E eis que o cinema latino-americano descobriu
seu nicho nos festivais internacionais, para além dos
exotismos mais explorados, num processo que tem seu
ápice com o reconhecimento (merecido) de Lucrecia Martel
no circuito dos principais eventos de cinema do mundo.
Só que, como todo fenômeno do tipo, este logo cria seus
entes “parasitários”, que arrancam o que podem do momento,
sem de fato oferecer nada em troca. Geminis e
Orlando Vargas, não por acaso ambos exibidos
no último Festival de Cannes (o primeiro na Quinzena
dos Realizadores, o segundo na Semana da Crítica), são
exemplos do fenômeno acima notado.
O primeiro, em especial, até pela nacionalidade argentina
(claro, em co-produção européia, como manda o figurino
atual) e por ser dirigido por uma jovem diretora, é
o que mais diretamente remete ao exemplo de Martel.
Mas, não somente pelas coincidências geográficas ou
de faixa etária e sexo da diretora: assim como os filmes
de Martel, Geminis deseja jogar um olhar sobre
a sua realidade a partir das relações familiares e,
essencialmente, dos impulsos sexuais e seus desvios,
especialmente os da juventude. Podia-se falar em influência,
mas o caso aqui é de traição mesmo: porque tudo que
Albertina Carri faz aqui é o oposto do que Martel faz
nos seus filmes. Patologiza os personagens em suas “taras”
(onde a mãe é o exemplo maior), torna
o seio familiar corrompido em espaço da tragédia, e
acima de tudo, dá “legendagem” social ao seu discurso,
com um filme que ousa terminar com um diálogo que acusa
o “país de merda!”. Com isso, apenas deixa claro aquilo
que sua câmera não escondia em nenhum momento: filma
tudo de longe, com asco – ou seja, como dissemos, o
oposto de Martel.
Aliás, a filmagem de Carri é onde ela mais se entrega
no seu verdadeiro objetivo: o de ser reconhecida como
uma “artista”. Auto-importante, cheia de micromovimentos
inúteis para além do embelezamento frio, abusando dos
cromatismos mais rasteiros, cada plano de Geminis
pesa uma tonelada. E sinaliza, para quem duvidasse ainda,
a dificuldade e o talento das empreitadas que Martel
empreende, com sua câmera tão estudada e ao mesmo tempo
tão orgânica. O filme de Carri nos mostra como seria
fácil perder a mão neste desafio, onde o mecanicismo
e a pré-concepção sobre o que se
mostra na tela não possui qualquer contraponto
de vida, de tensão. Assim, em minutos, os seres
humanos na tela viram insetos a serem estudados, dissecados,
pisados.
É no estilo que peca também Orlando Vargas, do
uruguaio Juan Pittaluga (e adivinhou quem apostou numa
co-produção européia), ainda que de forma bem distinta.
Seu filme, se não causa o asco do filme argentino, acaba
caindo na outra armadilha do “cinema de arte versão
século 21”: o completo desinteresse. Pegando uma página
direto do manual do filme de arte, o desejo de Pittaluga
é o do esgarçamento narrativo à beira da inexistência
da trama. Página esta que hoje é dominada como ninguém
por Gus Van Sant, mas que é tão difícil de copiar quanto
a de Martel. Porque se os personagens não oferecem informações
ou explicações sobre seus atos, se a narrativa não deseja
evoluir e sim dar voltas em torno do próprio rabo, se
se deseja investir num clima de mistério e confusão,
o que Pittaluga parece ignorar é que de algum lugar
ele deve arrancar a adesão do espectador. E aí, o que
em Van Sant é um hipnótico transe audiovisual, aqui
em Orlando Vargas é um sonífero de doses avançadas.
É quando a sua convicção de investir na não-informação
vira pura teimosia: um jogo de “eu não vou te dizer
nada”, onde no final o espectador só pode responder
“eu não estou nem aí”. Tudo isso engarrafado numa assepsia
visual extrema, num estilo de atuação zumbi, gerando
um resultado onde o pouco som e fúria significam nada.
Tipo de afetação diferente, mas ainda
assim afetação e nada mais.
É verdade que, enquanto surfam a onda do momento,
não se pode negar que Orlando Vargas e Geminis
cumprem o seu intento: arranjam vagas em Cannes, passam
em festivais mundo afora, acham seu nicho de micro-mercado.
Parabéns para eles, claro – mas o tempo não promete
ser muito clemente com o seu interesse para além
da própria satisfação momentânea:
o cinema não ganha muito com eles.
Eduardo Valente
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