Eles
caminham na rua, o eixo paralelo ao sentido dos carros;
eles se sentam à mesa, comem e bebem (muito);
eles vão para a cama, com resultados sempre muito
diversos. Naturalmente, os eles mudam o tempo
todo, de filme a filme e dentro do mesmo filme. Essas
são as linhas mestras com as quais Hong Sang-Soo
cria suas obras, uma atrás da outra, com uma
constância que só é superada pela
incrível diferença que ele consegue instalar
em projetos tão aparentemente semelhantes.
Em apenas seis filmes, numa carreira que começou
em meados dos anos 90 (O Dia em Que o Porco Caiu
no Poço, seu primeiro filme, é de
1996), Hong conseguiu criar um cinema que não
parece com nenhum outro no cinema contemporâneo
e parece bastante consigo mesmo: não uma identidade
reiterativa e autocomplacente, mas um verdadeiro estilo
que brota da exploração sistemática
de um mesmo universo, sabendo de forma impressionante
se reinventar a cada filme e manter seu carrossel rodando.
Se aqui se fala em termos de invenção
e autocópia, diferença e repetição,
é o próprio cinema de Hong que parece
pedir que o encaremos dessa forma. Seus filmes são
construídos como uma espécie de teatro
de marionetes em que as situações se repetem
(A Virgem Desnudada por Seus Celibatários),
os mitos tomam corpo em figuras contemporâneas
(Turning Gate), um mesmo passeio é feito
por um homem e uma mulher (O Poder da Província
de Kangwon), a vida repete o cinema (Conto de
Cinema). As frases passam da boca de um personagem
para a do outro, situações diferentes
sugerem paralelismos incríveis e irônicos,
os protagonistas se vêem tratados da mesma forma
que trataram outros. Houvesse uma ênfase decisiva
nisso, estaríamos diante do eterno maneirismo
que persegue o cinema mais recente em sua luta por roteiros
espertinhos. Mas nada disso acontece quando estamos
diante de um filme de Hong Sang-Soo: todas essas viradas
se prestam exclusivamente a suprir uma demanda da dramaturgia,
jogar os personagens em novas situações,
explorar as relações humanas ali onde
elas começam, se desenvolvem e se esgotam.
As musiquinhas de realejo que iniciam e terminam os
filmes já denunciam tudo: estamos diante de uma
grande comédia humana em que a indefinição
dos encontros, o cotidiano e a libido dão todas
as cartas. Em momentos, poderíamos pensar nos
melhores momentos de Woody Allen, só que sem
a necessidade de ficar fazendo piadas a todo instante;
poderíamos igualmente pensar no cinema de desencontros
de Eric Rohmer, certamente o cineasta ao qual Hong parece
mais se assemelhar. Mas ainda assim há uma leveza
de tom, um mistério nos personagens, e sobretudo
uma instabilidade voraz da narrativa que faz com que
as comparações percam logo sua eficácia,
e rapidamente ficamos diante de uma escrita toda própria,
uma estética que parece já ter nascido
madura. É um mundo de personagens de trinta e
poucos anos, sem relacionamentos estáveis, profissionais
liberais, eventualmente trabalhando com cinema (produtor,
diretor, roteirista, ator, ou até argumentista
involuntário), solitários que se encontram
com amigos, são apresentados a belas moças
mais ou menos com as mesmas características (trinta
anos, instabilidade de relação, etc.),
e com isso vai se tecendo um amálgama de relações
e sentimentos que vira a intriga de cada filme. Turning
Gate: um ator é chutado do projeto de filme
que estava se preparando para fazer; sem compromissos,
ele recebe o convite de um amigo e vai para uma cidade
pequena, onde conhece uma dançarina que se apaixona
por ele; os dois têm uma breve relação,
que entra em crise no momento em que ele não
retribui o "eu te amo" numa conversa pós-coito;
no trem, na viagem de volta, o ator encontra uma bela
moça que é sua fã; ele se apaixona
e, quando ela desce do trem para sua cidadezinha, ele
vai atrás até encontrá-la e ter
também uma breve relação; afinal,
ela é casada e não tem a intenção
de abandonar a família. Nunca há uma só
história num filme de Hong Sang-Soo: de uma maneira
muito diferente das narrativas do gênero, a construção
em abismo deriva não de um brainstorm da imaginação
e da matriz leibniziana de uma história dentro
da outra dentro da outra, etc. O abismo de Hong é
o abismo dos encontros fortuitos da própria vida,
tão incrivelmente cheia de acidentes que normalmente
é refratária à ficcionalização.
Em qualquer um de seus filmes, a primeira impressão
é a de que o destino de seus personagens é
tão opaco quanto o nosso próprio, tão
imprevisível quanto o dia de amanhã. A
sensação que deriva disso é de
uma força rara no cinema contemporâneo,
ou no cinema, ponto: o mundo tal como o experimentamos.
Eles caminham na rua, o
eixo paralelo ao sentido dos carros; eles se sentam
à mesa, comem e bebem (muito); eles vão
para a cama, com resultados sempre muito diversos. Naturalmente,
os eles mudam o tempo todo, de filme a filme
e dentro do mesmo filme. Eles, são
também os filmes. Planos fixos na maior parte
das vezes, sublinhando a força dos movimentos
de câmera quando eles aparecem. Movimentos laterais,
para mostrar cenas de "perseguição"
(Turning Gate) ou para revelar que uma personagem
não acompanha mais a outra (A Virgem Desnudada...).
