Eis
o autêntico "old boy" do cinema coreano:
Im Kwon-Taek, que começou a filmar no iniciozinho
dos anos 60 e já está quase chegando no
filme de número 100 da sua carreira (Haryu
insaeng/La Pègre, de 2004, foi o nonagésimo
oitavo). São quarenta anos de cinema ressoando
na obra de um só diretor, desde aquela que é
considerada a era de ouro do cinema coreano, quando
ele realizou seus primeiros filmes, até o frisson
atual em torno de seus compatriotas. O ocidente demoraria
vinte anos até descobrir Im, exibindo Mandala
(1981) em festivais europeus depois do filme ganhar
o grande prêmio no Hawaii Film Festival. O mínimo
que se pode dizer: se há um diretor a quem a
Coréia deve agradecer por ter sua história
contada em imagens e sons, este é ninguém
mais além de Im Kwon-Taek. Do épico histórico
ao gangsta movie, passando pelo melodrama e pelo
musical, Im vem construindo uma filmografia em que a
espessura social-política e a persistência
da individualidade extrema de uma obra convivem e se
reinventam. Nenhum de seus filmes é mudo à
grande História, mas nenhum de seus filmes lhe
dá tanta atenção assim. É
como um jogo de tangenciamento que, no fim das contas,
nada mais é do que um afundamento no núcleo.
A História da Coréia é o coração
secreto do cinema de Im, ao contrário da maioria
dos outros cineastas coreanos, que não se furtam
a tecer comentários sobre a contextualização
dos filmes ou fazem cinema histórico no sentido
mais acadêmico mesmo mas nenhum deles consegue
ser tão sensível quanto Im ao que representam
as mudanças trazidas pelo decurso do tempo.
O tempo: um cineasta que retrabalha o sentimento histórico
tem de ser um cineasta que retrabalha o tempo. Existe
em La Pègre e Pinceladas de Fogo
(Chihwaseon, 2002, prix de la mise en scène
em Cannes) um domínio das elipses que transforma
o corte seco na maior contingência possível
dentre os procedimentos básicos de montagem.
Para quem está descobrindo tardiamente essa obra,
a primeira grande evidência trazida por um filme
como La Pègre (não só o
mais recente como o mais contundente exemplo nesse sentido)
é a de que Im Kwon-Taek é o grande mestre
das elipses depois de Sergio Leone. A montagem causa-conseqüência
se vê subsumida na poeira de um golpe temporal
de inigualável perspicácia, sem nunca
abrir mão da beleza que a inteligência
narrativa poderia lhe subtrair. Essa beleza para usar
o exemplo de um filme que ficou provisoriamente acessível
ao público brasileiro, já que exibido
no Festival do Rio em 2003 está presente na
inesquecível seqüência de Pinceladas
de Fogo em que uma longa jornada do protagonista
(o pintor Ohwon) é espalhada, por montagem tão-somente
através de cortes secos, ao longo das quatro
estações do ano: a maneira com que o inverno
cede lugar à primavera e esta ao verão
e assim por diante é de uma liquefação
temporal e uma exuberância enigmática que
nos fazem pensar nas diversas razões pelas quais
um cineasta como esse nunca recebeu a devida atenção
de nossos festivais (circuito exibidor nem se fala mais).
Sopyonje, em seqüência ainda mais
incrível, faz a primavera acabar num corte seco,
em meio à peregrinação permanente
dos personagens do filme, com a música que eles
cantam continuando na passagem de uma estação
à outra, e o primeiro plano de inverno é
o suficiente para percebermos que as coisas estão
piorando drasticamente nas suas vidas.
Como nossa pauta frisa em mais de um texto, o cinema
coreano vive hoje uma fase próspera. E o momento
em que se deu conta disso foi na virada do milênio,
com o público lotando as salas de cinema para
ver Shiri Missão Terrorista. Mas é
necessário introduzir aqui um flash-back: em
1993, quando o fim da ditadura sul-coreana era suficientemente
recente para dar ao cinema do país um ar convalescente,
ainda revertendo as bases tanto do erotismo apolítico
dos filmes mainstream dos anos 80 quanto da clandestinidade
da produção independente, com uma nova
geração (Jang Sun-Woo, Park Kwang-Su)
precisando suar para fazer filmes bem pensados no tema
e na forma e mesmo assim conseguir um público
que não ultrapassava os 16% da bilheteria anual,
enfim, há mais de dez anos atrás, sem
os delírios orçamentários que induziriam
o apelido de "Nova Hollywood da Ásia",
Im Kwon-Taek realizou a obra-prima Sopyonje,
que, ao fazer da tradição musical do pansori
uma experiência estética de força
ímpar, estreou com apenas uma cópia em
Seul e permaneceu em cartaz durante meses. Mais de um
milhão de espectadores foi assistir ao filme
naquele ano de 1993. Que não se perca de vista
a magnitude do fenômeno: o mais velho cineasta
coreano em atividade rendia as provas de que era possível
um novo cinema coreano. Nobreza de um mestre.
