HINOKIO
Takahiko Akiyama, Hinokio, Japão, 2005

À infância é muitas vezes reservado o espaço de memórias formadoras, em geral idílicas ou traumáticas. Mas, quando esta não é espaço de memória e, sim, de ação no tempo presente, o “idílio” costuma dominar a cena, pois raramente dramatizam-se as dificuldades infantis – e ainda mais raramente buscando uma aproximação das lógicas que permeiam este universo. No Japão, no entanto, freqüentemente vemos produções “infantis” com altas doses de drama e violência, com uma carga maior de “mundo” do que no grosso da produção ocidental, que parece querer “poupar” as crianças, aliviá-las do que sabemos que existe e que experimentamos também. Como a dor da perda, que não escolhe idade. Assim sendo, a morte dos pais, por exemplo, é um tema recorrente em produções que enfocam de alguma forma dores da infância. E é este tema que Hinokio retoma, para retrabalhá-lo em meio a outras questões, relacionadas com suas conseqüências e, mais importante, com a lida com o mundo fora de si.

Satoru sofre um acidente de carro com a mãe. Ela morre e ele fica paralisado da cintura pra baixo. Seu pai, um engenheiro de robótica, constrói um robô para ir à escola por ele. Satoru comanda o robô de dentro do seu quarto, de onde nunca sai. Este “duplo” mecânico passa a ser sua única forma de contato com o mundo. A implicância que ele sofreria na escola, o robô passa a sofrer por ele. Até descobrir nas mesmas crianças que o perseguiam, o companheirismo, o “andar em grupo”, a amizade.

Satoru vive tudo de forma indireta, por intermédio de um aparato mecânico. Se furta do mundo, se furta da vida. Comanda Hinokio em suas interações com as pessoas, da mesma forma com que joga o videogame “Purgatório” (que dizem guardar semelhanças com o mundo real); percorre o espaço em ponto-de-vista virtualizado (a tela do videogame, a tela do olhar do robô). Há aí uma interessante ligação entre fantasia/imaginação e realidade, que parece derivada diretamente da lógica infantil – com a qual o filme se contamina, incorporando-a. Permear as atitudes cotidianas de uma atmosfera mágica e viver as ficções tão intensamente a ponto de acreditar nelas. Fundir memórias de sonho, imaginação e acontecimentos reais. Jun sobe na torre e arrisca a vida para salvar Satoru, numa reprodução de uma ação do jogo, assim como se joga na água, “puxada” por um peixe-monstro com ares pré-históricos. O perigo ronda estes comportamentos – motivo pelo qual as brincadeiras infantis devem ser vigiadas de perto.

Desejoso de ir além, Satoru instala em Hinokio, seu quase-boneco-de-brinquedo, quase-máscara, quase-fantasia, um upgrade de sensitividade, que permite revestir o robô de qualidades sensórias a serem transmitidas àquele que o controla (controle que se dá em grande parte por um aparato ligado às ondas cerebrais.) Aquilo que era apenas um meio de freqüentar a escola, torna-se uma verdadeira interface de relacionamento com o mundo. Satoru agora sente tapas, carinhos, abraços. A própria reaproximação com o pai (que ele julga culpado pela morte da mãe) se dá através do robô. Construção instigante, que se completa com o “encontro” do menino com a mãe, durante seu ligeiro coma, dentro do cenário do videogame, no tal purgatório. A ficção, que por um lado denota uma “fuga”, uma incapacidade de encarar o mundo diretamente (Jun o acusa de se refugiar por trás do robô, de se isolar e se esconder do mundo e das pessoas), por outro, é o meio possível de entrar novamente em contato com ele, de restabelecer-se emocionalmente e recuperar uma vivência comum. Mundo interior e exterior (o íntimo e o externo, o quarto e a rua) se confundem e se interpenetram.

Este comportamento, assim como outros – a hostilidade-molecagem de Jun e seus amigos, o “travestimento” de Jun em menino, seu carinho pelo robô, sua maturidade para lidar com a morte do pai e o apoio emocional que ela oferece a Satoru, a paixão de uma colega de classe ciumenta por ela – o filme admiravelmente não “valoriza”. Há uma distância respeitosa, que descreve e narra sem incutir julgamentos, sem visar a conclusões ou lições “educativas”. A aventura pela qual passam os personagens tem muito mais jeito de rito de passagem, de crônica infantil sobre a superação de uma dificuldade, de um trauma, do que de conto-fábula moralista. Mesmo com soluções visuais e de linguagem por vezes beirando um exagero formal desajeitado e cafona, um claro excesso de tramas, que não conseguem ser satisfatoriamente arrematadas, e um apêndice de final feliz totalmente dispensável, Hinokio é, ainda, um filme interessante. Pequeno item de uma produção com a qual temos raríssimas chances de entrar em contato, e que suscita reflexões importantes também para o cinema infantil que conhecemos melhor, mas, ainda assim, é pouco pensado.

Tatiana Monassa