Não é fácil transpôr Charles
Bukowski para o cinema. Mesmo Marco Ferreri com seu
Crônica de um Amor Louco, ainda que tendo feito
um filme bastante forte, fez também um de seus mais
leves. Não é como se as aventuras bukowskianas não fossem
cinematográficas, mas abrem caminhos pra soluções facéis
que cineastas mais preguiçosamente adotam sem pestanejar
(vide Barfly, cujo interesse e – especialmente
– qualidade se resumem à presença de Mickey Rourke).
Bent Hamer não vem de um filme especialmente bem sucedido
(Histórias de Cozinha), e até por isso surpreende
muito a forma como encarou adaptar Bukowski (não se
trata de uma biografia como pode se pensar, a questão
é apenas que o autor baseava boa parte de sua obra no
seu dia-a-dia, o que é um tanto diferente), realmente
tendo entrado de cabeça no projeto, bancado da adaptação
à produção. Mais que adaptar uma obra de Bukowski, Hamer
insere trechos de contos, os mesclando à narrativa de
forma bastante interessante, e fazendo de seu filme
uma pequena homenagem ao mestre.
Hamer não se preocupa em tornar o filme narrativo, e
muitas vezes, pelo costumeiro hábito de Hank (o alterego
de Bukowski) simplesmente sumir do trabalho, não se
sabe mais se ele ainda está no mesmo emprego ou se voltou
a estar desempregado, já que o filme dá vôos completamente
despreocupados, dando uma noção meio atemporal para
o que ocorre – o que de certa forma dá um tom meio “alcóolico”
para o que se vê que é bastante forte. Hamer sempre
acompanha exclusivamente Hank, e até os tons de luz
do filme parecendo acompanhá-lo por sua jornada. Principalmente
seus romances, que na realidade basicamente se concentram
em Jan, com quem vive um relação pouco usual, que alterna
momentos mais carnais e outros quase maternais. Ainda
que uma das seqüências mais fortes do filme se dê com
outro romance de Hank, quando ele vai parar num iate
pelo mar – aliás estes rompantes quase surreais, como
quando Hank se envolve com corridas de cavalo e da noite
pro dia começa a ficar rico, usando terno e fumando
charutos, são todos sensacionais.
É verdade que vez ou outra Hamer surrupia para o filme
planos bastante estranhos, como um zoom out quando
Hank está fumando na janela do prédio onde trabalha
no momento, que surge repentinamente mostrando toda
a cidade e o prédio em volta do rosto fumante de Hank.
Além da cena em que Hank visita seus pais, onde a encenação
parece especialmente equivocada em tom, até mesmo na
direção de atores, forte no geral do filme. Momentos
que são menores diante de acertos fascinantes como a
cena em que Hank e Jan estão caminhando na rua pelo
dia, verificando se as portas dos carros estão abertas,
até que Hank finalmente localiza um carro aberto, adentra
o veículo, pega um punhado de cigarros, e sai do carro
seguindo seu caminho.
Hamer deve muito – muito mesmo – à Matt Dillon, que
encarna de corpo e alma Hank Chinaski, carregando o
filme consigo. A crença que ambos carregam nesse modo
de vida bukowskiano e em seu mero direito de vivê-lo
é realmente transposto com força para o filme. Factotum
funciona quase como um breve trecho de uma jornada,
pega começada e longe de terminar, e Hamer explora ao
máximo esse aspecto passageiro do filme, sem necessariamente
mostrar um período específico da vida deste personagem.
Há ainda alguns trechos da obra de Bukowski narrados
em off por Dillon, quando este está tentando
escrever seus contos que nunca sabe quando serão publicados.
No monólogo final, poema saído direto de um livro do
autor, Chinaski diz: “if you’re going to try, go all
the way” (se você vai tentar, vá até o fim), em perfeita
sintonia com muito do que se pode dizer sobre o filme,
em especial quando ele continua estes dizeres com “otherwise,
don’t even start” (do contrário, nem comece).
Guilherme Martins
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