Planos que se repetem de filme a filme, exaustivamente,
como as situações. Mesas repletas de garrafas,
pratos de comida, e personagens que caem de bêbados
tentando se levantar, que ficam em posições
desconfortáveis para roubar um beijo ou que ficam
quietos, escutando o que acontece na mesa ao lado. Deambulação
pelas ruas à procura do que fazer, à procura
de um motel para fazer sexo, ou simplesmente sem procura
nenhuma, debaixo de chuva torrencial ou de uma neve
agradável. Mulheres que gritam de dor pela virgindade
perdida, que gemem e escondem o rosto na hora do sexo,
que falam, ou simplesmente ficam imóveis enquanto
os homens as penetram (domínio em 100% do papai-mamãe
como posição sexual); ou homens que erram
o nome da parceira, brocham, forçam a penetração
mesmo quando não há desejo da parceira,
ou simplesmente consumam o ato. Há toda uma iconografia
desses momentos, a rua, a mesa, a cama, de forma que
tudo parece se decidir nessas três instâncias.
A partilha também invoca os três grandes
regimes de mostração de imagens em planos:
o geral (rua) descreve o ambiente e instala o personagem
nele; o médio (mesa) explora o movimento dos
personagens no espaço, esquadrinhando o tecido
de relações que se prepararam no geral;
e, por fim, o aproximado (cama), que mostra as emoções
e a intimidade, que atribui, através de uma relação
mais próxima com o corpo e o rosto, a individualidade
de cada um dos personagens. O ritual de criar planos
é também o ato de reconhecer os rituais
da vida, e sua recorrência Uma vez encontrada
a forma de se aproximar de um material da vida (as ações,
os sentimentos, as emoções), resta então
preencher essa forma com novos conteúdos (há
sempre algo diferente em jogo nas cenas de cama, de
mesa, de rua), que tanto repetem e ratificam os procedimentos
como servem de base para diferenciar cada situação
como única.
Se aqui falamos em termos de diferença e repetição,
de procedimentos fixos e de ações diferenciadas,
é porque o próprio cinema de Hong parece
viver totalmente imbuído nessa escolha paradoxal.
Ele equaciona de maneira nova a tensão entre
os dois movimentos gerais do cinema nascidos a partir
do desgaste do classicismo e do modernismo cinematográficos.
Entre o naturalismo do reencontro com o instante (Pialat,
Cassavetes) e o maneirismo do excesso, da referência
e dos destinos traçados (De Palma, Leone, Fassbinder),
ele se aproveita de um para provar o outro. Os dispositivos
de narração em abismo, inequivovamente
maneiristas em sua construção, servem
aqui para liberar os personagens, e não para
enquadrá-los. A incrível abertura ao mundo
(imprevisibilidade das relações, personagens
que aparecem ou desaparecem do nada, a vida que segue
seu rumo) serve apenas para mostrar que tudo corre de
acordo com certos padrões de repetição.
Aí é que as viradas de ponto-de-vista
na narrativa, elemento tão disseminado
quando não francamente banalizado na ficção
atual, ganham sua verdadeira força. Mostrar no
meio da projeção, como em Conto de
Cinema, que aquilo que se viu anteriormente fazia
parte de um filme-dentro-do-filme, não é
uma maneira de desinstalar e reinstalar o espectador
dentro da ficção, mas de colocar em crise
os dois regimes e estabelecer paralelismos que não
reafirmam nem um nem outro dos regimes de narração
(ou seja, estamos distantes de filmes como Uma Mente
Brilhante, Os Outros e O Sexto Sentido;
mais perto de Spider ou de A Vila, mas
ainda assim não muito próximos), mas criam
uma tensão que parece funcionar contra os registros
de ficção em cima da vida cotidiana, mas
que contraditoriamente acabam por fazê-los parecerem
cada vez mais próximos de nós, de nossas
próprias vivências. Novidade do mesmo,
as mesmas novidades?
As musiquinhas de realejo que se instalam entre as seqüências
dos filmes já denunciam tudo: o cinema de Hong
Sang-Soo é um cinema de feira, um cinema que
se interessa pelo pitoresco das situações
mais prosaicas, pelo grande drama que se instala a partir
das situações mais corriqueiras, pela
doce trivialidade da vida vivida com farsa. Uma vida
de pessoas no meio do caminho. Jovens demais para se
preocuparem com a morte e com a angústia de não
poderem voltar atrás, velhos demais para viverem
tensões familiares (total ausência de pais
nos filmes de Hong, próximo até de Charlie
Brown nesse sentido), seus protagonistas vivem uma vida
num presente eterno e indefinido. Hong Sang-Soo filma
apenas aquilo que ele conhece bem. Não há
alteridade absoluta (outro traço que o assemelha
a Rohmer, um de seus cineastas prediletos, junto com
Buñuel, Vigo, Ozu, Renoir), apenas as histórias
de personagens dentro de sua classe, de sua feixa etária,
etc. Dentro desse espectro em alguma medida restrito,
Hong cria um universo particular o seu universo.
E dentro dele, ele é um dos grandes contadores
de história, um dos maiores do cinema contemporâneo,
sempre receoso de histórias ou repisando os mesmos
relatos. Turning Gate: por três vezes,
fala-se a frase "Apesar da dificuldade em ser um
ser-humano, não vamos nos transformar em mostros".
Não seria nesse limiar entre o humano e o monstro,
nessa pesquisa incontida pelos caminhos e descaminhos
do humano que se instalaria todo o projeto de ficção
de Hong Sang-Soo? A sensação que deriva
disso é de uma força rara no cinema contemporâneo,
ou no cinema, ponto: o mundo tal como o experimentamos.
Ruy Gardnier
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