PLANO DE VÔO
Robert Scwhentke, Flightplan, EUA, 2005

Sobre a ilusão de um avião-cinema e saber filmá-lo

Plano de Vôo é uma espécie de filme que proporciona sensação parecida com a de um vôo para quem escreve, mundo afora. Afinal, temos um argumento podre de atual, através do qual o fluxo de idéias é solto: uma recém-viúva (Jodie Foster) viaja ao lado de sua filha de 6 anos levando, no bagageiro do avião, o corpo do marido, para ser velado na terra natal norte-americana. A Alemanha era o domicílio da família. Durante a viagem, a filha some, o que inspira uma perseverante busca por parte da mãe, naturalmente aflita. Há desarranjo nas poltronas, clima de terrorismo e passageiros islâmicos, na pele, na barba e nos documentos, julgados pelo olhar entortado de outros, ocidentais. É prato cheio. Conjuntura universal hostil, filme gerado naturalmente dela, refletor do mal-estar. O que é do filme: o que está dentro ou fora da tela? E quando as duas coisas projetam-se uma na outra, ou dialogam? Mas projetam-se e dialogam de que maneira?

Muito se fala e se falará, por exemplo, sobre nossa atualidade e o medo de voar no espaço aéreo mundial pós-11 de Setembro. Um filme sobre responsabilidade e segurança. Mas que parece percorrer outro medo, outra paragem da responsabilidade e da segurança por assim dizer, a da perda e do desmantelamento irreversível do organismo familiar, sobretudo. Algo atemporal, alguém lembraria. Uma coisa, afinal, é curiosa. Fúnebre, o início deste Plano de Vôo é pontuado por uma morte que sabemos que aconteceu, a do marido. Sabemos pois somos situados em um ambiente branco de um necrotério e por um caixão. Ao final do percurso, não nos lembramos mais dessa morte, ou de seu efeito. O percurso de Plano de Vôo é tecido na tensão que parte do medo de perder o pouco que se tem, a filha. O perdido já se perdeu. Um mérito do filme é criar em nós, em par com a personagem, esse anestesiamento em relação à perda do marido, em prol de um regime de imagens e medos que nos transportam para dentro do avião e apenas para essa angústia maternal (ou seja, seminal), efêmera e episódica até, que ocorre naquelas suas instalações.

Certo, não negaremos a existência de uma rede de sugestões que contemplam, em menor ou maior grau, um cenário geopolítico mundial de desconforto, de afloramento de distúrbios. Nele vivemos, e nele o cinema vive. E também não negaremos que se há vulnerabilidade da família no filme, podemos estar à mercê de uma discussão bem maior, que é a da vulnerabilidade cultural, nacional, escolha a mais pertinente. Diferentes "famílias". Mas o fato é que somos iludidos, quase sempre, ao ver cinema, com o clima do mundo. Estamos numa tempestade obscurantista em que tudo, diariamente, é reduzido a essa tensão, e às equações mais pueris: mundo em desordem das novas invasões. Mas é a tempestade informativa e visual a que somos submetidos, e que nos doutrina, cotidianamente, está ok. O que é inteligente em Plano de Vôo então? O que faz desse um filme inteligente? Hipótese: a realização de um trabalho que é eminentemente sobre ilusão, nos manipulando progressivamente para a ilusão "certa", a do cinema, e manipulando os personagens secundários (os mais importantes, pois estamos num avião), progressivamente, à ilusão, digamos, "errada", a do mundo e seu clima, a da política. Inteligente é fazer um filme em que uma chame e se combine a outra. A nós, a ilusão do visível, a eles, a ilusão da cegueira. Plano de Vôo é esse contraponto.

Na busca de Foster, começam a acontecer coisas, muitas provocadas por seu próprio ímpeto e por suas medidas. Todos os personagens secundários, turistas que o diretor, diga-se, radiografa com destreza e mobilidade, estão com muito medo de que algo estranho, físico (seqüestro, bomba), aconteça, em meio a panes e colapsos dos equipamentos provedores, entre outras coisas, de luz. Luz, em outra escala, é justamente um dos fatores dessa ilusão que vivemos. Não que nós não contemos com a possibilidade de um atentado, de um explosivo, por exemplo. Até certa altura, ou sempre, contaremos. Mas o avião do filme é dispositivo não tanto do pavor: quer dizer, é para eles; para nós é, acima de tudo, o dispositivo da ilusão, da imitação de um estado, de uma imersão, a cinematográfica no caso. É o dispositivo do deleite, para falar a verdade. Afinal, para nós, estar nesse avião, sentindo quase o tocar gelado do ar condicionado escorrendo pelas pontas do scope, suas estruturas luminosas em meio a uma provável (apenas provável) paisagem noturna, é como estar em um cinema. O avião é a sala de um cinema. Nessa projeção entre o interior do avião e a sala de cinema é que o filme constrói seu olhar. Para os passageiros, estar no avião é como estar em uma prisão celeste e sofisticada em seu carnaval de tecnologia de ponta. Mas acabamos misturando, em nossa trajetória, os dois sentidos.

