Sobre
a ilusão de um avião-cinema e saber filmá-lo
Plano de Vôo é uma espécie
de filme que proporciona sensação parecida
com a de um vôo para quem escreve, mundo afora.
Afinal, temos um argumento podre de atual, através
do qual o fluxo de idéias é solto: uma
recém-viúva (Jodie Foster) viaja ao lado
de sua filha de 6 anos levando, no bagageiro do avião,
o corpo do marido, para ser velado na terra natal norte-americana.
A Alemanha era o domicílio da família.
Durante a viagem, a filha some, o que inspira uma perseverante
busca por parte da mãe, naturalmente aflita.
Há desarranjo nas poltronas, clima de terrorismo
e passageiros islâmicos, na pele, na barba e nos
documentos, julgados pelo olhar entortado de outros,
ocidentais. É prato cheio. Conjuntura universal
hostil, filme gerado naturalmente dela, refletor do
mal-estar. O que é do filme: o que está
dentro ou fora da tela? E quando as duas coisas projetam-se
uma na outra, ou dialogam? Mas projetam-se e dialogam
de que maneira?
Muito se fala e se falará, por exemplo, sobre
nossa atualidade e o medo de voar no espaço aéreo
mundial pós-11 de Setembro. Um filme sobre responsabilidade
e segurança. Mas que parece percorrer outro medo,
outra paragem da responsabilidade e da segurança
por assim dizer, a da perda e do desmantelamento irreversível
do organismo familiar, sobretudo. Algo atemporal, alguém
lembraria. Uma coisa, afinal, é curiosa. Fúnebre,
o início deste Plano de Vôo é
pontuado por uma morte que sabemos que aconteceu, a
do marido. Sabemos pois somos situados em um ambiente
branco de um necrotério e por um caixão.
Ao final do percurso, não nos lembramos mais
dessa morte, ou de seu efeito. O percurso de Plano
de Vôo é tecido na tensão que
parte do medo de perder o pouco que se tem, a filha.
O perdido já se perdeu. Um mérito do filme
é criar em nós, em par com a personagem,
esse anestesiamento em relação à
perda do marido, em prol de um regime de imagens e medos
que nos transportam para dentro do avião e apenas
para essa angústia maternal (ou seja, seminal),
efêmera e episódica até, que ocorre
naquelas suas instalações.
Certo, não negaremos a existência de uma
rede de sugestões que contemplam, em menor ou
maior grau, um cenário geopolítico mundial
de desconforto, de afloramento de distúrbios.
Nele vivemos, e nele o cinema vive. E também
não negaremos que se há vulnerabilidade
da família no filme, podemos estar à mercê
de uma discussão bem maior, que é a da
vulnerabilidade cultural, nacional, escolha a mais pertinente.
Diferentes "famílias". Mas o fato é que
somos iludidos, quase sempre, ao ver cinema, com o clima
do mundo. Estamos numa tempestade obscurantista em que
tudo, diariamente, é reduzido a essa tensão,
e às equações mais pueris: mundo
em desordem das novas invasões. Mas é
a tempestade informativa e visual a que somos submetidos,
e que nos doutrina, cotidianamente, está ok.
O que é inteligente em Plano de Vôo
então? O que faz desse um filme inteligente?
Hipótese: a realização de um trabalho
que é eminentemente sobre ilusão, nos
manipulando progressivamente para a ilusão "certa",
a do cinema, e manipulando os personagens secundários
(os mais importantes, pois estamos num avião),
progressivamente, à ilusão, digamos, "errada",
a do mundo e seu clima, a da política. Inteligente
é fazer um filme em que uma chame e se combine
a outra. A nós, a ilusão do visível,
a eles, a ilusão da cegueira. Plano de Vôo
é esse contraponto.
Na busca de Foster, começam a acontecer coisas,
muitas provocadas por seu próprio ímpeto
e por suas medidas. Todos os personagens secundários,
turistas que o diretor, diga-se, radiografa com destreza
e mobilidade, estão com muito medo de que algo
estranho, físico (seqüestro, bomba), aconteça,
em meio a panes e colapsos dos equipamentos provedores,
entre outras coisas, de luz. Luz, em outra escala, é
justamente um dos fatores dessa ilusão que vivemos.
Não que nós não contemos com a
possibilidade de um atentado, de um explosivo, por exemplo.
Até certa altura, ou sempre, contaremos. Mas
o avião do filme é dispositivo não
tanto do pavor: quer dizer, é para eles; para
nós é, acima de tudo, o dispositivo da
ilusão, da imitação de um estado,
de uma imersão, a cinematográfica no caso.
É o dispositivo do deleite, para falar a verdade.
Afinal, para nós, estar nesse avião, sentindo
quase o tocar gelado do ar condicionado escorrendo pelas
pontas do scope, suas estruturas luminosas em
meio a uma provável (apenas provável)
paisagem noturna, é como estar em um cinema.
O avião é a sala de um cinema. Nessa projeção
entre o interior do avião e a sala de cinema
é que o filme constrói seu olhar. Para
os passageiros, estar no avião é como
estar em uma prisão celeste e sofisticada em
seu carnaval de tecnologia de ponta. Mas acabamos misturando,
em nossa trajetória, os dois sentidos.
Há a ilusão dos personagens com o mundo
estremecido, verídico, o nosso, que abraça
o cinema catástrofe. É o nosso ilusionismo
do medo, étnico ou químico, de cada dia,
reproduzido. E há a fabricação
da nossa própria ilusão: via linguagem
de luz, via uso dos artifícios consumistas -
parafernálias e frufrus do avião (plasma
emitindo programas de TV embutido nos estofados das
cadeiras, elemento fortíssimo) - como artifícios
do próprio cinema em curso na tela. Via arquitetura
do olhar também. Entre essas engrenagens de ilusão,
com todas as suas faces, o diretor faz um filme-cinema.