Chuck Stephens define Sopyonje como uma experiência
estética tão rarefeita quanto provavelmente
seria uma versão de A Noviça Rebelde
dirigida por Hou Hsiao-hsien (ver Film Comment vol.
40/nş 6). De fato, demoramos a perceber a materialidade
do que Im constrói através da saga de
um pai que quer a todo custo fazer da sua filha um fenômeno
de aperfeiçoamento do pansori (canto sinuoso
e sofrido que marca uma profunda tradição
musical na Coréia). A vida de You-bong (o pai)
é marcada por uma angústia parecida com
a do pintor de Pinceladas de Fogo: a busca de
uma forma artística que faça a obra ser
apenas uma continuação dos órgãos
vitais do artista. A energia de vida dos personagens
de Im segue os rumos da atividade a que eles se dedicam
(seja ela a música, a pintura, a máfia
ou a prostituição). Agressividade, sexo,
criação: o tônus é sempre
partilhado pelas diversas frentes de ação.
You-bong, no caso, tem sua angústia aumentada
pelo fato da arte estar ainda passando por um processo
de transferência. Ele precisa extrair dos seus
dois filhos a angústia inspiradora do pansori.
Sua bebedeira constante lhe confere uma instabilidade
de humor, e Im prefere tratá-lo como um personagem
para ser registrado por intensidades muito mais do que
construído por dramas psicológicos. Há
toda uma ambigüidade de sua relação
com a filha, que chega a sugerir incesto, mas sem provas
visuais concretas, e que passa por um envenenamento
que a torna cega (para ela se concentrar no som e cantar
melhor) alguns estudos abordam o sofrimento do corpo
feminino como metáfora da história traumática
coreana, o que em Sopyonje pode ter uma expressão
mais clara na separação do irmão
e sua posterior jornada em busca da irmã.
Filme andarilho que percorre paisagens magnificentes,
Sopyonje discute sobre tradição
e modernidade e novamente "esconde" a história
política coreana sob conflitos individuais. "Sopyonje
é triste, sentimental e doloroso": assim
You-bong define o estilo musical em que sua filha tenta
ser virtuosa e ele poderia estar falando da sua história
de vida. Mais adiante, ele completa: "Não
se deixe enterrar por sua angústia, mas invente
um som que a ultrapasse". Aí se encontra
o ponto de adesão mais forte (e difícil)
a Sopyonje: apaixonar-se por uma arte da angústia.
E essa paixão deve vir através de relatos
em terceira pessoa, o filme quase todo consistindo ou
nos flash-backs do irmão que havia largado
a família, cansado da miséria e da impossibilidade
de atender às exigências estéticas
do pansori (o irmão tocava o tambor enquanto
a irmã cantava, mas a defasagem de talentos enervava
o pai), ou no que contam aqueles a quem chegou a saga
da cantora cega e seu pai obcecado. Pinceladas de
Fogo repete a dose, apresentando-se mais como um
mito propagado pela tradição oral do que
como um relato histórico-biográfico oficial.
Importa menos a figura coagulada que a História
na maioria das vezes imprime do que o banho de fogo
de onde a mitologia tira sua assinatura (o pintor entrando
no forno de cerâmica para se unir à obra
de arte). Sobressai o élan criativo; a arte retratada
não se esgota no objeto, pois Im quer mostrar
o processo, ou seja, em que condições
e sob que temperamento aquela arte veio à tona.
A composição em abismo dos enredos que
são contados no pansori aprofunda e complexifica
o conteúdo histórico tanto em Chunhyang
(2000) quanto em Sopyonje. A espiral política
em La Pègre é de outra natureza,
e chega alimentada pelas elipses e pela construção
em estúdio de uma Seul micro-cósmica,
o que força o protagonista Tae-woong, apolítico
e amoral desde o começo do filme, para dentro
da História mesmo que ele não queira,
pois não sobra espaço para se esconder
do turbilhão de manifestações e
mudanças de rumo político. De um caso
a outro, a destreza de Im está em não
obrigar seus personagens à consciência
política, mas em fazer com que eles mesmo assim
sejam atravessados pelas mudanças históricas.
Ao desfazer o esquema de causa-efeito na montagem, ele
torna a História uma experiência incrivelmente
impalpável em sua constante rotação
em torno dos personagens. Quando ela explode, é
de uma vez só. A violência física
de La Pègre é a pitada de selvageria
que a plástica elegante de Sopyonje e
Pinceladas de Fogo já não escondia.
Nas entrelinhas do esteta convicto, mora uma exacerbação
do gesto justo no arremate da obra, uma fisicalidade
irreprimível, como a tinta violentamente cuspida
ao quadro e que, antes de borrá-lo, dá
a sua força secreta.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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