Há a ilusão dos personagens com o mundo estremecido, verídico, o nosso, que abraça o cinema catástrofe. É o nosso ilusionismo do medo, étnico ou químico, de cada dia, reproduzido. E há a fabricação da nossa própria ilusão: via linguagem de luz, via uso dos artifícios consumistas - parafernálias e frufrus do avião (plasma emitindo programas de TV embutido nos estofados das cadeiras, elemento fortíssimo) - como artifícios do próprio cinema em curso na tela. Via arquitetura do olhar também. Entre essas engrenagens de ilusão, com todas as suas faces, o diretor faz um filme-cinema. Um filme-cinema em que o nossa experiência sensorial quase purificada, de atmosfera mesmo, se alinha à angústia institucionalizada, não menos cinematográfica, a dos passageiros. Nesse trânsito de ilusões, o real cerne temático de Plano de Vôo, até porque a questão, a tantas horas, é sabermos se Jodie Foster é uma iludida ou não, já que a filha pode ter sido uma miragem, um espectro, pode não existir de fato, o filme cresce. Seu teor se revela. E foge das apreensões mais simples. Deixa de ser simplesmente o filme-sintoma que identificamos de primeira. Esse trânsito de ilusões prescreve, da nossa parte, um certo inebriamento, curioso, dentro de um ambiente em que, por motivos óbvios, os de sobrevivência, tudo tem que funcionar lucidamente, de acordo com códigos de instruções, e de realismo, muito rígidos.

E por que tudo isso que destacamos é possível? Por que é possível destacar? Sugere-se: porque uma coisa chamada mise en scène existe, mise en scène que é justamente o nome que damos à forma por meio da qual um diretor coloca e articula, ou compõe, o que cerca sua câmera. Há um universo de elementos: como apresentá-los e absorvê-los em cena? É daí que o pesadelo fundamentalista ganha traços nos rostos dos passageiros islâmicos, elaborando uma ambigüidade que serve muito menos para a digestão de nossa rotina diária midiatizada sócio-política do que para a conceituação desse lugar-ilusão que é o avião. É daí que, para nos introduzir nesse terreno acima do tempo e das coisas, que é o avião, o diretor Robert Schwentke é capaz de capturar todas as evidências de exuberância mecânica do interior da fuselagem e plasticidade asséptica, evidências que dão forma a esse dispositivo de imersão. Veículo que nem sabemos se existe de fato: é um estúdio, provavelmente. É daí, porque estivemos sempre com Jodie Foster, ao seu lado, que, meio à Shyamalan, ele pode colocar à prova tudo o que nosso olhar registrou, desde o embarque: a filha é uma mentira? Coloca à prova também Jodie. Se ela é uma iludida ou não, estamos com ela, quase sempre. Schwentke abriga a todos nós na pantanosa ambigüidade, das pessoas, da conduta e da psique de Foster (pelo menos até tantas horas), nunca abrindo mão de dar à atriz a condução do filme, da exploração de lugares impossíveis dentro de um tubo que voa à criação de eventos de toda ordem. Estamos com ela, sempre, mas podemos estar no buraco: mesmo quando já sabemos qual é a "real". A real de sua índole pelo menos, não tanto do que ela de fato está fazendo. Nessa rota, o diretor não vai deixar de artesanar uma narrativa de suspense firme, baseada mais na figura da atriz do que de possíveis antagonistas. Aliás, uma narrativa de gênero firme, mas que mesmo assim flui prazerosamente, não abrindo mão de um ritmo convidativo e rompendo por vezes com um bom-senso consagrado (mais nos dias de hoje) de factibilidade na caracterização dos atos e trejeitos "do mal".

Um mérito seu nesse artesanato vem muito da humildade com que quase transmite, como já escrito, a coordenação da mise en scène para Foster. Como diríamos que isso não acontece se, mesmo com obscuridades à volta, tudo o que ocorre dentro do avião é de alguma forma planejado, tramado, pela personagem, se ela é realmente a única que domina cada um de seus espaços, cada uma de suas dobras, cada um de seus sistemas? Ela, projetista, criou o avião, ou boa parte de sua estrutura: ou seja, controla a ilusão, o seu arcabouço, mas é vista, quase sempre, como uma iludida. Ela é, em última instância, quem nos leva nesse passeio pelo avião. Ela e seu movimento, sua subversão lúcida - subversão que só possível pois é uma expert do protocolo higienista de vôo -, são as chaves que determinam os impactos que sofreremos, os sobressaltos, as alterações de, por assim dizer, metabolismo no avião e do jogo cênico. Ela precisa, pois, fazer algo, procurar, desestabilizar. São essas peripécias que farão aflorar todas as questões de ilusão e equívoco, e portanto de suspense, que fazem a massa do filme. São essas as chaves que, para além dos sensacionais planos já meio "engenharísticos" de apresentação da nave, cortesia de Schwentke dando forro para um objeto pensado e criado de fato por ele, mas, no enredo, desenhado por Foster, orientarão nosso conhecimento e encanto por aquele espaço em deslocamento. Encanto é a ponte exclusiva para o inebriamento, ponto fundamental do contrato entre imagem e nosso papel aqui.

Com calmaria ou chuva, sempre estável por trás de uma cortina de instabilidade, Foster é a dona da ilusão. O filme encerra-se com a idéia de que seu entendimento do avião é aquilo que usam para prejudicá-la, mas é isso que justamente lhe ajuda na inversão do panorama. Ou, também: o conhecimento de Foster do avião é, acima de tudo, aquilo que Schwentke utiliza para moldar o caminho de sua câmera e urdir toda a tensão e encenação que fazem de Plano de Vôo um bom filme, destaque pleno no circuito nesses dias de embriaguez melancólica pós-festivais.


Claudio Szynkier