FACTOTUM
Bent Hamer, Factotum, Noruega/EUA, 2005

Não é fácil transpôr Charles Bukowski para o cinema. Mesmo Marco Ferreri com seu Crônica de um Amor Louco, ainda que tendo feito um filme bastante forte, fez também um de seus mais leves. Não é como se as aventuras bukowskianas não fossem cinematográficas, mas abrem caminhos pra soluções facéis que cineastas mais preguiçosamente adotam sem pestanejar (vide Barfly, cujo interesse e – especialmente – qualidade se resumem à presença de Mickey Rourke).

Bent Hamer não vem de um filme especialmente bem sucedido (Histórias de Cozinha), e até por isso surpreende muito a forma como encarou adaptar Bukowski (não se trata de uma biografia como pode se pensar, a questão é apenas que o autor baseava boa parte de sua obra no seu dia-a-dia, o que é um tanto diferente), realmente tendo entrado de cabeça no projeto, bancado da adaptação à produção. Mais que adaptar uma obra de Bukowski, Hamer insere trechos de contos, os mesclando à narrativa de forma bastante interessante, e fazendo de seu filme uma pequena homenagem ao mestre.

Hamer não se preocupa em tornar o filme narrativo, e muitas vezes, pelo costumeiro hábito de Hank (o alterego de Bukowski) simplesmente sumir do trabalho, não se sabe mais se ele ainda está no mesmo emprego ou se voltou a estar desempregado, já que o filme dá vôos completamente despreocupados, dando uma noção meio atemporal para o que ocorre – o que de certa forma dá um tom meio “alcóolico” para o que se vê que é bastante forte. Hamer sempre acompanha exclusivamente Hank, e até os tons de luz do filme parecendo acompanhá-lo por sua jornada. Principalmente seus romances, que na realidade basicamente se concentram em Jan, com quem vive um relação pouco usual, que alterna momentos mais carnais e outros quase maternais. Ainda que uma das seqüências mais fortes do filme se dê com outro romance de Hank, quando ele vai parar num iate pelo mar – aliás estes rompantes quase surreais, como quando Hank se envolve com corridas de cavalo e da noite pro dia começa a ficar rico, usando terno e fumando charutos, são todos sensacionais.

É verdade que vez ou outra Hamer surrupia para o filme planos bastante estranhos, como um zoom out quando Hank está fumando na janela do prédio onde trabalha no momento, que surge repentinamente mostrando toda a cidade e o prédio em volta do rosto fumante de Hank. Além da cena em que Hank visita seus pais, onde a encenação parece especialmente equivocada em tom, até mesmo na direção de atores, forte no geral do filme. Momentos que são menores diante de acertos fascinantes como a cena em que Hank e Jan estão caminhando na rua pelo dia, verificando se as portas dos carros estão abertas, até que Hank finalmente localiza um carro aberto, adentra o veículo, pega um punhado de cigarros, e sai do carro seguindo seu caminho.

Hamer deve muito – muito mesmo – à Matt Dillon, que encarna de corpo e alma Hank Chinaski, carregando o filme consigo. A crença que ambos carregam nesse modo de vida bukowskiano e em seu mero direito de vivê-lo é realmente transposto com força para o filme. Factotum funciona quase como um breve trecho de uma jornada, pega começada e longe de terminar, e Hamer explora ao máximo esse aspecto passageiro do filme, sem necessariamente mostrar um período específico da vida deste personagem. Há ainda alguns trechos da obra de Bukowski narrados em off por Dillon, quando este está tentando escrever seus contos que nunca sabe quando serão publicados. No monólogo final, poema saído direto de um livro do autor, Chinaski diz: “if you’re going to try, go all the way” (se você vai tentar, vá até o fim), em perfeita sintonia com muito do que se pode dizer sobre o filme, em especial quando ele continua estes dizeres com “otherwise, don’t even start” (do contrário, nem comece).

Guilherme Martins