no dia-a-dia de todos. Combinação inusitada,
esta forma parece pedir do espectador um outro tipo
de interação – talvez o motor maior do
fascínio que ela nos provoca –, um emparelhar-se
com o que acontece (e não um identificar-se,
pois não somos chamados a nos colocar no lugar
dos personagens e, sim, ecoar o que eles fazem e
sentem). Reconhecer traços de existência
comuns e se entreter, sentir prazer, com este espelhamento
"indireto". O filme ganha um papel quase ritualístico
neste sentido: ele parece integrar a vivência
diária de quem com ele se relaciona constantemente.
No entanto, não com uma função
catártica ou escapista e, sim, como uma ilustração,
reconhecida e admirada como tal. Ilustração
do que nos move: impulsos, desejos, medos, vergonhas,
atitudes, gestos, fluidos e palavras – vida; e sua outra
metade, a morte.
Uma mulher coreana não é um "filme
de costumes", como talvez se esperasse de um título
como este, um "bom retrato" da Coréia,
no qual se possa "conhecer" os hábitos
e características distintivas dos habitantes
do país – o que talvez tenha sido o grande apelo
do "cinema iraniano", ao despertar uma febre
de adoração, quem sabe apenas porque continha
em suas imagens um povo do qual não tínhamos
imagens. Diferentemente, Im Sang-Soo e outros cineastas
coreanos parecem nos informar muito mais sobre uma arte
coreana. Uma forma coreana de se relacionar com o mundo
e com a representação deste, na qual podemos
até nos arriscar de vislumbrar a resposta dos
destinatários desta representação.
O público, que lá vive e consome cinema
entre outros produtos culturais. E buscar formas de
contato, de intimidade com esta expressividade (para
que um afeto seja possível) e, por fim, de aproximação
com o mundo que a envolve.
Tatiana Monassa
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