À infância é muitas vezes reservado
o espaço de memórias formadoras, em geral idílicas ou
traumáticas. Mas, quando esta não é espaço de memória
e, sim, de ação no tempo presente, o “idílio” costuma
dominar a cena, pois raramente dramatizam-se as dificuldades
infantis – e ainda mais raramente buscando uma aproximação
das lógicas que permeiam este universo. No Japão, no
entanto, freqüentemente vemos produções “infantis” com
altas doses de drama e violência, com uma carga maior
de “mundo” do que no grosso da produção ocidental, que
parece querer “poupar” as crianças, aliviá-las do que
sabemos que existe e que experimentamos também. Como
a dor da perda, que não escolhe idade. Assim sendo,
a morte dos pais, por exemplo, é um tema recorrente
em produções que enfocam de alguma forma dores da infância.
E é este tema que Hinokio retoma, para retrabalhá-lo
em meio a outras questões, relacionadas com suas conseqüências
e, mais importante, com a lida com o mundo fora de si.
Satoru sofre um acidente de carro com a mãe. Ela morre
e ele fica paralisado da cintura pra baixo. Seu pai,
um engenheiro de robótica, constrói um robô para ir
à escola por ele. Satoru comanda o robô de dentro do
seu quarto, de onde nunca sai. Este “duplo” mecânico
passa a ser sua única forma de contato com o mundo.
A implicância que ele sofreria na escola, o robô passa
a sofrer por ele. Até descobrir nas mesmas crianças
que o perseguiam, o companheirismo, o “andar em grupo”,
a amizade.
Satoru vive tudo de forma indireta, por intermédio de
um aparato mecânico. Se furta do mundo, se furta da
vida. Comanda Hinokio em suas interações com as pessoas,
da mesma forma com que joga o videogame “Purgatório”
(que dizem guardar semelhanças com o mundo real); percorre
o espaço em ponto-de-vista virtualizado (a tela do videogame,
a tela do olhar do robô). Há aí uma interessante ligação
entre fantasia/imaginação e realidade, que parece derivada
diretamente da lógica infantil – com a qual o filme
se contamina, incorporando-a. Permear as atitudes cotidianas
de uma atmosfera mágica e viver as ficções tão intensamente
a ponto de acreditar nelas. Fundir memórias de sonho,
imaginação e acontecimentos reais. Jun sobe na torre
e arrisca a vida para salvar Satoru, numa reprodução
de uma ação do jogo, assim como se joga na água, “puxada”
por um peixe-monstro com ares pré-históricos. O perigo
ronda estes comportamentos – motivo pelo qual as brincadeiras
infantis devem ser vigiadas de perto.
Desejoso de ir além, Satoru instala em Hinokio, seu
quase-boneco-de-brinquedo, quase-máscara, quase-fantasia,
um upgrade de sensitividade, que permite revestir
o robô de qualidades sensórias a serem transmitidas
àquele que o controla (controle que se dá em grande
parte por um aparato ligado às ondas cerebrais.) Aquilo
que era apenas um meio de freqüentar a escola, torna-se
uma verdadeira interface de relacionamento com o mundo.
Satoru agora sente tapas, carinhos, abraços. A própria
reaproximação com o pai (que ele julga culpado pela
morte da mãe) se dá através do robô. Construção instigante,
que se completa com o “encontro” do menino com a mãe,
durante seu ligeiro coma, dentro do cenário do videogame,
no tal purgatório. A ficção, que por um lado denota
uma “fuga”, uma incapacidade de encarar o mundo diretamente
(Jun o acusa de se refugiar por trás do robô, de se
isolar e se esconder do mundo e das pessoas), por outro,
é o meio possível de entrar novamente em contato com
ele, de restabelecer-se emocionalmente e recuperar uma
vivência comum. Mundo interior e exterior (o íntimo
e o externo, o quarto e a rua) se confundem e se interpenetram.
Este comportamento, assim como outros – a hostilidade-molecagem
de Jun e seus amigos, o “travestimento” de Jun em menino,
seu carinho pelo robô, sua maturidade para lidar com
a morte do pai e o apoio emocional que ela oferece a
Satoru, a paixão de uma colega de classe ciumenta por
ela – o filme admiravelmente não “valoriza”. Há uma
distância respeitosa, que descreve e narra sem incutir
julgamentos, sem visar a conclusões ou lições “educativas”.
A aventura pela qual passam os personagens tem muito
mais jeito de rito de passagem, de crônica infantil
sobre a superação de uma dificuldade, de um trauma,
do que de conto-fábula moralista. Mesmo com soluções
visuais e de linguagem por vezes beirando um exagero
formal desajeitado e cafona, um claro excesso de tramas,
que não conseguem ser satisfatoriamente arrematadas,
e um apêndice de final feliz totalmente dispensável,
Hinokio é, ainda, um filme interessante. Pequeno
item de uma produção com a qual temos raríssimas chances
de entrar em contato, e que suscita reflexões importantes
também para o cinema infantil que conhecemos melhor,
mas, ainda assim, é pouco pensado.
Tatiana Monassa
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