Um filme-cinema em que o nossa experiência sensorial
quase purificada, de atmosfera mesmo, se alinha à
angústia institucionalizada, não menos
cinematográfica, a dos passageiros. Nesse trânsito
de ilusões, o real cerne temático de Plano
de Vôo, até porque a questão,
a tantas horas, é sabermos se Jodie Foster é
uma iludida ou não, já que a filha pode
ter sido uma miragem, um espectro, pode não existir
de fato, o filme cresce. Seu teor se revela. E foge
das apreensões mais simples. Deixa de ser simplesmente
o filme-sintoma que identificamos de primeira. Esse
trânsito de ilusões prescreve, da nossa
parte, um certo inebriamento, curioso, dentro de um
ambiente em que, por motivos óbvios, os de sobrevivência,
tudo tem que funcionar lucidamente, de acordo com códigos
de instruções, e de realismo, muito rígidos.
E por que tudo isso que destacamos é possível? Por que
é possível destacar? Sugere-se: porque uma coisa chamada
mise en scène existe, mise en scène que é justamente
o nome que damos à forma por meio da qual um diretor
coloca e articula, ou compõe, o que cerca sua câmera.
Há um universo de elementos: como apresentá-los e absorvê-los
em cena? É daí que o pesadelo fundamentalista ganha
traços nos rostos dos passageiros islâmicos, elaborando
uma ambigüidade que serve muito menos para a digestão
de nossa rotina diária midiatizada sócio-política do
que para a conceituação desse lugar-ilusão que é o avião.
É daí que, para nos introduzir nesse terreno acima do
tempo e das coisas, que é o avião, o diretor Robert
Schwentke é capaz de capturar todas as evidências de
exuberância mecânica do interior da fuselagem e plasticidade
asséptica, evidências que dão forma a esse dispositivo
de imersão. Veículo que nem sabemos se existe de fato:
é um estúdio, provavelmente. É daí, porque estivemos
sempre com Jodie Foster, ao seu lado, que, meio à Shyamalan,
ele pode colocar à prova tudo o que nosso olhar registrou,
desde o embarque: a filha é uma mentira? Coloca à prova
também Jodie. Se ela é uma iludida ou não, estamos com
ela, quase sempre. Schwentke abriga a todos nós na pantanosa
ambigüidade, das pessoas, da conduta e da psique de
Foster (pelo menos até tantas horas), nunca abrindo
mão de dar à atriz a condução do filme, da exploração
de lugares impossíveis dentro de um tubo que voa à criação
de eventos de toda ordem. Estamos com ela, sempre, mas
podemos estar no buraco: mesmo quando já sabemos qual
é a "real". A real de sua índole pelo menos, não tanto
do que ela de fato está fazendo. Nessa rota, o diretor
não vai deixar de artesanar uma narrativa de suspense
firme, baseada mais na figura da atriz do que de possíveis
antagonistas. Aliás, uma narrativa de gênero firme,
mas que mesmo assim flui prazerosamente, não abrindo
mão de um ritmo convidativo e rompendo por vezes com
um bom-senso consagrado (mais nos dias de hoje) de factibilidade
na caracterização dos atos e trejeitos "do mal".
Um mérito seu nesse artesanato vem muito da humildade
com que quase transmite, como já escrito, a coordenação
da mise en scène para Foster. Como diríamos
que isso não acontece se, mesmo com obscuridades
à volta, tudo o que ocorre dentro do avião
é de alguma forma planejado, tramado, pela personagem,
se ela é realmente a única que domina
cada um de seus espaços, cada uma de suas dobras,
cada um de seus sistemas? Ela, projetista, criou o avião,
ou boa parte de sua estrutura: ou seja, controla a ilusão,
o seu arcabouço, mas é vista, quase sempre,
como uma iludida. Ela é, em última instância,
quem nos leva nesse passeio pelo avião. Ela e
seu movimento, sua subversão lúcida -
subversão que só possível pois
é uma expert do protocolo higienista de
vôo -, são as chaves que determinam os
impactos que sofreremos, os sobressaltos, as alterações
de, por assim dizer, metabolismo no avião e do
jogo cênico. Ela precisa, pois, fazer algo, procurar,
desestabilizar. São essas peripécias que
farão aflorar todas as questões de ilusão
e equívoco, e portanto de suspense, que fazem
a massa do filme. São essas as chaves que, para
além dos sensacionais planos já meio "engenharísticos"
de apresentação da nave, cortesia de Schwentke
dando forro para um objeto pensado e criado de fato
por ele, mas, no enredo, desenhado por Foster, orientarão
nosso conhecimento e encanto por aquele espaço
em deslocamento. Encanto é a ponte exclusiva
para o inebriamento, ponto fundamental do contrato entre
imagem e nosso papel aqui.
Com calmaria ou chuva, sempre estável por trás
de uma cortina de instabilidade, Foster é a dona
da ilusão. O filme encerra-se com a idéia
de que seu entendimento do avião é aquilo
que usam para prejudicá-la, mas é isso
que justamente lhe ajuda na inversão do panorama.
Ou, também: o conhecimento de Foster do avião
é, acima de tudo, aquilo que Schwentke utiliza
para moldar o caminho de sua câmera e urdir toda
a tensão e encenação que fazem
de Plano de Vôo um bom filme, destaque
pleno no circuito nesses dias de embriaguez melancólica
pós-festivais.
Claudio Szynkier
|