A força do carinho
Não são poucas as armadilhas das quais
foge a estreante Miranda July no seu premiado filme,
ganhador da Câmera de Ouro em Cannes, Um verdadeiro
aglomerado de alguns dos piores vícios do cinema
contemporâneo, especialmente do cinema independente
americano, parecem rondar a todo tempo sua narrativa:
o filme-painel, a história de personagens que
se cruzam, as falas "inteligentes" na boca
de seus personagens todos, os conflitos geracionais,
e até mesmo a "pós-modernice"
temática (comunicação pela internet
e arte contemporânea e digital surgem como alguns
dos ambientes explorados pelo filme). Sejamos sinceros:
tinha tudo para dar errado. No entanto, dá certo,
e cada vez mais certo a cada cena, num crescendo impressionante
– e o motivo é bem simples: July filma personagens
que realmente a interessam, e que ganham vida própria
para além de todas as já citadas armadilhas.
Podemos escolher uma cena como a mais exemplar: a do
encontro de dois personagens num banco de praça
(não convém dizer quais, sob risco da
leitura por alguém que ainda não viu o
filme). Nela, se concentram todas as possibilidades
de July errar na mão: a junção
de linhas narrativas que até então não
se cruzavam, o fechamento da trama que se referia à
comunicação por internet através
de um equívoco de identidade, e um encontro que
se presta facilmente a um olhar que deseje ridicularizá-lo.
No entanto, a cineasta resolve a cena como faz em todos
os outros casos: da maneira mais compreensiva sobre
o quanto ainda há de possibilidades do encontro
entre seres humanos, para além de todas as distâncias
possíveis (de idade, classe social, gêneros,
o que for).
O beijo que fecha esta cena, com a canção
em fade in progressivo revela ainda algo mais
sobre July: sua falta de vergonha de levar até
o fim o seu verdadeiro romantismo. Seu filme poderia,
inclusive, facilmente ser chamado de ingênuo ou
exagerado, mas ela não foge desta possibilidade
nem por um momento. Chamar seu filme de "exagerado"
equivale a chamar a música de um Nick Drake ou
de um Leonard Cohen de "exageradas" na sua
entrega: é não perceber o domínio
plenamente auto-consciente das teclas que se deseja
pressionar, das cordas que se quer tocar. E July não
se exime de tocar nenhuma delas.
A metáfora musical pode ser útil ainda
para desconsiderar uma "sombra" que acompanhava
o filme de July: a de ser um Todd Solondz de saias.
Compará-la ao colega um pouco mais velho é
como dizer que Jimi Hendrix e Yngwie Malmsteen seriam
semelhantes porque tocavam a mesma marca de guitarra.
Pois que sejam cineastas independentes americanos que
enfocam a vida nos subúrbios urbanos a partir
de personagens pouco usuais ou "glamurosos"
faz deles tão semelhantes quanto o guitarrista
americano visceral e o presepeiro sueco. Especialmente
no mesmo ano em que Solondz nos apresenta o que talvez
seja seu filme mais deplorável, sob todos os
aspectos, soa a compreensão muito rasa sequer
mencionar os dois cineastas na mesma frase. July não
merece ser conhecida nem como a anti-Solondz, porque
com um filme já se mostra muito mais importante
do que ele. Que Solondz seja, então, o anti-July.
Dizer mais do filme de July seria ressaltar o trabalho
comovente de seus atores, todos revelações
completas (talvez nenhum mais do que o sósia
de Vincent Gallo, John Hawkes), elogiar as construções
dramáticas absolutamente envolventes (onde as
cenas de conversa pelo computador são especialmente
pungentes e bem resolvidas) ou ficar citando cenas de
extrema precisão de encenação (todas
as tentativas de contato entre o pai e seus dois filhos,
a conversa do garoto e da garota deitados no chão
do quarto, a cena do duplo boquete) ou de escritura
fina de diálogos que nunca soam forçados,
pelo menos nåo mais do que eram forçados
os diálogos sempre brilhantes de um Billy Wilder
(para quem achar a comparação exagerada,
basta pegar o timing da cena entre as duas jovens
e o homem gordo na porta da casa deste).
Fiquemos, porém, apenas com três delas:
o já citado encontro no banco, o trajeto do peixinho
dourado pelos tetos dos carros e a caminhada do casal
principal do filme da loja de sapatos até seus
carros. Nestas três cenas há mais cinema
e mais sentimento do que em boa parte do que se produz
em arte hoje no mundo.
Eduardo Valente
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